Entre 1990 e 2014, a Ucrânia foi formalmente neutra. No início de 2019, ainda no rescaldo da anexação da Península da Crimeia pela Federação russa, o Parlamento ucraniano abandonou essa via
Durante duas décadas, desde a dissolução da União Soviética até a invasão russa da Crimeia, a Ucrânia foi, oficialmente, um país "não-alinhado" – ou neutro – em assuntos internacionais.
Na prática, isso significou que, embora o país muitas vezes oscilasse entre governos pró-russos e pró-europeus, não tomou formalmente um lado nas idas e vindas geopolíticas entre o Oriente e o Ocidente.
Tudo isso mudou em 2014, quando a Rússia invadiu e anexou a península da Crimeia. A Ucrânia abandonou oficialmente o estatuto de país "não-alinhado" e os deputados aplaudiram ao votar para derrubar a posição neutral do país com 303 votos a favor e apenas oito contra.
O passo aproximou o país da NATO e foi imediatamente denunciado por Moscovo como "hostil" e "contraproducente."
Em 2019, a Constituição da Ucrânia foi alterada para incluir uma nova linha no preâmbulo declarando "a irreversibilidade do curso europeu e euroatlântico" do país.
À medida que a ofensiva russa prossegue na Ucrânia, a cláusula juridicamente vinculativa pode ser disputada.
Em março, o presidente da Ucrânia Volodymyr Zelenskyy disse: "garantias de segurança e de neutralidade, o estatuto não-nuclear do nosso Estado. Estamos prontos para isso. Este é o ponto mais importante."
Zelenskyy enfatizou que qualquer tratado de paz exigiria um cessar-fogo, a par da retirada das tropas russas para as linhas pré-invasão, e recusou exigências de desmilitarização do país.
O acordo final, disse, teria que ser submetido a um referendo.
Um alto preço a pagar
De acordo com a prática internacional, espera-se que os países que se declaram neutros fiquem longe de conflitos armados, presentes e futuros, e que recusem assistência e acesso territorial a todos os beligerantes, com exceção da ajuda humanitária.
Consequentemente, a participação em qualquer tipo de aliança militar – independentemente do tamanho e da missão – é vista como uma violação da neutralidade.
Para a Ucrânia, isso significaria desistir da antiga aspiração de aderir à NATO, uma concessão que o Kremlin acolheria calorosamente e que Zelenskyy deu a entender que poderia aceitar em troca da paz.
Mas os ucranianos podem ter dificuldades em aceitar isso depois de resistir ao avanço do exército russo, muito maior e mais bem equipado.
"Provavelmente, isso não será bem recebido pela população ucraniana agora", sublinhou, em entrevista à Euronews, Anton Nanavov, vice-diretor de Relações Internacionais na Universidade Nacional de Kiev.
"Eu posso dizer, com certeza, qual será a reação. Provavelmente precisaremos sentir, como nação, que conseguimos obter algo como substituto para esse estatuto. Precisaríamos ter garantias muito fortes de que [a guerra] nunca mais acontecerá."
Uma sondagem recente realizada pela Rating, uma empresa independente de sondagens da Ucrânia, mostrou que 68% dos residentes apoiaram a ideia de aderir à NATO. Um número semelhante aos estudos anteriores à guerra.
A sondagem excluiu a Crimeia e as duas regiões separatistas do leste da Ucrânia.
Trocar os sonhos da NATO por uma paz duradoura pode ser viável, mas dependeria da disposição da Rússia para respeitar o acordo, uma grande questão neste momento, observou Nananov.
"[A neutralidade pode ser] uma possibilidade se for a última exigência da Rússia a nós e se eles nos disserem que a Ucrânia é livre, se retirarem as tropas destacadas e devolverem a Crimeia", acrescentou.
"Pode ser considerado, mas não tenho certeza de que isso será muito bem aceite pelas pessoas.
Serhiy Kudelia, professor assistente na Universidade de Baylor, no Texas, disse que a “repentina reviravolta” de Zelenskyy sobre a NATO representaria um “consentimento explícito a uma das principais exigências da Rússia.”
"Em vez de uma escolha estratégica feita por vontade própria da Ucrânia, a neutralidade tornar-se-ia uma política imposta à sociedade ucraniana e às suas elites através do uso da força. Na verdade, a perspetiva de neutralidade carece de legitimidade política mais profunda e será, provavelmente, contestada de forma imediata", escreveu Kudelia num artigo para a organização não governamental Open Democracy.
"Estaria em risco permanente de reversão por qualquer um dos sucessores de Zelenskyy. Isso prejudicaria a eficácia da neutralidade como ferramenta das relações internacionais. Em vez disso, provavelmente, tornar-se-ia uma fonte permanente de instabilidade interna."
Poder e interesses
A neutralidade é um conceito que remonta há vários séculos e que foi progressivamente codificado no direito internacional, a partir da histórica Convenção de Haia V e XIII de 1907.
