Aborto na Polónia. A lei que proíbe e divide

Aborto na Polónia. A lei que proíbe e divide
Direitos de autor euronews
De  Valérie GauriatEuronews
Partilhe esta notíciaComentários
Partilhe esta notíciaClose Button
Copiar/colar o link embed do vídeo:Copy to clipboardCopied

A Polónia tem uma das leis mais restritivas em relação ao aborto, atualmente ilegal em casos de malformação do feto. Os novos limites à interrupção da gravidez, que entraram este ano em vigor, geraram protestos sem precedentes no país.

A Polónia tem uma das leis mais restritivas em matéria de aborto e o tribunal consitucional impôs novos limites que quase equivalem a uma proibição da interrupção da gravidez. A decisão suscitou protestos sem precedentes no país.

Obrigar uma mulher a dar à luz, sabendo que o dia do nascimento do filho pode ser também o dia da morte, é algo completamente anti-ético
Anna Parzynska
Médica obstetra

Em frente de um dos principais hospitais de Varsóvia, uma carrinha exibe um slogan antiaborto.

Não há muitos hospitais, na capital polaca, onde seja possível interromper uma gravidez legalmente. Um direito que acaba de ser drasticamente limitado pelo tribunal Constitucional.

A partir de agora, na Polónia, só é permitido abortar em caso de violação, incesto ou perigo para a vida ou saúde da mãe.

Passou a ser proibido abortar em caso de malformações graves do feto ou doenças incuráveis.

Poucos dias antes da decisão do tribunal, a Euronews falou com a obstetra Anna Parzynska, uma das poucas que realizam interrupções da gravidez no país.

“As mulheres que vêm aqui são mulheres que queriam engravidar. Queriam ter um bebé mas são informadas de que o feto tem malformações que não permitem uma vida independente após o parto. Recebemos uma paciente que foi recusada em dois hospitais polacos. O feto sofria de um grave problema renal. Os rins não se desenvolveram. É impossível sobreviver com uma malformação deste tipo. Obrigar uma mulher a dar à luz, sabendo que o dia do nascimento do filho pode ser também o dia da morte, é algo completamente antiético", defende. 

Apesar da proibição, a médica polaca está determinada em continuar a ajudar as "mulheres que ficam a saber que o filho tem uma doença incurável, que o bebé vai morrer um ou dois dias, ou mesmo um ano após o nascimento, que a criança não terá a possibilidade de viver uma vida normal, que a vida dela será feita principalmente de sofrimento e procedimentos hospitalares", porque, de acordo com a obstetra, "essas mulheres começam a ter problemas psiquiátricos graves, incluindo pensamentos suicidas, porque são incapazes de imaginar assistir ao sofrimento da criança. Nessa situação, as pacientes devem ser encaminhadas para uma interrupção da gravidez, devido à ameaça que pesa sobre a saúde ou as próprias vidas”.

As alternativas da Igreja Católica

Lublin, no leste da Polónia, é considerada como uma das regiões mais conservadoras do país. No ano passado, os hospitais da cidade registaram apenas três abortos legais. 

É neste local que um padre franciscano procura oferecer uma alternativa ao aborto. Filip Buczynski é o clérigo à frente de uma instituição de acolhimento de crianças nascidas com graves problemas físicos e neurológicos. Algumas mantêm o contacto com as famílias. Outras foram abandonadas à nascença. A expectativa de vida destas crianças é habitualmente curta.

“Às vezes, as condições de vida das crianças são muito más e elas precisam de ter algum conforto. Aqui damos essa possibilidade. Às vezes, a doença da criança é progressiva e implica cuidados permanentes 24 horas por dia, algo que podemos garantir na nossa enfermaria”, explica o sacerdote.

O padre Filip diz compreender os pais que decidem interromper a gravidez por não conseguirem lidar com a ideia de terem uma criança com uma deficiência grave e que "é para isso que serve o hospital perinatal, para que esses pais possam entender a sua situação e são eles que tomam as decisões”.

