Portugal: 50 anos depois da revolução, os cravos estão a murchar?

 Jovens protestam numa marcha contra a precariedade estudantil, a 21 de março, em Lisboa. Seguram cravos, o símbolo da revolução.
Jovens protestam numa marcha contra a precariedade estudantil, a 21 de março, em Lisboa. Seguram cravos, o símbolo da revolução. Direitos de autor Ilaria Federico
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Artigo publicado originalmente em inglês

O dia 25 de abril de 2024 marca o 50º aniversário da Revolução dos Cravos em Portugal. Esta revolução pôs fim a 50 anos de ditadura e deu início a uma era de democracia. O marco é celebrado numa altura em que o panorama político muda, com o centro-direita a vencer as últimas eleições e a extrema-direita a ganhar terreno.

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"Em 1974, tinha 18 anos e estava a iniciar os meus estudos universitários em Lisboa. No entanto, no dia 25 de abril, encontrei-me no Porto, procurando a tranquilidade da família para estudar. Pressentimos que algo de significativo estava a acontecer e a minha mãe aconselhou-me a ficar em casa." Hoje, com 68 anos, Maria Gorete partilha as suas histórias com a Euronews. Encontrámo-nos com ela na manhã de 22 de março, numa das galerias da capital portuguesa. Os seus olhos brilham de forma especial quando recorda os dias de caos e êxtase que Portugal viveu durante a Revolução dos Cravos.

Questionada sobre os planos para o 50º aniversário da revolução, Maria fica entusiasmada: "Vai ser um dia memorável! Temos planos para nos encontrarmos com 30 antigos colegas da universidade para celebrar".

"Quanto a mim, guardei uma garrafa de vinho do Porto de 1974. Estou ansiosa por abri-la neste 25 de abril", partilha Adozinda, amiga de Maria. Na altura, tinha 15 anos e vivia em Angola, uma antiga província ultramarina de Portugal.

As duas mulheres admiram a exposição do fotógrafo Eduardo Gageiro. Entre as imagens, uma parada militar, um soldado português a retirar um retrato do ditador António de Oliveira Salazar da sede da PIDE (polícia secreta) e jovens em torno de um tanque com ar de júbilo. Na vasta e silenciosa galeria da Cordoaria Nacional, uma antiga fábrica de cordoaria à beira do Tejo, mergulhamos no passado, enquanto lá fora Lisboa se aquece com a luz e o calor de um dia de primavera.

Estamos a pouco mais de um mês do 50.º aniversário da revolução que pôs fim à ditadura salazarista. António de Oliveira Salazar tornou-se primeiro-ministro de Portugal em 1932. Estabeleceu uma ditadura, limitando as liberdades civis, impondo uma censura rigorosa e reprimindo toda a oposição política.

Salazar foi substituído por Marcelo Caetano em 1968. Caetano tentou modernizar o regime, mantendo a sua estrutura autoritária e prosseguindo as guerras coloniais em África, o que levou a um golpe de Estado e ao fim da ditadura em 1974.

Duas mulheres contemplam a fotografia tirada por Eduardo Gageiro, que regista o momento em que um soldado retira o retrato de Salazar do quartel-general da PIDE
Duas mulheres contemplam a fotografia tirada por Eduardo Gageiro, que regista o momento em que um soldado retira o retrato de Salazar do quartel-general da PIDEIlaria Federico

A 25 de abril de 1974, o exército português, apoiado por civis, estava cansado e indignado com os horrores das guerras coloniais em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Decidiram mudar de rumo. "Ainda não percebíamos o que se estava a passar, só sabíamos que estavam a matar soldados e tínhamos medo", explica Maria Gorete. "Só no dia 1 de maio é que finalmente percebemos: éramos livres! Que euforia! Toda a gente saiu à rua para festejar", acrescenta.

A adoção da Constituição em 1976 lançou as bases de uma democracia pluralista. Desde então, o panorama político português tem alternado entre governos do Partido Socialista (PS), de centro-esquerda, e do Partido Social Democrata (PSD), de centro-direita.

