"A Europa tem o dever de receber as pessoas que fogem da guerra e da perseguição".

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A euronews entrevistou Filippo Grandi, Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados. Uma conversa sem cortes sobre o tema das migrações.

**A euronews entrevistou Filippo Grandi, Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados. Uma conversa sem cortes sobre a questão das migrações que pode ler abaixo na íntegra ou ver no vídeo acima.
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Andrew Neil (euronews) Estamos ainda perante uma crise migratória na Europa?

Filippo Grandi: "Será que tivemos uma crise migratória (na Europa)? Penso que temos que ter cuidado quando falamos sobre o assunto. Honestamente, quando olhamos para os números, dos 70 milhões de refugiados e populações deslocadas em todo o mundo, entre 85 a 90 por cento não estão na Europa, não estão na América, não estão na Austrália; estão em países pobres ou em países em vias de desenvolvimento. Aí, sim, é onde há uma crise. Claro que tivemos, a dada altura, pessoas a chegar à Europa em grande número. Isso foi crítico e não foi bem gerido, agravando a crise. E depois essa crise foi politizada, agudizando a situação de forma irreversível".

Os políticos pensaram certamente que era uma crise e trataram a situação como uma crise. E para alguns políticos, tornou-se numa enorme crise, incluindo para Angela Merkel.

"Eu não culpo Angela Merkel, que na minha opinião fez o correto. Mostrou que a Europa ainda valorizava a solidariedade. Mas o problema é que, quando ela fez aquela famosa declaração de que os sírios seriam bem-vindos na Alemanha - não podemos esquecer que os sírios estavam naquela época a fugir de uma guerra atroz - o resto da Europa não seguiu o exemplo, o resto da Europa não compartilhou essa responsabilidade com a Alemanha. Ela foi deixada sozinha. Esse foi o problema".

E a mensagem que os políticos parecem retirar disso é que aqui estava Angela Merkel a correr o risco de acolher um milhão de refugiados ou migrantes. Ela era a líder mais poderosa da Europa e isso praticamente destruiu a sua carreira política. Essa foi também a mensagem para o resto da Europa. Por outras palavras, "não vamos fazer isso".

"Certamente. Aquilo com que não concordo é atribuir-lhe esse fracasso, quando o fracasso deve ser atribuído à incapacidade da Europa lidar com o assunto. E penso que é a Europa que tem que lidar com o assunto. Em primeiro lugar, porque a Europa tem o dever de receber as pessoas que fogem da guerra e da perseguição. Por isso, não se trata de uma escolha, na minha opinião, trata-se de um valor europeu. Essa é também uma obrigação europeia, de acordo com o direito internacional. Mas, ao fazê-lo, a Europa deve ser mais organizada, e é aí que voltamos à politização. O assunto tornou-se tão politizado que cada embarcação à deriva no Mediterrâneo com 20 pessoas se torna um drama europeu".

No Mediterrâneo ou no Canal da Mancha...

"...ou no Canal da Mancha".

...ou na Marinha, na Força Aérea ou nas Forças Armadas britânicas.

"E, como terá certamente notado, hoje em dia na Europa é uma corrida para ver quem consegue fazer o mínimo possível para acolher essas pessoas e lidar com elas. Não é um concurso de generosidade, é exatamente o oposto e isso é um absurdo. É também uma corrida para fugir à responsabilidade ou atribuí-la aos outros porque se tornou um tema politicamente tóxico. Este discurso é, como sabe, um círculo vicioso".

Falemos então sobre a escala do problema, sobre o que está a acontecer, e depois sobre algumas das possíveis soluções e respostas políticas. Desde 2015, o número de migrantes tem vindo a decrescer. No Mediterrâneo o número é mais baixo, e há também uma redução de cerca de 85% no número de migrantes que atravessam o Mediterrâneo em direção à Itália. No entanto, no ano passado o número de migrantes que chegaram à Europa por via marítima atingiu ainda os 117 mil, na sua maioria em direção à Itália, Espanha e Grécia. Mais de 2000 pessoas morreram no processo. Ou seja, estamos ainda perante um grande problema que continua por resolver.

