“Na era da globalização, falar português, uma das grandes línguas globais do planeta, que partilha e põe em comum culturas da Europa, das Américas, de África e da Ásia e Oceânia, com centenas de milhões de falantes em todos os continentes, é um imenso património e um poderoso veículo de união e progresso.”
Este parágrafo do Manifesto 2014, subscrito por 66 personalidades dos mais diversos setores da sociedade do mundo da lusofonia, simboliza bem a relevância global da língua portuguesa e a importância das comemorações dos 800 anos de uma existência “oficial” que decorreram esta sexta-feira em Lisboa e em Macau.
Nas cerimónias de Lisboa, que decorreram no Padrão dos Descobrimentos, participaram escritores de todos os países que se exprimem oficialmente na língua de Camões e embaixadores e reperesentantes dos oito países de língua oficial portuguesa.
Aos dinamizadores do presente juntaram-se os protagonistas do futuro na afirmação deste imenso património imaterial: 800 crianças lançaram balões com desenhos de artistas plásticos do mundo lusófono. A animação fez-se em torno de danças expressivas de cada um dos países.
A comemoração ocorre a 27 de junho, porque os dinamizadores da iniciativa tomam como marco histórico o Testamento de D. Afonso II, o mais antigo documento régio conhecido escrito já na nossa língua, cuja data provável será 27 de junho de 1214.
Este testamento é até agora o primeiro documento oficial da corte chegado aos nossos dias, mas não será o mais antigo documento escrito em língua portuguesa descoberto até agora. De um período situado entre 1211 e 1216 é conhecida uma Notícia de Torto – “Notícia das malfeitorias de que foi injustamente vítima Lourenço Fernandes da Cunha” e, mais antiga ainda, uma Notícia de Fiadores, datada de 1175.
E se todos os pretextos são bons para a promoção de um tão rico património como a língua, o Testamento de D. Afonso II não é certamente o menos significativo.
Macau também celebrou
Em Macau, as comemorações decorreram na Escola Portuguesa com uma cerimónia de lançamento de balões na qual participaram responsáveis ligados à divulgação da língua e cultura portuguesas na Região.
Além do cônsul-geral Vítor Sereno, associaram-se ao movimento o diretor da Escola Portuguesa de Macau, Manuel Machado, o diretor do Instituto Português do Oriente, João Laurentino Neves, o presidente do Instituto Internacional de Macau, Jorge Rangel, a presidente da Casa de Portugal, Amélia António, e diversos professores de escolas e universidades ou institutos locais.
José Ribeiro e Castro: "A ideia era cruzar esta efeméride com o Mundial da FIFA no Brasil"
Para sabermos como surgiu a ideia de celebrar o “nascimento” de uma língua, falámos com o deputado José Ribeiro e Castro, ex-presidente da Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura, onde o projeto germinou.
Euronews:
Qual é o principal objetivo desta iniciativa?
José Ribeiro e Castro:
O objectivo é, a partir de uma curiosidade – uma língua que faz anos – e em torno quase que de uma graça, celebrarmos a própria língua portuguesa, que é, hoje, uma das mais importantes línguas globais contemporâneas: a terceira língua europeia global, a terceira língua do Ocidente, a língua mais falada no Hemisfério Sul, uma língua em crescimento em todos os continentes e, segundo um estudo recente do Camões e do ISCTE, já a quarta língua mais falada no Mundo.
O português, na verdade, oito séculos depois, é um tesouro de cultura e de comunidade, uma preciosa ferramenta na globalização.
É essa consciência que queremos fortalecer e esse valor que queremos celebrar, olhando sobretudo aos oitocentos anos que estão para a frente – isto é, mais do que apenas memória, orgulho e confiança na língua que partilhamos com centenas de milhões de outros.
E: Como surgiu a ideia destas comemorações?
J.R.C: A ideia foi apresentada na Assembleia da República, em 2012, por um investigador brasileiro, que trabalha em Portugal há vários anos e que é, como eu, um apaixonado pela língua portuguesa e pelo seu alto valor estratégico. Trata-se do professor Roberto Moreno.
A partir de um importante documento de 1214, ele já tinha essa ideia há vários anos, mas só a apresentou à Assembleia da República, em Setembro de 2012, na Comissão de Educação, Ciência e Cultura, de que eu era o presidente.
