"Kissinger deve responder por Timor-Leste"

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De  Nelson Pereira
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Chamam-lhe o “caçador de ditadores”.

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Chamam-lhe o “caçador de ditadores”. Reed Brody persegue, há mais de trinta anos, dirigentes políticos em todo o mundo. O seu último troféu é o ex-presidente do Chade, Hissène Habré. Brody gostaria de ver Bush responder em tribunal por violações dos direitos humanos. E Kissinger, antes que morra.

“Mais do que meter na prisão o criminoso, o que me interessa é apoiar as vítimas que se batem pela justiça, ajudá-las a reconquistar a dignidade”, disse o advogado americano à Euronews em Genebra, onde participou no debate “O Tribunal Penal Internacional debaixo de fogo”.

Brody trabalhou com a organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch (HRW) entre 1998 e 2016. Esteve pessoalmente envolvido nas investigações e preparação dos processos penais contra pelo menos quatro ditadores apoiados pelos Estados Unidos durante a administração Reagan: Augusto Pinochet no Chile, Hissène Habré no Chade, Jean-Claude Duvalier no Haiti, Ríos Montt na Guatemala.

Tem dedicado a sua vida a apertar o cerco aos grandes criminosos políticos. Quando em 2012 o colectivo de juízes do tribunal especial da ONU para a Serra Leoa considerou o antigo presidente da Libéria, Charles Taylor, penalmente responsável por crimes contra a humanidade e crimes de guerra cometidos entre 1991 e 2002, durante o conflito na Serra Leoa, que custou a vida a 120 mil pessoas, o advogado da HRW lançou um aviso aos poderosos: “Com este veredicto, Taylor tornou-se o primeiro ex-chefe de Estado condenado por um tribunal internacional por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, depois do processo de Nuremberga. A mesma lógica legal poderia ser aplicada a Vladimir Putin ou a Henry Kissinger.”

Charles Taylor foi condenado por ter encorajado e fornecido armas e apoio logístico aos rebeldes de Serra Leoa, uma cumplicidade criminosa que traz à memória de Brody o papel de Kissinger nas atrocidades cometidas durante a invasão indonésia de Timor-Leste: “Kissinger tem Timor-Leste na consciência.” Documentos tornados públicos em 2001 revelaram que em 6 de Dezembro de 1975, na véspera da invasão de Timor-Leste, o presidente dos Estados Unidos, Gerald Ford, e o secretário de Estado, Henry Kissinger, deram luz verde à operação militar, num encontro em Jakarta com o ditador indonésio, o general Suharto. A ocupação estendeu-se até 2002, tendo custado a vida a cerca de 200 mil timorenses. Os EUA forneceram ao exército indonésio 90% das armas utilizadas e Kissinger garantiu que os fornecimentos prosseguissem apesar das restrições impostas pelo Congresso norte-americano, quando o balanço da invasão se elevava já a dezenas de milhares de civis mortos. “Infelizmente, os poderosos e aqueles que eles protegem continuam a conseguir escapar a uma arquitectura judicial internacional ainda em via de desenvolvimento.”

O combate contra a impunidade dos poderosos

Nascido em 1953 em Nova Iorque, filho de um judeu húngaro escapado dos campos de trabalho forçado alemães e de uma mãe militante pacifista, Reed Brody sentiu cedo o apelo a alinhar com os mais fracos. Na década de 70 militou contra a guerra no Vietname. Enquanto a maioria dos seus colegas da faculdade de direito de Columbia integra as instituições financeiras de Wall Street, ele teima em ser o “advogado dos perseguidos”.

Em 1984, deixa o cargo de assistente do procurador-geral do estado de Nova Iorque. Parte para a Nicarágua, onde recolhe testemunhos das atrocidades cometidas pelos Contra, a guerrilha armada por Washington que combate os sandinistas de Daniel Ortega, então no poder. Com base nos testemunhos das vítimas, obtidos graças à ajuda de missionários católicos, elabora um relatório detalhado. Publicado em 1985 pelo New York Times, o documento leva o Congresso a convocar um inquérito e a cancelar durante algum tempo o financiamento dos Contra nicaraguenses.

Entre 1987 e 1992, Brody trabalha em Genebra, com a Comissão Internacional de Juristas e a Comissão dos Direitos Humanos da ONU. É enviado pelas Nações Unidas ao Salvador, em 1994, e à República Democrática do Congo em 1995 e 1997.