No dia 10 de março de 2024, o povo português virou mais uma página importante da sua história. Após oito anos de governo socialista, as eleições legislativas viram a oposição de centro-direita sair vitoriosa e o partido de extrema-direita Chega obter 18% dos votos, contra 7,2% nas anteriores eleições legislativas de janeiro de 2022. O partido liderado por André Ventura tem um manifesto baseado em posições transfóbicas e xenófobas, entre outras, com uma oposição especialmente forte à imigração. "Travámos esta luta para que os nossos filhos e netos pudessem ser livres. E agora, o meu neto, armado com essa liberdade, escolhe usá-la para votar na direita. Tenciono levá-lo a ver esta exposição, para lhe lembrar que, se hoje pode exprimir livremente a sua escolha, é graças à nossa luta", explica Maria Gorete.

Uma viragem à direita

Vasco Lourenço, atualmente com 80 anos, tinha apenas 31 em 1974. Enquanto capitão do exército português, organizou a primeira reunião clandestina com o objetivo de derrubar o regime. Esta reunião em Alcáçovas, no sul de Portugal, teve lugar a 9 de setembro de 1973. Reuniu 95 capitães, 39 tenentes e dois oficiais, marcando o primeiro passo para o golpe e a revolução. "Os valores que nos empurraram, digamos assim, e nos motivaram para a revolta de 25 de abril de 1974, penso que esses valores permaneceram na sociedade portuguesa, o que nos permitiu ter 50 anos de democracia. Mas não há democracias perfeitas", diz-me. "Acho que é evidente que um partido como este [Chega] não é nada democrático. Está a usar as regras democráticas para chegar ao poder, mas a história diz-nos que, se chegarem ao poder, vão tentar acabar com a democracia. E por isso temos de os combater, combatê-los dentro das regras democráticas", acrescenta com convicção.

Na sede da Associação 25 de Abril, Vasco Lourenço mostra-nos os livros para os quais contribuiu
Na sede da Associação 25 de Abril, Vasco Lourenço mostra-nos os livros para os quais contribuiuIlaria Federico

Lourenço recebe-nos com orgulho na Associação 25 de abril, a que preside. Está rodeado de centenas de medalhas de veteranos. A sua participação na guerra da Guiné-Bissau, em 1969, e a perda de um camarada marcaram-no profundamente. "Quando regressei, decidi não voltar a pegar em armas. Teria desertado se fosse necessário", explica. "Mas também senti raiva de mim próprio. Apercebi-me do que não tinha compreendido antes de partir: eu era o instrumento de um poder ilegítimo em Portugal, um regime de ditadura, de repressão. Decidi então usar o meu estatuto militar para derrubar esse regime".

Enquanto o exército se organizava para derrubar a ditadura, figuras menos visíveis difundiam a propaganda anti-regime entre a diáspora portuguesa no estrangeiro. Entre elas, Arnaldo Silva.

Arnaldo Silva emociona-se ao descrever as condições da sua prisão. As memórias ressurgem numa sala do Museu do Aljube, uma antiga prisão de Lisboa
Arnaldo Silva emociona-se ao descrever as condições da sua prisão. As memórias ressurgem numa sala do Museu do Aljube, uma antiga prisão de LisboaIlaria Federico

"A minha revolta começou quando eu tinha apenas 12 ou 13 anos. Em 1969, já estava envolvido na luta política contra o regime". O ativismo levou-o à prisão a 2 de dezembro de 1971. Tinha 18 anos. "Nessa manhã, quando me preparava para ir trabalhar, dois agentes entraram de rompante e prenderam-me", recorda. Preso em Caxias, a oeste de Lisboa, diz ter sido imediatamente sujeito a violências: "As torturas sofridas, as noites de insónia forçada, os calmantes administrados...". Pára, emocionado, cobrindo os olhos e tentando conter as lágrimas, enquanto descreve a detenção numa pequena cela quadrada partilhada com quatro presos.

Proibido de exercer qualquer atividade política em Portugal após a detenção, Arnaldo Silva exilou-se em França.

Arnaldo Silva e José Martins olham pela janela do Museu do Aljube, antiga prisão e atual museu da resistência.
Arnaldo Silva e José Martins olham pela janela do Museu do Aljube, antiga prisão e atual museu da resistência.Ilaria Federico

Numa sala pouco iluminada do Museu do Aljube, uma antiga prisão em Lisboa, Arnaldo é acompanhado por José Martins, também ele um ex-preso político que viveu no exílio em França. "Penso que a ascensão da extrema-direita em Portugal se deve sobretudo a alguns fracassos de governos de esquerda, que não conseguiram dar resposta às preocupações das pessoas", considera. "Os que votam à direita são muitas vezes aqueles que já foram de esquerda e mudaram de lado porque a esquerda não conseguiu resolver os problemas sociais".

