Cucula ou sobreviver na Europa com barcos naufragados

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Esta é a estória de Ali, Maiga, Malik, Moussa e Saidou. Cinco homens que fugiram à guerra e à miséria na terra natal, seja o Mali ou o Níger

Esta é a estória de Ali, Maiga, Malik, Moussa e Saidou. Cinco homens que fugiram à guerra e à miséria na terra natal, seja o Mali ou o Níger. Sobreviveram à travessia clandestina do Mediterrâneo, alcançaram Lampedusa, pararam em Berlim. Consideram-se um grupo que a adversidade uniu para sempre. Autointitulam-se “Cucula”, o que na língua hausa significa “tomar conta um do outro”.

Sem teto e sem trabalho – esta seria uma estória de refugiados como muitas outras. Mas não é porque tiveram uma ideia inusitada: os Cucula começaram a construir
cadeiras com madeira proveniente de barcos naufragados. Os destroços dos barcos que repousam na famigerada ilha italiana de Lampedusa testemunham silenciosamente uma catástrofe humanitária. Ano após ano, milhares de refugiados perdem a vida que esperavam salvar com a travessia do Mediterrâneo.

Ali Nouhou tenta, pouco a pouco, consolidar as técnicas de carpintaria. O projeto Cucula pretende demonstrar como os refugiados podem, também eles, abrir portas nas sociedades onde procuram abrigo e criar oportunidades. “Havia 350 pessoas no barco que me trouxe. Penso muitas vezes naqueles que desapareceram no mar. Vi uma criança com a mãe… Não pude salvá-los. Era um bebé de um ano. Não se salva nem o barco, nem as pessoas”, afirma.

Chegar clandestinamente à Europa significa mergulhar noutra realidade, entre a solidão, a miséria, a falta de uma casa, e o fenómeno da xenofobia que parece não parar de se intensificar. Mas a questão é que não havia escolha. Saidou conta ter visto “coisas horríveis ao atravessar o Saara. Vi com os meus próprios olhos pessoas a morrerem. Eu não sabia como as ajudar. Também eu estava esgotado. (…) Na Líbia, os soldados do Khadafi obrigaram-nos a entrar em barcos sobrelotados. Éramos 300 numa pequena embarcação.”

Maiga aponta a “guerra no Mali. Foi por isso que viemos embora. Não há nada lá. Não era possível ficar naquela região. Há guerra em todo o lado: Tombuctu, Gao, Kidal. Guerra em todo o lado.”

Os países europeus concedem asilo em caso de perseguição. Durante a formalização do processo, os refugiados têm de permanecer no país por onde entraram na Europa. Oficialmente, estes cinco companheiros não têm direito a trabalhar, nem sequer a ficar em Berlim. As autoridades alemãs pretendem enviá-los para Itália. Mas eles esperam que o projeto Cucula ajude a mudar a situação.

Saidou declara que não entende: “Deram-me documentos em Itália, vim para a Alemanha, chego aqui e dizem-me que não posso trabalhar, que tenho de regressar a Itália. Eu achava que a Europa era uma união e que, com os papéis que me deram em Itália, podia trabalhar em todo o lado…”

O governo alemão está a preparar a alteração do quadro legal relativo a estas migrações, de forma a facilitar a inserção no mercado de trabalho. Colocámos a pergunta a Heiko Habbe, do Serviço Jesuíta aos Refugiados: que mudanças estão exatamente em causa? A resposta: “Os requerentes de asilo tinham de aguardar um ano até serem autorizados a trabalhar. O prazo foi reduzido para nove meses e agora caiu para três, o que é positivo. Estes requerentes, e todas as pessoas que vieram por razões humanitárias, devem poder aceder aos meios necessários para garantir a sua subsistência. É totalmente absurdo mantê-los fora do mercado de trabalho e obrigá-los a recorrer aos apoios sociais. No entanto, a facilitação das autorizações de trabalho não vai abranger as pessoas que têm o estatuto especial concedido por questões humanitárias. Os refugiados enfrentam uma espécie de lotaria: em alguns países europeus, conseguem construir um novo futuro; noutros, são atirados para uma terra de ninguém.”

Durante mais de um ano, os cinco homens viveram numa espécie de acampamento improvisado, junto a uma praça de Berlim. Aliás, foi assim que surgiu o primeiro contacto com o trabalho de carpintaria: ajudavam a construir pequenos abrigos para refugiados como eles que se concentravam nesta área.

Acabaram por conhecer Sebastian, um arquiteto inspirado pelo trabalho de Enzo Mari, o designer italiano antissistema que defende o “faça você mesmo”. Mari aceitou que estes refugiados reproduzissem as suas peças de mobiliário.

O objetivo agora é criar uma empresa de artesanato e design composta por refugiados. Antes do Natal, lançaram na internet uma campanha de crowdfunding, ou financiamento coletivo, de forma a conseguirem dar o arranque à ideia de uma startup. Corinna Sy dá-lhes uma mão. “Eles deixaram Itália porque não havia nenhum horizonte para eles lá. É sempre a estória da espada de Dâmocles, existe a ameaça de serem deportados de volta… O projeto Cucula quer oferecer formação profissional a refugiados. Vamos tentar recolher 70 mil euros através do crowdfunding. Pretendemos criar bolsas para refugiados, para que as autoridades reconheçam que eles têm a capacidade de se sustentarem e lhes venham a atribuir autorizações de residência”, realça.

A verdade é que as expetativas foram superadas: conseguiram arrecadar mais de 123 mil euros. Por agora, o abrigo do grupo Cucula é um centro cultural para jovens. O próximo desafio é aprender ou aperfeiçoar o alemão.

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