Na linha da frente: nem os mortos descansam em Donbas

Na linha da frente: nem os mortos descansam em Donbas
De  Natalia Liubchenkova
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A Euronews foi ver como se vive e se sobrevive num conflito sem fim.

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Viver no leste da Ucrânia, região castigada por um conflito sem fim, é tarefa complicada, mas, para muitas famílias, não há outra opção. Por todo o lado, há histórias de superação, num quotidiano de que pouco se fala, mas também de luta pela paz, até na morte. Natalia Liubchenkova, jornalista da Euronews, viajou até Donetsk, onde descobriu como nem os mortos escapam ao conflito.

"Consegue ver a cratera no telhado daquela casa? Foi lá que lançaram o míssil," explica Vasylyna Nikolaeva, presidente do conselho municipal de Hranitne, pequena localidade situada na linha da frente do conflito. A história de um disparo que assutou muita gente. Uma história entre tantas que ilustram o terror sentido pelas populações em ambos lados da frente de batalha.

Neste caso, a casa destruída fez com que uma família com duas crianças decidisse deixar Hratnine. Foram instalar-se numa localidade não muito longe, mas mais longe da linha da frente.

"A filha mais velha ficou com um vizinho," explica Nikolaeva.

A viagem era cansativa e toda a região se encontra debaixo de fogo. O perigo está por todo o lado e a possibilidade de morrer, vítima de um lançamento de míssil é bem real. Mas deixar uma das filhas não foi boa ideia. A casa foi atingida e a criança acabou por morrer. O vizinho sofreu ferimentos.

Mas até na morte, a paz não é assegurada em Hranitne, localizada nas margens do rio Kalmius, definido como a "linha de contacto" entre Kiev e os separatistas pró-russos.

Depois do enterro, a família da criança deslocou-se ao cemitério. Encontraram a campa destroçada por armamento pesado. O cemitério acabou fechado durante alguns meses. Visitá-lo era encontrar a morte.

Nikolaeva serviu de guia a Natalia durante o passeio pela localidade. Visitaram primeiro os edifícios do poder local. Em todos eles, as marcas de um conflito que teima em continuar.

Quando a guerra começou, em 2014, Vasylyna estava grávida. Trabalhava num dos edifícios do conselho municipal. Recorda que os colegas a esconderam numa casa de banho, longe das janelas. Foi o mais seguro em que conseguiram pensar.

Outra vez, estava com o marido quando começaram os disparos. Tiveram de correr, descalços, para a cava que têm no quintal. Ficaram escondidos quase a noite toda, quando entenderam que não poderiam permanecer ali. Mataram as vacas que tinham pegaram na carne, meteram algumas coisas no carro e fizeram-se à estrada. Uma estrada debaixo de fogo.

Regressaram tmepo depois. O filho tem agora três anos e a localidade é mais segura, mas Natalia sentiu que a tensão permanece no ar, com disparos ocasionais.

As ruas de Hranitne estão trnaquilas. Há poucos passeios e há poucas passadeiras. Há também poucos carros na rua. Natalia encontra algumas pessoas, mas que, por causa da câmara fotográfica, depressa apertam o passo.

Ainda assim, acontecem coisas todas as semanas na pequena aldeia. O conselho municipal quer trazer as pessoas aos eventos que organiza. Houve-se música. Há duas pequenas bandas que ensaiam todas as semanas. Perto do escritório de Nikolaeva, Natalia encontra um grupo de ativistas em reunião.

Grande parte dos danos teve lugar entre 2014 e 2015 e as pessoas abandonaram essas casas. Graças a fundos recolhidos a nível nacional e internacional, o edifício do hospital foi recuperado, assim como uma livraria e uma escola de música para crianças.

Hranitne tinha cerca de 3800 habitantes antes do início do conflito. Pelo menos 800 pessoas foram embora. Calcula-se que 40% da população seja composta por reformados. Há cerca de 300 crianças em idade escolar. Mas também há famílias que se vão embora durante o inverno. Aquecer uma casa deixou de estar acessível a todos.

Viver na "linha de contacto"

A localidade situadas ao longo da linha da frente, são as mais próximas da frente de batalha que se encontram mais vulneráveis. Os residentes mais velhos costumam arriscar as suas vidas para recolher a pensão. Há sítios onde a circulação foi proibida.

As pessoas continuam a morrer em localidades e aldeias ao longo da chamada linha de contacto. Algo que acontece apesar do Protocolo de Minsk e do Acordo de Minsk II. O objetivo do acordo era a paz na região de Donbass em 2015, mas tal nunca aconteceu.

Entre novembro do ano passado e fevereiro, as Nações Unidas falam em 73 pessoas atingidas pelo conflito, 12 das quais morreram. Todas as vítimas eram civis.

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Natalia Shapovalova é analista de política internacional no Carnegie Europe. Explicou à Euronews que "os combates continuam". E como a chamada linha de contacto atravessa aldeias inteiras, "as pessoas sofrem muito."

"Há quatro anos que a população vive em crise permanente. Em pressão permanente. Mesmo nos dias em que não há ataques, ouvem sons de explosões."

Algumas localidades vivem sem energia. O carvão das minas é demasiado caro para ser comprado pelos residentes locais. Para além de más condições de vida, existe ainda o problema ambiental, já que várias minas se encontram abandonadas. A água da região encontra-se cada vez mais contaminada, mas, ainda assim, é consumida por gente sem alternativa.

Depois, há o problema das famílias separadas pelo conflito. Pais e filhos que não comunicam. Até há bem pouco tempo, as chamadas de telefone feitas a partir das zonas controladas pelos rebeldes pró-russos não chegavam ao resto do território ucraniano.

Por isso, muitos arriscam a vida e deslocam-se a zonas mais próximas da linha de contacto, na esperança de conseguir fazer uma chamada. Muitas vezes, em vão. O papel da Internet tornou-se assim determinante. Só assim as pessoas conseguem falar umas com as outras.

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Nikolaeva, como muitos outros, tenta encarar o futuro de forma positiva e espera que as coisa melhorem, ainda que a pouco e pouco:

"Todos os nossos esforços são feitos no sentido de recuperar as instituições públicas e de prestar apoio às crianças, aos mais velhos e aos doentes."

Natalia ouviu a banda que ensaiava no edifício do conselho municipal de Hranitne. "Se não organizarmos entres encontros musicais, como festivais, nem há vida. E se não houver nada para as crianças, nem existimos. As pessoas estão exaustas, mas este momentos, este tipo de atividades, são muito importantes para eles."

Jornalista multimédia na Euronews, Natalia Liubchenkova é autora do projeto fotojornalístico "Donbass: para além das manchetes", com exposição patente ao público em Berlim, de 16 a 31 de março, na Academia Konrad-Adenauer.

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