Conseguirá a UE passar à votação por maioria qualificada em mais decisões?

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, também defende que haja mais decisões tomadas por maioria qualificada
A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, também defende que haja mais decisões tomadas por maioria qualificada Direitos de autor Kenzo Tribouillard/AP
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De  Jorge LiboreiroIsabel Marques da Silva (Trad.)
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A União Europeia (UE) toma decisões por unanimidade e por maioria qualificada, consoante os dossiês em causa. Os temas de relações externas e da defesa são alguns dos que exigem unanimidade, mas há uma crescente pressão para rever essa regra, por forma a reforçar o papel geopolítico da UE no mundo.

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A decisão do presidente da Rússia, Vladimir Putin, de lançar a invasão em grande escala da Ucrânia é muitas vezes creditada como tendo contribuído muito para reforçar a unidade política entre os 27 Estados-membros da UE.

Contudo, quando chega o momento de tomar decisões específicas, nem sempre é possível obter unanimidade na votação, o que é visto como a aplicação do poder de veto.

Essa necessidade de unanimidade leva alguns governos a exigir concessões noutras áreas para votarem favoravelmente numa tema mais polémico. A Hungria, em particular, usa amiúde essa "arma" política, incluindo quando estão em causa medidas para ajudar a Ucrânia.

Assim, nove Estados-membros, incluindo os mais poderosos que são a Alemanha e a França, formaram um "grupo de amigos" para promover uma mudança gradual da unanimidade para a maioria qualificada no domínio da política externa. Por outras palavras, acabar com o veto de uma vez por todas.

Numa breve declaração, divulgada no início de maio, o grupo sublinhava que as futuras alterações se baseariam nas disposições "já previstas" nos tratados da UE, uma clarificação que parecia deliberadamente inserida para atrair os governos que desejam mudanças práticas, mas detestam o cenário de uma reforma constitucional.

A tentativa em 2007

Os defensores da unanimidade afirmam que a regra incentiva negociações mais alargadas, aumenta a legitimidade democrática, reforça a unidade, melhora a implementação e oferece aos pequenos Estados um escudo contra as exigências dos países maiores.

Os detratores, como o grupo de amigos e a própria Comissão Europeia, argumentam o contrário: a unanimidade dificulta o processo de tomada de decisões, fomenta uma mentalidade de menor denominador comum, convida a criar esquemas de "cavalos de Tróia" com intenções maliciosas e impede a UE de realizar todo o seu potencial na cena mundial.

O mais próximo que a UE esteve de dar uma resposta definitiva a este dilema foi em dezembro de 2007, quando os líderes assinaram o Tratado de Lisboa e remodelaram o equilíbrio de poderes entre os Estados e as instituições.

A maioria qualificada - pelo menos 55% dos países representando, pelo menos, 65% da população do bloco - aplica-se para a grande maioria dos domínios políticos. Mas foi reforçada a unanimidade em certas esferas consideradas politicamente sensíveis, como a política externa, a fiscalidade, o orçamento comum e o alargamento.

Três opções

No entanto, no domínio da política externa, o Tratado abriu timidamente o caminho para que certas decisões possam ser aprovadas por maioria qualificada, desde que não tenham "implicações militares ou de defesa". O artigo 31º prevê três possibilidades:

  • Abstenção construtiva: Quando um Estado-membro não concorda com uma ação coletiva, opta por se abster em vez de vetar. A ação é então aprovada e o Estado-Membro, seguindo um "espírito de solidariedade mútua", compromete-se a não interferir.
  • Derrogação especial: Os Estados-membros podem votar por maioria qualificada para adotar uma decisão que define uma ação ou posição comum, mas apenas se a decisão resultar de um mandato conferido pelo Conselho Europeu ou de uma proposta apresentada pelo Alto Representante para a Política Externa (atualmente, Josep Borell).
  • Cláusula passerelle: O Conselho Europeu adopta uma decisão que permite aos Estados-membros agir por maioria qualificada em casos específicos de política externa.

Embora as três soluções representem um valioso complemento ao modo de funcionamento da UE, a sua aplicação tem variado entre extremamente limitada e inexistente.

A Áustria, a Irlanda e Malta - os únicos três países da UE que seguem uma política de neutralidade - invocaram uma abstenção construtiva no ano passado, quando Bruxelas propôs utilizar o Mecanismo Europeu de Apoio à Paz, um instrumento extra-orçamental, para fornecer equipamento militar às Forças Armadas ucranianas.

