UE "caçará" recursos com novas regras de tributação às multinacionais?

O centro logístico do comerciante em linha Amazon em Lauwin-Planque, no norte de França.
O centro logístico do comerciante em linha Amazon em Lauwin-Planque, no norte de França. Direitos de autor Michel spingler/AP
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De  Mared Gwyn JonesIsabel Marques da Silva (Trad.)
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Artigo publicado originalmente em inglês

A 1 de janeiro, entrou em vigor na União Europeia (UE) um acordo global histórico que estabelece uma taxa mínima de imposto sobre as sociedades de 15% para as empresas multinacionais.

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Há anos que a UE tem tentado exercer a sua influência sobre a evasão fiscal das grandes empresas, introduzindo uma série de novas leis e instaurando até processos judiciais de alto nível contra multinacionais.

Mas alguns dos seus próprios Estados-membros - tais como a Irlanda, o Luxemburgo e Chipre - continuaram a permitir que empresas com lucros elevados se esquivassem aos impostos e ao controlo. A transferência de lucros a nível mundial também se manteve elevada, causando perdas no valor de milhares de milhões de euros para o continente, ao mesmo tempo que a desigualdade económica se agrava.

Agora, as empresas com um volume de negócios de, pelo menos, 750 milhões de euros e que exerçam a sua atividade em qualquer um dos 27 Estados-membros da UE serão sujeitas a uma taxa mínima de imposto sobre as sociedades de 15%. 

Paolo Gentiloni, Comissário europeu responsável pela Economia, descreveu as novas regras como "um novo amanhecer para a tributação das grandes multinacionais".

A medida faz parte de uma ampla revisão do sistema tributário global acordada por cerca de 140 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) em 2021, após uma década de negociações, e visa reprimir os governos que reduzem suas contas de impostos corporativos para atrair investimentos.

Outros países, tais como o Reino Unido, a Noruega, a Austrália, o Japão e o Canadá, estão também a aplicar as medidas.

Embora as novas regras tenham sido saudadas como inovadoras, os especialistas disseram à Euronews que é necessário colmatar lacunas cruciais para garantir que as grandes empresas sejam responsabilizadas.

Uma "revolução" na justiça fiscal

O acordo da OCDE é composto por dois pilares, o primeiro dos quais tem como objetivo garantir que as empresas pagam impostos onde exercem a sua atividade. O segundo pilar estabelece uma taxa de imposto mínima global de 15%.

Num sistema de interligação considerado revolucionário, se um país não tributar uma multinacional a esta taxa, os outros países podem cobrar o chamado "imposto adicional".

Isto não significa que os países da UE ajustem necessariamente a sua taxa de imposto sobre as sociedades à taxa de base de 15%, uma vez que outros países poderão intervir para cobrar os impostos devidos pelas multinacionais que pagam os seus impostos em jurisdições com impostos baixos.

Mas significa que, num cenário hipotético, uma multinacional francesa que opere no Senegal e transfira os seus lucros para a Irlanda poderá ver a França ou mesmo o Senegal a cobrar um imposto adicional, se não pagar a taxa mínima de 15% na Irlanda.

"O conceito é revolucionário", afirma Quentin Parrinello, conselheiro político sénior do Observatório Fiscal da UE.

"É a primeira vez que mais de 140 países, incluindo todos os principais atores económicos, concordam que as empresas multinacionais devem pagar um montante mínimo de imposto sobre os lucros que reportam", disse.

"Em teoria, não existe qualquer incentivo para que um país não aplique o imposto mínimo porque, se não o fizer, outro país ficará com as receitas fiscais", acrescentou Parrinello.

A maioria dos países da UE já transpôs para a legislação a diretiva comunitária que torna as novas regras uma realidade. Cinco países - Estónia, Letónia, Lituânia, Malta e Eslováquia - informaram a Comissão Europeia de que iriam adiar a transposição, uma vez que têm menos de doze multinacionais que seriam atingidas a operar nas suas fronteiras.

Demasiadas lacunas

Mas, apesar das suas promessas, os especialistas receiam que a reforma, por si só, não consiga acabar com os paraísos fiscais, nem impedir a chamada "corrida para o fundo" da concorrência fiscal prejudicial entre governos.

Os Estados podem continuar a respeitar a nova taxa mínima, oferecendo ao mesmo tempo créditos fiscais generosos e outras deduções que reduzem, efetivamente, a taxa de imposto para menos de 15%. Muitos Estados já estão a introduzir créditos, subvenções e subsídios transferíveis atrativos para competir pelo investimento.

"Já estamos a assistir a esta situação, por exemplo, com o IRA (Inflation Reduction Act) nos EUA. Também temos países como a Irlanda, a Suíça e as Ilhas Caimão que já estão a repensar nos seus próprios sistemas", explicou Parrinello.

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Outra lacuna do acordo permite que as empresas excluam certos montantes de lucros - equivalentes a 8% do valor dos ativos tangíveis e a 10% da massa salarial no primeiro ano - da base tributável.

O Observatório Fiscal da UE estima que esta lacuna poderá custar à UE cerca de 26 mil milhões de euros no primeiro ano de aplicação. Segundo o Observatório, um imposto mínimo de 15% livre de lacunas poderia ter arrecadado cerca de 95 mil milhões de dólares (87 mil milhões de euros) no bloco, em 2023, caindo para apenas 67 mil milhões de dólares (61 mil milhões de euros) com o atual projeto.

"Não haverá um fim para a concorrência fiscal prejudicial e a corrida para o fundo do poço em matéria de tributação", disse Chiara Putaturo, assessora de Desigualdade e Política Fiscal na delagação da Oxfam para a UE.

"Estamos a ver muitos países, tais como a Irlanda, a Suíça e as Bermudas, que alteraram alguns dos sistemas fiscais, introduzindo generosos créditos fiscais reembolsáveis, para que possam continuar a ter uma taxa de imposto cada vez mais baixa", acrescentou.

"O imposto mínimo é um limite mínimo", afirmou Parinello. "É muito melhor tê-lo do que não ter nada. Mas se fizermos "buracos" na diretiva, enfraquecemos a estrutura geral", disse, ainda.

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O mundo deve seguir em sintonia

O sistema concebido pela OCDE é único na forma como incentiva todas as nações do mundo a seguirem o mesmo caminho. Países famosos por atrair empresas gigantes com incentivos fiscais atraentes - tais como Barbados e Panamá - também são signatários.

Uma esmagadora maioria dos eleitores suíços (78,5%) também apoiou as novas regras numa consulta realizada, em junho passado, pressionando o seu governo a adotar rapidamente as regras.

Os EUA e a China ainda não aprovaram a legislação, mas é provável que sejam incentivados a fazê-lo para garantir que os outros países não aumentem a  coleta de impostos à sua custa.

Mas Putaturo advertiu que a taxa de 15%, que é inferior à média mundial, carece de ambição.

"A maioria dos países, a nível mundial, tem uma taxa de imposto efetiva superior a 15%. Por isso, isto pode até levar alguns países a baixar a sua taxa de imposto, numa corrida para o mínimo", explicou Putaturo.

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"O imposto mínimo também não faz quase nada em termos de redistribuição das receitas fiscais. Os chamados países residentes, onde estão sediadas as multinacionais, terão o direito de aumentar o imposto para 15% se o paraíso fiscal não cobrar o imposto devido. Isto é um problema para os países mais pobres porque os países residentes são maioritariamente países ricos", acrescentou.

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