"Claro que é um grande problema, não quero ser mal interpretado quando afirmo que não se trata de uma crise. Não é uma crise em comparação ao que o Líbano ou o Bangladesh estão a enfrentar, com muito menos recursos do que a Europa e com números muito, muito maiores. É uma crise no sentido de que ainda que seja uma só morte no Mediterrâneo é, na minha opinião, uma crise, especialmente na Europa, que tem o dever de resgatar essas pessoas. Mas, como disse, temos que organizar o processo de resgate, partilhar o desembarque e reformar o sistema de asilo, para que não sejam só os países da periferia - a Grécia, a Itália e agora a Espanha - a terem que lidar com todos os problemas, como acontece neste momento. Para isso, precisamos de coesão, de trabalhar em conjunto e despolitizar todo este fenómeno".

Bem, isso não está a acontecer. Quero dizer, neste preciso momento há um barco, o Sea-Watch 3, que é um navio de resgate. O navio resgatou 50 migrantes e foi-lhe recusada a entrada em Lampedusa - a ilha italiana mais próxima da costa da Líbia - e está agora a caminho de Malta. Também não sabemos se Malta vai aceitar o desembarque do navio. Malta sente que é "uma pequena ilha" e que tem de acolher "demasiados migrantes". Que está "na linha de frente". O que pensa que vai acontecer a estas pessoas?

"Nos últimos três ou quatro meses já tivemos vários casos como esse. No último desses casos tratou-se de dois barcos que estiveram à deriva pelo Mediterrâneo, por volta do Natal, em condições difíceis, cerca de três semanas com 49 pessoas a bordo. E estamos a falar de um continente de 500 milhões de pessoas, um dos mais ricos do mundo. Então, qual é o problema? No fim, foi encontrada uma solução: seis ou sete países decidiram compartilhar essa responsabilidade. O que é bom, porque eu concordo com os italianos, com os gregos e agora com os espanhóis, que não deve ser apenas um país a receber todos os migrantes, mas sim, precisamos de ter um sistema definido que funcione, caso contrário, torna-se uma negociação que, no clima atual, é muito difícil".

Essa foi uma solução ad-hoc.

"Sim, totalmente. E será também a solução para o presente barco. Posso apostar".

E não será uma estratégia, ou uma política. Falemos sobre uma das políticas: a operação Sofia, que é uma operação naval europeia de patrulha no Mediterrâneo. A operação salvou cerca de 50.000 pessoas desde 2015. Destina-se também a combater as redes criminosas de tráfico de pessoas. Parece que a operação Sofia - que é dirigida pelos italianos e utiliza navios de muitas nações europeias, incluindo da Alemanha - está a ser reduzida e poderá mesmo terminar. Que tem a dizer sobre isso?

"Estou preocupado, porque não é só a operação Sofia - que aliás, já no ano passado também foi reduzida - é o mecanismo de resgate no Mediterrâneo. Penso que as ONG têm desempenhado um papel muito importante nisso.

As ONG foram atacadas publicamente, criticadas; e o âmbito da sua ação foi limitado. Foram acusadas de fomentarem, de aumentarem o tráfico de pessoas; quando, na realidade, realizam um trabalho indispensável - juntamente com a guarda costeira dos diferentes países e os navios da operação Sofia - no resgate de pessoas. E fazem-no não de acordo com a lei dos refugiados ou com as regras de migração, mas de acordo com a lei marítima, que é muito antiga, remonta ao século XVII. Penso que temos um dever, que é global. Que é o dever, como seres humanos, de salvar pessoas que estão em perigo no mar".

Mas agora parece que estamos a fazer cortes nos recursos e não a obter os recursos necessários para esse fim. Até os alemães estão a dizê-lo, porque os navios da Alemanha estão a ser enviados pelos italianos para áreas onde não há refugiados.

"Como disse antes, e corretamente, o facto é que há uma quebra no número de pessoas a chegar à Europa. Uma quebra que é, na verdade, acentuada. Mas a percentagem daqueles que estão a morrer no mar, em proporção ao número de chegadas, está a aumentar".

Já este ano ocorreram várias mortes.

"De facto, entre 2017 e 2018 a nossa estimativa é que a percentagem de mortes duplicou, o que significa que há menos resgates. Mas deixando de lado quaisquer outras considerações, porque compreendo completamente a complexidade do problema, isto é absolutamente inaceitável, especialmente para a Europa. E estou a falar como europeu, não apenas como Alto-Comissário para os Refugiados".

De acordo com uma declaração sua, os movimentos de migrantes e refugiados devem ser, e passo a citar, "administrados de uma maneira pragmática e baseada em princípios." O que é que isso significa na prática?