O apoio, afirma, é fundamental para decidirem "arriscar e dar ao filho o direito à vida, em vez de lhe tirarem a vida".

Se tivéssemos tomado a decisão de interromper a gravidez, acreditando em Deus, como acreditamos, teria sido um fardo para nós
Agnieszka Janik

Psicólogo e psicoterapeuta, o sacerdote dá apoio às pessoas que vão ter crianças em risco de vida.

A instuição propôs entrevistar Katarzyna e Slawomir Lukasiuk, um casal que comemora o aniversário de um filho que teria hoje cinco anos. Morreu 30 minutos depois de nascer.

Os pais, católicos praticantes, tinham sido informados da possibilidade de o filho morrer à nascença. Um diagnóstico recebido antes do fim do período legal de 24 semanas para interromper a gravidez em caso de malformação fetal. Optaram por não fazê-lo.

“A única opção, de acordo com a minha consciência, era escolher a vida. É impossível, numa situação destas, evitar o sofrimento. Quer seja o sofrimento de ter na barriga e dar à luz uma criança deficiente, quer seja o sofrimento ligado ao sentimento de culpa por ter abortado porque a criança tinha uma doença. Quando se fecha um capítulo da vida de alguém, quando a criança é enterrada, a situação é real. Podemos visitar o seu túmulo e enfrentar as nossas emoções. Por outro lado, enquanto crente, espero e confio que meu filho não esteja na terra, mas no céu, numa realidade melhor”, diz Katarzyna.

A experiência, afirma Slawomir, fê-los querer apoiar outras pessoas a passar por situaçôes semelhantes, de forma a "ajudá-las a tomar uma decisão que não trará tanto sofrimento, depois”.

Graças às conversas com o grupo de apoio, Agnieszka e Arkadiusz Janik, outro casal, dizem ter conseguido lidar melhor com uma realidade terrível: à vigésima semana de gravidez, os médicos diagnosticaram uma doença grave no feto. O coração do bebé parou de bater dois meses antes do parto.

Agnieszka revela que foram as convicções religiosas que a impediram de pôr termo à gestação. "A probabilidade de ele nascer e sobreviver ao parto era muito pequena, mas essa possibilidade tinha de ser considerada. Se tivéssemos tomado a decisão de interromper a gravidez, acreditando em Deus, como acreditamos, teria sido um fardo para nós”.

Os casais entrevistados pela Euronews que decidiram prosseguir a gravidez apesar das malformações do feto afirmam que se tratou de uma escolha pessoal e dizem que a lei não deve obrigar outros pais a fazê-lo, se essa não for a sua vontade.

Para Slawomir Lukasiuk, “deve haver uma lei, mas essa lei não devia impor restrições. Devia dar oportunidade às pessoas de serem informadas, para saberem que tipo de apoios podem ter numa situação destas, por exemplo, para saberem como é que o Estado pode ajudá-las a tomarem uma decisão. Mas não deve condená-las ao sofrimento, se elas não estão prontas para enfrentar essa situação".

Cuidadores queixam-se de falta de apoio

Ágata Aftyka também recorreu ao apoio dado pela instituição dirigida pelo padre Philip. 

A filha, de 12 anos, tem a Síndrome de Edwards. Não consegue andar, falar, ou alimentar-se.

Separada do marido, Agata dedicou-se totalmente à filha, com a ajuda da mãe e de um subsídio de 450 euros por mês. Defende a total proibição do aborto, mas que essa proibição seja também acompanhada por um apoio do Estado.

"Essas mulheres são, em geral, deixadas sozinhas, sem o pai da criança. Não têm dinheiro, estão à beira da miséria. Não têm apoio de ninguém. Nada foi feito. As mulheres entram rapidamente em depressão. É como se morressem ao mesmo tempo que o bebé. Estão profundamente deprimidas, o que, às vezes as leva ao suicídio".

A lei que limita o aborto na Polónia só entrou em vigor três meses após a decisão do tribunal constitucional, devido a uma onda de protestos sem precedentes, que, desde outubro de 2020, assolou o país.