Em 1998, já a bordo da HRW, participa na Conferência de Roma que valida os estatutos do Tribunal Penal Internacional (TPI), o primeiro tribunal permanente depois de Nuremberga. Em Outubro do mesmo ano, Augusto Pinochet é detido em Londres. A HRW é reconhecida parte no litígio e Brody faz chegar os seus relatórios aos juízes britânicos. Quando em Novembro a Câmara dos Lordes retira a imunidade ao antigo ditador chileno, o combate do advogado americano contra a impunidade dos poderosos conquistou um marco novo.

O precedente Pinochet

Prisioneiro político do regime de Hissène Habré, Souleymane Guengueng prometeu a Deus que se sobrevivesse não descansaria enquanto não obtivesse justiça. A associação das vítimas que fundou tinha iniciado já diligências judiciais quando em 1998 o parlamento britânico retirou a imunidade a Pinochet. Souleymane Guengueng percebeu que estava criado um precedente e contactou a HRW para pedir apoio jurídico.

Foi assim que começou para Reed Brody uma saga de 17 anos no encalço de Habré, acusado de 40 mil assassinatos e práticas sistemáticas de tortura durante os oito anos como presidente do Chade, desde 1982. Julgado em 2015 no Senegal, onde vivia exilado desde 1990, o antigo ditador foi condenado um ano depois a prisão perpétua, por crimes contra a humanidade que incluíam tortura, violações e escravatura sexual. Foi o primeiro processo de competência universal realizado no continente africano, o primeiro no qual um chefe de Estado foi julgado num tribunal de outro país.

“Segundo o Estatuto de Roma, as vítimas são agentes da justiça internacional e não apenas sujeitos passivos”, sublinha Reed Brody.

Foi assim no processo de Habré: os testemunhos dos sobreviventes foram determinantes para que o tribunal senegalês apoiado pela União Africana condenasse o ditador. No processo de Jean-Claude Duvalier por crimes contra a humanidade, foi essencial a perseverança de sobreviventes como Boby Duval, que registou 180 mortes na cela de prisão de Fort Dimanche, e a journalista Michèle Montas. Do mesmo modo, no julgamento de Rios Montt a a estratégia de acusação baseou-se nos testemunhos das comunidades indígenas e dos activistas dos direitos humanos, que identificaram os sobreviventes.

A resistência dos EUA

Os Estados Unidos apreciam a existência de um sistema de justiça que seja aplicado aos outros países do mundo e têm sido um contribuidor de primeiro plano para a arquitectura de um sistema internacional de responsabilização. Com uma excepção, ressalva Brody: “Esse sistema não deve ser aplicado aos Estados Unidos. Gostam do tribunal de Haia para a Jugoslávia, para o Ruanda, Serra Leoa ou Camboja, mas não de um tribunal que tenha jurisdição ilimitada.”

Segundo o activista dos direitos humanos, esta convicção é partilhada pela maior parte dos decisores políticos em Washington. Democratas e republicanos não apreciam a ideia de que Washington pudesse ver-se constrangido nas suas estratégias militares por uma lei internacional aplicada por uma entidade judicial internacional. “A visão tradicional da protecção dos interesses americanos é que os interesses americanos estão melhor protegidos se os Estados Unidos forem o país mais forte e não se forem submetidos a um sistema de regras e normas legais internacionais.”

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A sociedade americana não está sequer consciente de que estas coisas aconteceram: “Quando recentemente, numa entrevista à Fox News, perguntaram a Donald Trump sobre a Rússia, respondeu que o nosso país não é assim tão inocente. Se formos honestos, foi uma afirmação com sentido de realidade”, constata, acrescentando que “nenhum país que exerça o tipo de poder que os Estados Unidos exercem, sejam os Estados Unidos, a Rússia ou a China, vai ter uma política internacional inteiramente ética.”

Quando em 2011 se tornou evidente que a administração de Barack Obama não pretendia avançar com nenhuma acção legal contra o ex-presidente George W. Bush na sequência do relatório do Senado norte-americano sobre a utilização de técnicas de tortura pela CIA depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001, Reed Brody fez-se ouvir. Apelou aos tibunais do mundo inteiro para que lançassem processos judiciais contra Bush, o ex-vice-presidente Dick Cheney, o ex-secretário de Defesa Donald Rumsfeld e o ex-director da CIA George Tenet, por terem ordenado a prática de tortura e outros crimes. “Sob a legislação internacional qualquer governo tem jurisdição para julgar casos de tortura e crimes de guerra”, remata Brody.

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