"Na prática, significa ter aquilo a que chamaríamos um sistema de asilo que funcione melhor. Em primeiro lugar, uma melhor distribuição de chegadas, não apenas chegadas a uns poucos países. Em segundo lugar, um sistema que seja mais eficiente e rápido em julgar quem é um refugiado e quem não é.

Já fizemos inúmeras propostas à União Europeia para adotar um sistema melhor. Nós somos os que estão a promover um sistema sólido, com salvaguardas. Mas estamos também a dizer que o sistema tem que ser eficiente. Caso contrário, as pessoas esperam muito tempo e o sistema perde o impacto e o valor.

E depois - e isto é difícil - temos que ter um sistema em que aqueles que não são reconhecidos como refugiados possam seguir uma via diferente. São migrantes e a migração é absolutamente legítima. Mas tem outra lógica e outra dinâmica, e algumas pessoas poderão ter que regressar ao seu país de origem. E isso não está a acontecer. Não há acordos a funcionar entre os países europeus e os países de onde essas pessoas vêm. Por isso, a situação é muito complexa. Eu não estou, de forma nenhuma, a subestimar a complexidade de tudo isto, mas sim a sugerir um sistema diferente exatamente por causa dessa complexidade. A Europa precisa de estar unida. E nesta questão, de momento, não há unidade.

Muitas pessoas pensam que está a tornar-se cada vez mais difícil no mundo moderno fazer a distinção entre um refugiado, perante o qual existem obrigações legais de asilo, e um migrante económico, que é alguém que quer sair em busca de uma vida melhor. Podem sentir-se inseguros no país de onde vêm, mas não são bem refugiados. Veem melhores perspetivas [no país de destino]. Porquê condená-los? A distinção é turva e já não funciona.

"Eu concordaria com parte do argumento. Concordo que se tornou mais difícil fazer essa distinção. Não porque as pessoas não fujam por razões muito válidas. Que é o caso de todos, de facto. Ou se movam por uma razão muito válida, ou por uma variedade ou mistura de razões.

Tomemos o caso dos venezuelanos. Eu estive lá em outubro e foi muito interessante. Os venezuelanos estão a deixar o seu país em grande número. Estimamos que cerca de 3 milhões tenham saído do país nos últimos dois anos por razões que vão desde não poderem colocar comida na mesa para seus filhos, à perseguição política e tudo o mais. Por isso, eu sei que é difícil, mas quando se julga estes casos, é preferível pecar por excesso, porque devolver as pessoas ao seu país, onde podem correr perigo ou risco para as suas vidas, é algo que não podemos enfrentar. E é aqui que se definem as bases de referência internacionais para a proteção.

Depois, temos vários tipos de proteção internacional que podem ser oferecidos às pessoas: proteção temporária, proteção humanitária ou estatuto de refugiado, que é o mais seguro. Portanto, penso que as distinções ainda são válidas e importantes. Se queremos preservar a instituição do asilo é necessário investimento, é necessário debate e é necessária uma unanimidade na Europa para que as regras sejam aplicadas de forma coerente".

E uma das respostas políticas da Europa foi dar dinheiro à Líbia de onde muitos migrantes e refugiados deixam África rumo à Europa através do Mediterrâneo. Dinheiro que serve para colocá-los em campos, para financiar os campos e nalguns casos para os devolver aos campos, se forem resgatados no mar. Li que esses campos na Líbia são verdadeiros pardieiros.

"Sim, estive nesses campos"

Tenho razão?

"Tem toda a razão. Disse recentemente e quero repeti-lo, que se eu fosse um refugiado ou um migrante ou uma pessoa como as que estão nesses campos, faria tudo, iria correr qualquer risco para fugir de lá, incluindo - e eles sabem bem isso - atravessar o mar, sob o risco sério de perder a vida.

Os campos são tão horríveis, perigosos e humilhantes para as pessoas, que é compreensível o que fazem. Agora, também tenho que fazer um reparo sobre quando falou de dar dinheiro à Líbia: se a comunidade internacional investisse adequadamente na Líbia, isso não seria mau.

Em primeiro lugar era necessário resolver o conflito, que necessita desesperadamente de um ponto final e que é a fonte de todos os outros problemas na Líbia. Depois, é necessário reconstruir o país.