Para muitos polacos, a restrição não é apenas um ataque aos direitos das mulheres na Polónia. É um ataque contra os direitos fundamentais de todos os cidadãos.

A consequência mais importante da lei atual é o facto de ela criar um sentimento generalizado de vergonha. A segunda consequência é criar uma estratificação da sociedade. Na Polónia, cada vez mais pessoas vivem de forma modesta, não podem pagar um aborto
Natalia Broniarczyk
Líder da associação "Abortion Dream Team"

Em novembro passado, várias mulheres manifestaram-se de forma inédita no país ao anunciaram publicamente já ter feito um aborto. Uma forma de manifestação inédita no país.

Natalia Broniarczyk é professora universitária e ativista da Abortion Dream Team, uma associação que ajuda as mulheres que desejam interromper a gravidez.

Através de uma linha telefónica, é dado aconselhamento e apoio às mulheres que queiram obter pílulas abortivas ou viajar para um país vizinho onde o aborto é legal. O telefone não pára de tocar desde o anúncio da nova lei.

Os cerca de mil abortos legais realizados anualmente no país representam apenas uma pequena parte das interrupções de gravidez.

A associação faz campanha pela liberalização do aborto para ajudar todas as mulheres obrigadas a interromper a gestação em clínicas clandestinas.

Também Natalia diz ter tomado uma pílula abortiva há 8 anos.

“O mais difícil para mim foi a sensação de solidão, tinha vergonha de pedir ajuda. Achei que ninguém iria entender, que ninguém me ia apoiar e ficar ao meu lado nesse momento. A consequência mais importante da lei atual é o facto de ela criar um sentimento generalizado de vergonha. A segunda consequência, é criar uma estratificação da sociedade. Na Polónia, cada vez mais pessoas vivem de forma modesta, não podem pagar um aborto na Alemanha, nos Países Baixos, ou em Inglaterra, porque é muito caro.

E a covid-19 mostrou a injustiça desta lei. Assim que começou a pandemia, as pessoas começaram a ligar-nos e a dizer-nos, por exemplo, “há duas semanas esta gravidez era desejada, mas agora é absolutamente impossível; perdi o meu emprego e não podemos sustentar outra criança, porque, pura e simplesmente, não vamos conseguir sobreviver”. 

Não devem ser as pessoas, mesmo que seja a maioria dos cidadãos, a decidir quem faz parte da humanidade e quem não faz
Bartlomiej Wroblewski
Deputado do partido Lei e Justiça (PiS)

Uma questão de direito

A iniciativa do Tribunal Constitucional foi apoiada pelo partido conservador Lei e Justiça (PiS), atualmente no governo.

O deputado Bartlomiej Wroblewski explica que o "pedido ao Tribunal Constitucional foi feito por um grupo de deputados, para que o direito à vida fosse inscrito na constituição polaca", defendendo der "um direito universal, que protege todos os seres humanos, do início ao fim da vida. As pessoas doentes ou deficientes têm o mesmo direito à vida que as pessoas que estão de boa saúde”.

Perante as manifestações contra a nova lei, Wroblewski diz que "temos de colocar a pergunta: será que a vontade da maioria pode decidir sobre o nosso direito à vida? Ou o direito à vida é-nos dado simplesmente porque somos seres humanos?", para logo a seguir ele próprio responder. "Relativizar esse conceito, fazê-lo depender do sentimento da sociedade não é o caminho certo para o desenvolvimento das nossas sociedades. Não devem ser as pessoas, mesmo que seja a maioria dos cidadãos, a decidir quem faz parte da humanidade e quem não faz”. 

Face à posição das autoridades, a principal organização feminista do país, Women’s Strike, iniciou uma nova vaga de protestos.

Marta Lempart, uma das líderes do movimento, afirma que a mobilização da população ultrapassa a questão da lei do aborto.

“É pela liberdade. Pelos direitos humanos, pelos direitos fundamentais, pela independência judicial, pela defesa de meios de comunicação social livres, eleições livres, e tudo isso. É pela liberdade. E é curioso que este país, visto como católico e conservador, tenha feito do aborto um símbolo da luta pela liberdade, porque é disso que se trata. Queremos que o governo vá embora”.