Essas questões sociais estiveram entre as prioridades da Amnistia Internacional em Portugal durante a campanha eleitoral de 2024. Consciente dos avanços significativos em matéria de direitos humanos após a revolução e preocupada com o seu futuro, a ONG emitiu um conjunto de recomendações a todos os partidos políticos. As preocupações da organização incluíam a educação, o estado do sistema de saúde português e o acesso à habitação.

Ilaria Federico
Ilaria FedericoPedro A. Neto na sede da Amnistia Internacional em Lisboa

"Os temas que realmente nos preocupam: a utilização de migrantes e refugiados como bodes expiatórios para assustar a população e ganhar votos", especifica Pedro A. Neto, diretor-executivo da Amnistia Internacional Portugal.

"O racismo existe. Muitas vezes, manifesta-se de forma muito informal, em conversas de café ou nas redes sociais, onde as pessoas falam mal só por falar. A diferença do Chega é que ele capitalizou esse racismo para torná-lo um discurso oficial. Normalizou este tipo de discurso, que é completamente desrespeitoso".

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Perante a ascensão da extrema-direita, o historiador e professor Ricardo Noronha, da Universidade Nova de Lisboa, dá uma outra perspetiva: "Parece-me que a noção ampla de democracia, enquanto conjunto de direitos individuais e coletivos, não está ameaçada pelo facto de a extrema-direita ter conseguido 18% dos votos nas últimas eleições".

O eco da Revolução nas gerações mais jovens

No âmbito da comemoração do aniversário desta revolução histórica, a Comissão Governamental do 25 de abril está a desenvolver esforços significativos para envolver todos os grupos etários neste ato de memória, especialmente os jovens. "Lançámos campanhas nas redes sociais, muito seguidas pelos jovens, como a #NãoPodias, que enumera 13 proibições e restrições anteriores à revolução, como a impossibilidade de votar livremente ou de se organizar politicamente", explica Maria Inácia Rezola, comissária executiva e professora de História. Estas iniciativas têm como objetivo sensibilizar para as liberdades que hoje são um dado adquirido e que outrora eram inatingíveis.

Maria Inácia Rezola, comissária-executiva das celebrações do 25 de Abril
Maria Inácia Rezola, comissária-executiva das celebrações do 25 de AbrilIlaria Federico

"A liberdade é como a saúde: só nos apercebemos da sua importância quando começamos a perdê-la", diz Vasco Lourenço, "é natural que quem nasceu em liberdade não questione o seu estado. Pergunto-lhes muitas vezes se aceitariam viver sem liberdade, e a resposta é unanimemente negativa. No entanto, é fundamental mantermo-nos vigilantes, pois a história da humanidade é cíclica e não podemos permitir que a liberdade volte a ser ameaçada. Temos de aprender com a história para evitar que a juventude seja novamente alienada", afirma.

Segundo Arnaldo Silva, "a juventude portuguesa continua alerta e não deixará que as ambições políticas, económicas ou militares se sobreponham às suas liberdades e ideais".

O professor Ricardo Noronha confirma o interesse evidente dos jovens por este período histórico: "Quando visitamos escolas secundárias ou primárias, o entusiasmo dos alunos é palpável. Ao contrário do que se espera, eles ficam atentos, fazem perguntas e compartilham seus pensamentos, às vezes influenciados por narrativas familiares da época. Esta curiosidade é sinal de um envolvimento saudável", observa.

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No dia 25 de Abril, os sindicatos e os movimentos de protesto portugueses marcham tradicionalmente para fazer ouvir a sua voz. Este ano, o movimento começou com bastante antecedência, impulsionado pela juventude portuguesa. Nas ruelas de Lisboa, durante um protesto contra a instabilidade financeira, cantam "25 de abril sempre, fascismo nunca mais!". Com os punhos erguidos, seguram o cravo vermelho simbólico, a flor colocada nos canos das armas em 1974 como símbolo da paz. Para estes jovens, o espírito da revolução parece estar ainda bem vivo.

Ilaria Federico
Ilaria FedericoJovens protestam em Lisboa numa marcha contra a precariedade em março. Seguram cravos, símbolo da revolução
Jovens protestam em Lisboa numa marcha contra a precariedade em março. Seguram cravos, símbolo da revolução
Jovens protestam em Lisboa numa marcha contra a precariedade em março. Seguram cravos, símbolo da revoluçãoIlaria Federico
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