A ideia, aliás, era mais completa, pois visava também cruzar esta efeméride com o Mundial da FIFA no Brasil, que decorre nesta altura. E a coincidência era ainda maior e mais atraente: tanto a federação portuguesa de futebol, como a brasileira, podem comemorar também os respectivos centenários neste ano – os organismos que lhes deram origem foram fundados em 1914. Seria, de facto, genial consegui-lo, numa grande acção de martketing global; mas isso infelizmente… não conseguimos. Fiz muito esforços, mas, para isso, não encontrei interlocutores motivados.
Depois, a ideia foi pegando por aí e têm surgido várias iniciativas em torno desta mesma imaginação: celebrar oitocentos anos ou oito séculos da língua portuguesa em 2014. Foi formada também, por exemplo, uma associação com este nome e este escopo. E há comemorações variadas ao longo do tempo.
E: Porquê a decisão de tomar como referência histórica o Testamento de D. Afonso II, quando há referências a documentos mais antigos em Língua Portuguesa?
J.R.C: De facto, uma língua não nasce assim num dia só, de repente. Resulta de um processo cultural e social. E há, na verdade, conhecimento de outros documentos – raros – , escritos já em português, nos finais do século XII e princípio do século XIII. Os mais antigos conhecidos datam de 1175 e de 1192, embora a sua datação seja por vezes problemática. E há ainda algumas cantigas trovadorescas, que se pensou serem de finais do século XI, mas ultimamente os investigadores situam no primeiro quartel do século XIII. A língua portuguesa estava, portanto, em fase final de afirmação e autonomização nessa época, no plano popular e social.
O que faz, então, tão importante o Testamento de D. Afonso II, dado em Coimbra, em 27 de Junho de 1214? Quatro coisas: 1º – é um documento considerado escrito já em português e não galaico-portucalense;
2º – não é um texto meramente particular, mas um documento oficial;
3º – não é um documento oficial qualquer, mas um documento do rei, um documento do soberano;
4º – é um documento do soberano, muitos anos antes de outro rei (D. Dinis), em 1290, ter tornado o português língua oficial e obrigatória e que, portanto, pela primeira vez, rompeu com o uso do latim que era a prática comum a esse nível.
o Testamento de D. Afonso II é, em suma, o primeiro documento escrito na nossa língua já adoptada ao mais alto nível de um Estado – justamente o Reino (Portugal) que lhe deu o nome (português) e que, mais tarde, lhe construiria o estatuto.
E: Quantos signatários tem o Manifesto 2014?
J.R.C: São 66 personalidades de Macau ao Brasil, de Portugal a Angola, de Cabo Verde a Moçambique, da Guiné-Bissau a Timor-Leste, incluindo dois presidentes da república, dois primeiros-ministros, um presidente e um vice-presidente de parlamentos nacionais, actuais e antigos membros de governos, dois presidentes de comissões parlamentares, figuras carismáticas e referenciais da História do nosso tempo, diplomatas de primeiro plano, altos responsáveis institucionais e universitários, escritores, músicos, linguístas e professores, gestores culturais e líderes empresariais, editores e jornalistas, deputados de correntes diversas e outras figuras da cultura, do ensino e da expressão em língua portuguesa – compondo, na verdade, um universo muito qualificado, simbólico e representativo de subscritores do MANIFESTO 2014 – 800 ANOS DA LÍNGUA PORTUGUESA.
E: No âmbito deste manifesto estão previstas outras iniciativas no decurso do Ano da Língua Portuguesa?
J.R.C: Como disse, há outras entidades promovendo as mais variadas iniciativas. A ideia pegou. E, como dizemos, isto é como as cerejas: uma coisa puxa outra.
Por exemplo, soube ontem que a Academia Portuguesa de Cinema exibe um documentário muito interessante no próximo dia 2 de Julho. E há várias coisas a mexer a diferentes níveis, em Portugal e no espaço da lusofonia. Isso é muito bom. Por mim, meter-me-ei também noutras de que goste e em que possa contribuir. Esta ideia é, afinal, uma genial operação de relações públicas da língua portuguesa, despertando-nos mais para a sua importância e valor. É fundamental não desperdiçar esta oportunidade.