Um mister do diabo

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Se o papa Francisco quiser realmente tomar medidas, tem de se informar sobre o que aconteceu

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As catástrofes económicas e ambientais não são as causas, são as consequências, afirma um banqueiro singular. Ettore Gotti Tedeschi, economista, financeiro e antigo presidente do Instituto das Obras Religiosas (IOR), mais conhecido como banco do Vaticano, confessou-se à euronews, numa entrevista que mistura economia e fé cristã. A instituição da Santa Sé foi acusada de branqueamento de capitais.

euronews:

O senhor presidiu ao banco do Vaticano durante o pontificado de Bento XVI. No seu mandato pediu ajuda a perito internacionais da luta contra o branqueamento de capitais para recolocar a instituição no “bom caminho” da transparência financeira. Porque é que a Santa Sé rejeitou o seu plano?

Ettore Gotti Tedeschi:

Muita gente no Vaticano não compreendeu o que aconteceu depois do 11 de setembro de 2001 e não percebeu que as novas regras internacionais que iriam reger os sistemas bancários seriam bastante mais rigorosas. Em segundo lugar, muitas pessoas na Santa Sé receavam uma perda de soberania se aceitassem as novas normas. Em terceiro lugar, por razões culturais, há muito quem pense que os controlos não são legítimos, porque no Vaticano há factos a defender, e quem confunda segredos com confidencialidade. Essas pessoas não perceberam que, no contexto em que vivemos, a ausência de controlos internos iria provocar um aumento dos controlos externos. Em quarto lugar, houve quem não percebesse que o perigo relativamente à legislação contra o branqueamento de capitais provocaria uma perda de credibilidade do Santo Padre. O problema no centro do debate é que me desencorajaram e escorraçaram-me invocando 9 razões totalmente falsas. Pedi, de imediato, um inquérito sobre esses 9 pontos mas ele nunca foi feito nem me interrogaram. A ferida mais grave, mesmo no interior da Igreja, é que eles não quiseram compreender nem saber a verdade.

euronews:

Quando foi brutalmente despedido o senhor receou pela sua segurança e reuniu um dossier sobre os segredos do banco do Vaticano…

EGT:

Os factos ocorreram de forma completamente diferente, mas essa é uma questão que está nas mãos da justiça italiana pelo que prefiro não falar disso.

euronews:

O Moneyval, o comité de peritos do Conselho da Europa para a avaliação das medidas de luta contra o branqueamento de capitais, identificou sempre bastantes lacunas nas finanças do Vaticano. Acredita que o papa Francisco vai conseguir mudar a situação?

EGT:

*Durante o meu mandato como presidente do IOR, o Moneyval fez duas inspeções importantes. A primeira foi em novembro de 2011 quando veio inspecionar o que tínhamos feito no ano precedente e nos deu um parecer positivo. Mas, em dezembro de 2011, um mês depois, a lei do Vaticano relativa a estas questões mudou de forma inesperada. Foram modificados 4 pontos, e em particular o papel da autoridade de controlo. O escândalo Vatileaks rebentou nessa altura e um banco, o JP Morgan, fechou a conta no Vaticano com um enorme eco mediático. O Moneyval regressou a Itália mais uma vez e, em abril de 2012, escreveu um segundo relatório no qual afirmou que foi dado um passo atrás. Um mês depois eu já não estava lá.

euronews:

Pensa que os desvios de fundos continuam no Banco do Vaticano?

EGT

Eu não sei nada, mas se não há legislação, se os procedimentos não existem e se não há uma autoridade de controlo é evidente que existe um risco.

euronews:

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Mas o papa Francisco pode resolver as coisas?

EGT:

Se o papa Francisco quiser realmente tomar medidas e não apenas fazer declarações de reformas, ao estilo do primeiro-ministro italiano Matteo Renzi, então tem de se informar sobre o que aconteceu.

euronews:

Mesmo Hollywood denuncia o cinismo criminoso da alta finança nos Estados Unidos, como os créditos hipotecários arriscados, os ativos tóxicos. Acredita que basta a um banqueiro ter bons sentimentos para desarmar as consequências nefastas destas ações?

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EGT:

Nesse caso preciso, o cúmulo do cinismo não vem do meio bancário mas da classe política que, para lutar contra a crise, a queda do PIB e para esperar reduzir a dívida sem reduzir o endividamento deram rédea livre aos banqueiros e libertaram o seu famoso instinto animal. A responsabilidade é pessoal, não há uma responsabilidade coletiva. Cada pessoa deve saber se o que faz é bom para si mesmo e para o bem comum.

euronews:

Como é possível aceitar que um banqueiro possa receber prémios pelos produtos financeiros tóxicos e não seja acusado pela justiça?

EGT:

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Se quiser uma explicação de natureza técnica ela é simples. De um ponto de vista moral, eu penso que não deveriam existir nunca esse tipo de bónus e se um banqueiro o recebeu, deveria devolvê-lo.

Un mestiere del diavolo. Ci siamo: ecco il mio libro intervista a Ettore #Gotti Tedeschi: https://t.co/KOUbA9fg3j

— Paolo Gambi (@paologambi) 3 de dezembro de 2015

euronews:

As decisões económicas são tomadas por pessoas iluminadas que estão entre Nova Iorque e Washington que enviam para Bruxelas as conclusões com a indicação do que deve ser feito. Isto é o que o senhor diz no livro “Um mister do diabo” que publicou com o jornalista Paolo Gambi. Por isso lhe pergunto, a Europa não tem peso nenhum a nível internacional?

EGT:

Eu acho que hoje deveríamos todos colocar a pergunta: mas quem é que tem peso? Atualmente ninguém sabe onde está o poder. A Europa poderia ter uma vantagem enorme, a de ser um ponto de equilíbrio. Ela poderia apoiar a estratégia dos Estados Unidos, que estão bastante preocupados por causa de uma Ásia em plena explosão de crescimento, ou a Europa poderia fazer as suas próprias escolhas. A Europa é um elemento chave neste momento, na minha opinião, neste sistema de reorganização dos poderes geopolíticos. Mas, o que é a Europa? Eu não percebi o que é a Europa nem quem é a Europa. Se a Europa é a Europa de Bruxelas, estamos mal. Mas se a Europa é a Alemanha, então estamos ainda pior.

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euronews:

Shakespeare escreveu em Hamlet que “o tempo está fora dos eixos”. Estas palavras parecem-me reveladoras do que se passa no mundo em vários domínios e, sem dúvida, há muitos séculos. Acredita que a religião e a moral podem colocar o mundo nos eixos?

EGT:

Não há religião que imponha um sistema cultural. Não podemos impor o que quer que seja. É preciso acreditar de forma individual e responsável a propósito do que é bom e do que é mau, com recurso é nossa liberdade pessoal. É por esta razão que a Igreja tem um papel deveras importante que nos tem faltado enormemente nos últimos 30 anos. Esta falta levou a que uma grande parte dos meios políticos e económicos internacionais não tenha mais esse sentido da vida. E se não tenho mais esse sentido da vida, como é que posso dar sentido às minhas ações.

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