A abstenção permitiu ao bloco dar luz verde a várias tranches de assistência militar a Kiev, apesar das reservas dos três países neutros, que contribuem para o mecanismo fornecendo material não letal.

Uma abstenção só pode ir até certo ponto

Não é plausível pensar que um governo se abstenha de tomar uma decisão com grandes implicações para a economia europeia, como a imposição de um preço máximo ao petróleo russo transportado por mar, ou para as relações diplomáticas, como as sanções impostas a quatro funcionários chineses pela sua alegada participação na repressão dos uigures.

"A abstenção construtiva permite aos Estados-membros que se abstêm de aderir a especificidades nacionais sem bloquear o caminho a outros", disse Nicole Koenig, diretora de política da Conferência de Segurança de Munique, à Euronews.

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"Mas não é útil quando os Estados-membros usam explicitamente o seu veto para proteger interesses estratégicos ou económicos nacionais, como aconteceu com a recente ameaça de veto da Hungria relativamente ao Mecanismo Europeu de Apoio à Paz", acrescentou.

Isto leva-nos à derrogação especial do artigo 31º. À primeira vista, esta disposição parece ter um âmbito de aplicação bastante vasto porque as conclusões do Conselho Europeu tratam de uma variedade de questões de política externa.

Mas o Tratado não hesita em dar uma salvaguarda: se uma votação passar da unanimidade para a maioria qualificada, um Estado-membro pode invocar "razões vitais e declaradas de política nacional" para interromper todo o processo. Este travão de emergência está redigido de forma vaga e sem quaisquer critérios adicionais, o que o torna inerentemente susceptível de ser explorado.

"A utilização desta opção legal como uma espécie de martelo teria, naturalmente, implicações políticas", afirmou Robert Böttner, professor assistente de direito internacional na Universidade de Erfurt, na Alemanha, numa entrevista.

"Os Estados-membros poderiam adotar esta disposição, mas provavelmente com algum tipo de negociação. Há sempre um preço a pagar por este tipo de decisão".

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Opção dramática e que acaba em ciclo vicioso

A última opção na mesa da UE é a chamada "cláusula passerelle", que já existia, em parte, antes do Tratado de Lisboa.

No papel, é um atalho bastante simples: o Conselho Europeu adopta uma decisão que estipula que os Estados-membros "deliberam por maioria qualificada" em casos específicos de política externa e de segurança.

Segundo os analistas, os dirigentes da UE teriam uma ampla margem de manobra para definir o âmbito temático da cláusula e a sua duração no tempo. Por exemplo, a cláusula poderia ser utilizada exclusivamente para impor sanções da UE contra a Rússia no contexto da guerra da Ucrânia. Outras sanções contra outros países seriam objeto do procedimento unânime habitual.

"Existe uma grande flexibilidade no que diz respeito à ativação e implementação desta cláusula", disse Böttner à Euronews, referindo a incerteza causada pela falta de precedentes.

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"Penso que os Estados-membros não estão bem cientes das possibilidades que estas cláusulas passerelle implicam", acrescentou. "A consciencialização de que esta cláusula pode ser limitada a um campo de aplicação restrito pode aumentar as hipóteses de ser activada."

Mas, mais uma vez, há um senão. O Conselho Europeu aprova as suas conclusões comuns por consenso, uma espécie de termo eufemístico para unanimidade. Isto significa que, para introduzir uma cláusula passerelle que dispensasse a unanimidade, a UE precisaria, de unanimidade.

Esta contradição constitui um obstáculo de peso às ambições do "grupo de amigos da unanimidade", cuja agenda transformadora depende, em última análise, da boa vontade daqueles que pretende neutralizar.

Será que um país como a Hungria, cujo poder de veto se tornou um instrumento fundamental para defender os seus interesses nacionais, alguma vez consentiria em qualquer tipo de cláusula passerelle especificamente concebida para esvaziar esse mesmo poder de veto?

Para que não restem dúvidas, Budapeste já respondeu: não o faria.

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Nicole Koenig prevê que o eterno debate se prolongue até à próxima ronda de alargamento, quando países como a Albânia, a Macedónia do Norte, a Moldova e a Ucrânia poderão juntar-se ao bloco de 27 membros. 

A analista sugere uma "maioria super-qualificada" com limites de votação mais elevados como um possível meio-termo entre os dois lados.

"As muitas outras áreas políticas que passaram para a maioria qualificada mostram que a UE continuará sempre a ser uma máquina de fazer compromissos", disse Koenig.

"Mas a votação por maioria qualificada acelera o processo. Na minha opinião, isto é fundamental para uma UE mais ágil e, no futuro, maior".

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