Atualmente, só alguns países são reconhecidos como neutros, desde membros do G7 a micro estados. Alguns países, como o Japão, Finlândia e Suíça, mantêm um exército moderno e bem financiado, enquanto outros, como o Panamá, Mónaco, Liechtenstein e Cidade do Vaticano, têm pouca ou nenhuma capacidade militar.
Na prática, a neutralidade é bastante flexível e os países têm uma grande margem de discricionariedade para interpretar o seu estatuto, desde que não haja envolvimento direto na guerra.
A Finlândia, por exemplo, está a enviar armas de fogo e armas antitanque para a Ucrânia, enquanto a Suíça quebrou um precedente ao impor sanções à Rússia. O Japão, por outro lado, preserva um tratado de cooperação e segurança mútua de décadas com os EUA.
No entanto, a neutralidade é considerada um fato consumado pela comunidade internacional.
"A neutralidade funciona quando o equilíbrio de poder está em vigor. Funciona quando é do interesse de todos que funcione", disse Pascal Lottaz, professor de estudos de neutralidade na Universidade Waseda, em Tóquio.
"Entre 1991 e 2014, a Ucrânia estava mais ou menos numa espécie de equilíbrio político. Com alguns governos, a Ucrânia foi mais pró-europeia. Com outros governos, foi mais pró-russa. Mas o país manteve sempre a postura de permanecer neutro e de não se juntar a nenhum dos lados. Isso foi perturbado em 2008, quando a NATO prometeu a adesão à Ucrânia."
Um novo equilíbrio de poder teria que nascer das negociações de paz para manter a neutralidade da Ucrânia e garantir que o país seja protegido de novos atos de agressão não provocados.
A neutralidade e a segurança da Áustria foram garantidas pelas potências aliadas após a Segunda Guerra Mundial e os dez anos de ocupação que se seguiram.
Relatos de meios de comunicação ucranianos fizeram circular a ideia de uma coligação de países garantes que abrangeria estados como a Rússia, China, EUA, Reino Unido, França, Turquia, Alemanha, Canadá, Itália, Polónia e Israel, embora ainda não se saiba quantos desses países estariam dispostos a assumir tal responsabilidade.
A Turquia e Israel têm atuado como moderadores no conflito, enquanto a China adotou uma posição deliberadamente ambígua, pedindo paz e contenção, mas atacando as sanções e a "mentalidade da Guerra Fria" do Ocidente.
"Teria de haver um acordo entre a Ucrânia e a Rússia, e teria que incluir Washington também, porque, não vamos enganar-nos, a guerra é entre a Rússia e a Ucrânia, mas o conflito é entre a Rússia e a NATO, e principalmente os EUA. Então, seria preciso haver um acordo de todos os lados de que todos estão em melhor situação se a Ucrânia permanecer neutra", ressalvou Pascal Lottaz à Euronews.
"A Ucrânia tem pedido, por exemplo, garantias de segurança se concordar em ser um país neutro. Mas quem é que deve dar essas garantias de segurança? Certamente não poderia ser um Estado-membro da NATO porque isso seria quase o equivalente à adesão à NATO, o que a Rússia jamais aceitaria."
A privação de garantes externos e da integração na NATO em simultâneo pode ser intolerável para os ucranianos, que, desde 24 de fevereiro, estão a navegar num ambiente geopolítico altamente incerto e volátil, cujos contornos ainda estão a desenhar-se.
Um caminho alternativo pode encontrar-se na adesão à União Europeia (UE): ao abrigo de um tratado de paz, a Ucrânia poderia ter permissão para prosseguir caminho rumo à integração europeia se abandonar oficialmente as suas aspirações de aderir à NATO. Ao fazê-lo, a Ucrânia tornar-se-ia o sexto país neutro a aderir à União Europeia, juntamente com a Áustria, Finlândia, Irlanda, Malta e Suécia.
A perspetiva de adesão à UE ganhou enorme força desde o início da guerra. A mesma sondagem que revelou um apoio à NATO de 68%, evidenciou um apoio de adesão à UE de 91%, um número recorde.
O presidente da Ucrânia enviou a Bruxelas o pedido de adesão formal, que agora está a ser analisado pela Comissão Europeia. O apetite político aumentou consideravelmente em todo o bloco, com alguns países do leste europeu a pedir um procedimento acelerado, uma opção inédita.
Mas a adesão à UE é uma perspetiva de longo prazo, um projeto inspirador para os anos do pós-guerra. Neste momento, a luta persiste e o foco está exclusivamente no campo de batalha – e na mesa de negociações.
Tempos difíceis estão à frente em ambas as extremidades.
Dias depois de Volodymyr Zelenskyy endossar explicitamente o regresso da Ucrânia à neutralidade, o presidente russo, Vladimir Putin, disse que as negociações de paz chegaram a um "beco sem saída" e prometeu que "a operação militar continuará até à sua conclusão total." Mais tarde, ordenou um ataque total para obter o controlo de toda a região do Donbas.