O problema é que a maior parte dos recursos parece estar a ser colocado apenas numa instituição, a Guarda Costeira. Porquê? Porque a Guarda Costeira patrulha as águas e isso serve o objetivo da Europa de limitar as chegadas de migrantes. Sabe, em si, apoiar a Guarda Costeira e resgatar pessoas no mar é uma coisa boa. O problema é que se não resolvermos os outros aspetos do problema, o que acontece é que as pessoas desembarcam na Líbia, são colocadas em centros de detenção e depois temos de retomar o processo de chegar até elas, de resgatar algumas e por aí adiante.

Vi os relatos de 144 refugiados e/ou migrantes resgatados por um cargueiro e que foram para um centro de detenção em Misrata, no noroeste da Líbia, onde terão sido vítimas de abusos sexuais, extorsão ou trabalhos forçados. Essa não pode ser seguramente a política de migração da Europa.

"Certamente que não. Mas, também é verdade que temos de olhar para o problema de uma forma realista. Dezenas de milhar de pessoas estão 'encalhadas' na Líbia e claramente não podem vir todas para a Europa. Isso é claro. E sabe que muitas querem voltar para os seus países se não fossem refugiados. Sabe que muitas pessoas que se deslocaram por motivos económicos apercebem-se que a viagem é demasiado difícil e perigosa. E querem regressar a casa.

Há cerca de um ano, a Organização Internacional para as Migrações (OIM), uma agência afiliada à nossa, começou a trabalhar lá. Conseguimos alguns progressos. A OIM repatria, de avião, pessoas que aceitam regressar aos seus países e aqueles que não podem regressar, porque são refugiados, recebem ajuda para sair da Líbia. Mas é apenas ainda uma fração do total. No entanto, se pudéssemos expandir esse trabalho, isso seria útil, porque receberiam proteção na Líbia e proteção para sair da Líbia de uma forma que não os exporia ao tráfico e aos perigos da travessia por via marítima. Mas, para isso precisamos de mais espaço e o espaço na Líbia é limitado. Muitos destes centros de que fala não são geridos pelas autoridades, são geridos por milícias. Não podemos pensar nessas milícias como grandes grupos políticos, são apenas criminosos, são apenas gangues que se aproveitam de todos os tipos de tráfico, incluindo de pessoas.

É assim a Líbia, Alto-Comissário, mas 500 pessoas foram recentemente expulsas de um entro de receção de migrantes perto de Roma. Foram expulsas pelo governo italiano, não pela Líbia. Não no norte de África, mas sim perto de uma das maiores cidades europeias. Não quero ser deprimente, mas se olharmos para isto - e penso que estas histórias mostram o lado humano do problema - vemos o que está verdadeiramente a acontecer e é difícil ser otimista.

"Talvez eu possa colocar as coisas de uma forma ligeiramente diferente. Estão a ajudar a humanizar o problema ao realçarem o quão desumanizantes as políticas se tornaram. O que aconteceu em Itália foi o resultado de uma nova lei que o Governo aprovou. Dissemos publicamente ao governo que essa lei não era boa para as pessoas que era suposto proteger e ajudar. E que iria agravar os problemas, especialmente cortando o apoio que é dado aos requerentes de asilo e por aí adiante, ao não deixá-los aceder a estes centros. A situação não era perfeita antes, precisava de ser melhorada. Mas este foi um passo atrás, não um passo em frente".

Penso que alguém da sua agência disse: 'os políticos têm de deixar de usar os seres humanos como arma de arremesso político', o que é algo muito acertado de se dizer. Mas, as eleições europeias estão aí à porta, as migrações vão estar no centro da campanha e os partidos populistas vão condicionar o debate. Isso é mais do que expectável e as coisas ainda devem certamente piorar antes de melhorarem.

"Infelizmente, concordo consigo. Não estaria preocupado só por a migração fazer parte do debate, É um tema importante. É uma questão global que tem de ser corretamente resolvida. Mas, temos de enfrentar o problema de uma forma séria, não apenas discutindo quem é que vai receber as próximas 20 pessoas que cheguem num barco e o debate sobre as migrações está reduzido a isto em vez de ser um debate sobre as raízes do problema, sobre como as pessoas se deslocam, sobre os motivos económicos e as alterações climáticas que levam ao êxodo. Este é o debate que a Europa deveria fazer sobre migrações e que não está a realizar. Portanto, tudo o que podemos fazer neste momento é esperar que as eleições europeias passem e que possamos retomar um debate sério sobre o assunto. A Europa merece isso e certamente que milhões de pessoas também o merecem".

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