A procuradoria polaca informou, esta quinta feira, que Marta Lempart foi acusada de organizar manifestações, em violação das atuais restrições sanitárias por causa do coronavírus, insultando a polícia e expressando apoio aos ataques a igrejas. Por estas infrações, a ativista pode vir a enfrentar uma pena de oito anos de prisão. 

O peso da tradição católica

A oposição e os manifestantes acusam o governo polaco de conivência com os círculos católicos radicais.

Em Varsóvia, há alguns meses, uma igreja ficou coberta de cartazes dos movimentos pró-escolha.

O templo é dirigido Roman Trzcinski, um padre conhecido por defender posições ultraconservadoras.

O sacerdote polaco considera que a nova lei devia ter ido mais longe. Além de proibir os casos de malformação do feto, devia também ter proibido o aborto em caso de violação, incesto ou perigo para a saúde ou vida da mãe.

“Há uma civilização da morte que se anda a espalhar pelo mundo através de movimentos ateus. É contra a vida. É uma civilização da morte. O Evangelho é uma civilização da vida e do amor. E estamos perante o choque dessas duas realidades. Há, digamos assim, uma luta. E o facto de haver manifestações e de algumas pessoas terem sido manipuladas, nomeadamente, jovens e meninas, é uma pena. É uma catástrofe. Deixa uma cicatriz na jovem que anda pelas ruas a gritar que é a favor do aborto, sem limites. Ela não percebe o que está a fazer, mas isso fica na mente, na consciência, na alma. Os vestígios permanecem. Acredito que sim".

Não posso acreditar que ainda tenho de continuar a lutar pela minha própria vida, convencer os outros de que sou um ser humano com valor, de que o meu corpo me pertence, a mim, não ao meu país. Pelo menos ao nível dos direitos reprodutivos
Anónima

A Euronews entrevistou uma mulher que fez um aborto na Eslováquia, há alguns anos. O facto de falar publicamente sobre o assunto pode custar-lhe o emprego no setor público, razão que a leva a esconder a sua identidade.

Entre o aborto propriamente dito e as circunstâncias que o envolviam, não hesita em dizer que foi o clima em redor que mais custou a ultrapassar.

“Eu estava com muita raiva, porque sentia uma grande hostilidade à minha volta. Não queriam ajudar-me, não queriam dar-me uma receita a prescrever os medicamentos de que precisava. Depois do aborto, senti-me bem, mentalmente, calma, senti-me aliviada".

A decisão foi tomada "sem culpa, sem remorsos, sem depressão, sem qualquer desses síndromas de que eles falam. A única sensação que tive foi uma enorme sensação de raiva. Não fiz nada de errado.

Dar à luz bebés que ninguém quer, é uma tragédia, não? Porque eu considero que isso é uma tragédia, na Europa do século XXI.

E isso acontece, porque não temos acesso pleno ao nossos próprios direitos humanos, neste país. Tudo é em nome de Deus todo-poderoso ou da Igreja Católica, que é tão omnipotente como o próprio Deus, pelo menos aqui na Polónia.

E, sim, sou católica romana. Cristã, batizada e fiz o crisma. Sinto-me orgulhosa por ter lutado por mim, lutei pela minha vida para que fosse como é agora.

Não posso acreditar que ainda tenho de continuar a lutar pela minha própria vida, convencer os outros de que sou um ser humano com valor, de que o meu corpo me pertence, a mim, não ao meu país. Pelo menos ao nível dos direitos reprodutivos”.

Na noite em que a nova lei que limita a interrupção da gravidez na Polónia entrou em vigor, os movimentos pró-escolha voltaram à rua.

Também o Conselho da Europa criticou a legislação.

Os ativistas e as associações do país anunciaram que vão recorrer ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

Partilhe esta notíciaComentários

Notícias relacionadas

Ilhas Canárias: beco sem saída para os migrantes

França depois dos atentados de 2015

A questão central das eleições alemãs é a transição energética