"Contratos zero horas": Uma polémica britânica

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Deve o Reino Unido ser louvado pelas reformas no mercado de trabalho ou denunciado pelo fim de direitos laborais?

William vive na sombra da incerteza. A qualquer momento pode ser chamado para trabalhar. Isto é, o seu empregador, uma fábrica de bolos em Liverpool, exige-lhe disponibilidade total para o poder convocar a qualquer altura, sem receber mais por isso. Aliás, sem praticamente nenhum direito associado enquanto trabalhador.

William, nome fictício, pode trabalhar trinta horas por semana. Ou dez. Ou nenhuma. Depende exclusivamente das necessidades da fábrica. Assinou um dos chamados “contratos zero horas”, um vínculo obtido há anos através de uma empresa de trabalho temporário. Há muito que William deixou de acreditar na possibilidade de um contrato efetivo. Tem uma filha pequena para sustentar e a precariedade faz parte da sua vida.

“Se ficarmos doentes, os dias de baixa não são pagos… Se não formos trabalhar, não somos pagos. É simples. Quando nasceu a minha filha, tinha direito a meter uma licença de paternidade. Tentei saber se não ia ter problemas, meti todos os documentos necessários. Estive duas semanas fora. Depois descobri que não tinha dinheiro nenhum no banco. No trabalho acabaram por me dizer que não tinha direito a nada, porque não estava lá há mais de seis meses. Mas a verdade é que tinha trabalhado mais de seis meses…”, explica.

Os contratos zero horas são constantemente denunciados como um atropelo aos direitos dos trabalhadores. Alguns grupos, como a Sports Direct, têm 90% dos empregados sob este regime apelidado de “ultra-flexível”. Os processos judiciais multiplicam-se, com funcionários a reclamar direitos depois de anos de trabalho. “Eu trabalho com pessoas que têm contrato permanente, que ganham muito mais do que eu e que fazem exatamente a mesma coisa. Às vezes, os que têm contratos temporários trabalham até mais para se destacarem. É frustrante… Nunca sei se vou chegar ao final da semana com dinheiro para pagar a renda, as contas, a alimentação. Não vivemos, sobrevivemos…”, afirma William.

Os Conservadores britânicos congratulam-se com a criação de mais de dois milhões de empregos desde 2010 e com a flexibilização do mercado de trabalho. Os Trabalhistas pretendem acabar com os contratos zero horas o mais rapidamente possível.

A Extraman é uma empresa de trabalho temporário denuncia os vazios legais que permitem cometer abusos. Todos os meses aparecem novas formas de contornar as obrigações laborais. O diretor, Adrian Gregory, diz que “é necessária uma grande reforma, porque a exploração e a corrupção tornaram-se tão generalizadas que há centenas de milhares de trabalhadores a perder diariamente os seus direitos. Há um esquema que tem a ver com as despesas em viagem. Há isenções de que o trabalhador deveria usufruir, mas são as empresas de trabalho temporário que se apropriam delas. É um esquema que tem feito perder ao fisco mais de mil milhões de libras por ano.”

O reverso da medalha encontra-se igualmente no argumento da flexibilidade. Para fugir ao desemprego em Itália, Nicola Payo Fioretti veio viver para Londres, onde um contrato zero horas lhe permitiu encontrar rapidamente um trabalho como empregado de bar num ginásio. “A situação do mercado de trabalho em Londres é completamente diferente do que se passa em Itália. Aqui não é um problema mudar de trabalho – numa semana, arranja-se outro. (…) Eu tenho sorte, porque trabalho 40 horas por semana. Por outro lado, não tenho direito a baixa, nem a férias. Se quiser tirar duas semanas, perco duas semanas de trabalho, durante as quais não ganho nada.”

A Confederação Industrial britânica avisa que o mercado tem de ser mais ágil. Vários sindicatos alertam para a criação de uma classe precária de trabalhadores mal pagos e levados a estar à disposição dos patrões. Nicola Smith, da plataforma sindical TUC, aponta que “há, pelo menos, 700 mil pessoas com contratos horas zero. Temos assistido a um aumento muito rápido destes contratos ao longo dos últimos anos. Preocupa-nos que uma grande fatia dos empregos criados seja não só mal paga, como muito instável.”

A situação fora das grandes metrópoles não parece ser melhor. Há sete anos que Cecily Blyther é professora de alunos com necessidades especiais em Barnstaple. Tem um contrato zero horas, aliás como um em cada quatro funcionários do setor educativo britânico. “De julho a setembro, fico praticamente sem meios de subsistência. Nos últimos dois anos, comecei a acumular dívidas e tive de pedir ajuda à minha mãe. Há professores que fazem limpezas, outros que trabalham em supermercados, para aguentar até as aulas começarem em setembro”, garante.

Geoff Southern foi professor e depois dedicou-se a dar auxílio aos sem-abrigo. Vive na ilha de Jersey onde fundou um partido reformista. Tem como principal alvo de combate os contratos zero horas. Para Geoff, “a questão é que não há controlo… As empresas de trabalho temporário são utilizadas para contornar a lei. Há contabilistas e gestores a ser contratados só através destas empresas. Nalguns casos, nem sequer têm direito à reforma, ao contrário dos colegas com quem trabalham.”

O ponto de vista do patronato é-nos dado por Gino Risoli, proprietário de vários cafés. E é uma perspetiva bastante pragmática: acabar com as leis propostas pelos Trabalhistas e adotar um sistema que lhe permita liberdade total, ou seja, contratar e despedir sem restrições. “Os contratos zero horas foram criados por empregadores para minimizar durante um certo período de tempo as consequências de um conjunto de leis. Durante os primeiros seis ou doze meses, era possível despedir alguém que não se enquadrasse na empresa. Não me venham pedir indemnizações, nem licenças de maternidade. Eu estou a gerir um negócio”, declara.

O Reino Unido desloca-se então entre os que pretendem um mercado laboral menos regulado e os que afirmam que o que é mesmo preciso é apertar o controlo. Segundo Adrian Gregory, “deviam existir critérios de licenciamento rigorosos, um organismo de controlo, um provedor… Devia haver uma estrutura com as unhas e dentes necessários para não só acabar com a exploração, mas também arrecadar o dinheiro que foge aos cofres do Estado. Se eu fosse dormir todas as noites a saber que ando a explorar trabalhadores mal pagos, provavelmente mudava de profissão.”

O governo conservador aumentou em 20% o salário mínimo, num país onde os contratos zero horas triplicaram desde 2010.

Bónus web **Nicola Smith: “Os novos empregos são mal pagos e instáveis”**Entrevista integral (em inglês) com a responsável da plataforma sindical TUC: www.euronews.com/2015/05/01/nicola-smith-new-jobs-are-mostly-low-pay-and-insecure

Adrian Gregory: “Todos os meses há esquemas novos” Adrian Gregory é dono de uma empresa de trabalho temporário e denuncia a falta de escrúpulos no setor. Entrevista integral (em inglês): www.euronews.com/2015/05/01/adrian-gregory-a-new-scam-is-invented-every-month

**Geoff Southern: “As empresas de trabalho temporário contornam a lei”**Entrevista integral (em inglês) com o político do “Reform Jersey”: www.euronews.com/2015/05/01/geoff-southern-temp-agency-work-is-used-to-get-round-the-law

**Gino Risoli: “É preciso acabar com as leis laborais dos Trabalhistas”**Entrevista (em inglês) com Gino Risoli, empresário que defende a total flexibilidade laboral: www.euronews.com/2015/05/01/gino-risoli-put-all-employment-laws-into-the-dustbin

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