Legislação da UE sobre trabalhadores das plataformas está por um fio?

De acordo com a proposta de diretiva, mais de 5,5 milhões de trabalhadores das plataformas poderão ser reclassificados como trabalhadores por conta de outrem e ter acesso a direitos laborais básicos.
De acordo com a proposta de diretiva, mais de 5,5 milhões de trabalhadores das plataformas poderão ser reclassificados como trabalhadores por conta de outrem e ter acesso a direitos laborais básicos. Direitos de autor Nam Y. Huh/Copyright 2020 The AP. All rights reserved.
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De  Jorge LiboreiroIsabel Marques da Silva (Trad.)
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Artigo publicado originalmente em inglês

Há dois anos, a Comissão Europeia apresentou uma legislação ambiciosa para melhorar as condições dos trabalhadores de plataformas digitais, tais como a Uber, a Deliveroo e a Glovo. Mas a diretiva poderá não passar neste mandato.

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A diretiva relativa aos trabalhadores de plataformas (DTP) deveria ser um ponto de viragem na chamada "economia gig", uma vez que milhões de trabalhadores que prestam os serviços destas plataformas, maioritariamente com estatuto de independentes, na União Europeia (UE), seriam reclassificados como empregados por contra de outrém.

Esta alteração permitiria aos trabalhadores terem melhores condições de trabalho e direitos ao nível do salário, saúde e segurança social, seguro de acidentes e férias pagas.

Já decorreram seis rondas de negociações entre o Parlamento Europeu e os Estados-membros, mas a diretiva continua por aparovar. Na reunião de dezembro passado, foi evidente a falta de consenso, nos trabalhos mediados pela então presidência espanhola da UE.

A França, a Irlanda, a Suécia, a Finlândia, a Grécia e os países da região do Báltico foram alguns dos que deixaram claro que não podiam apoiar o texto em cima da mesa.

"Quando se avança para (regras) que permitem reclassificações maciças, incluindo trabalhadores independentes que valorizam o seu estatuto de trabalhador independente, não podemos apoiar", afirmou Olivier Dussopt, na latura ministro do Trabalho de França.

Deverá decorrer uma nova ronda de negociações, embora ainda não tenha sido escolhida uma data.

A situação é particularmente precária porque as eleições europeias , de junho, impõem um prazo para a conclusão das conversações interinstitucionais até meados de fevereiro.

Uma questão de presunção

As objeções expressas  coincidem todas num ponto crítico: a presunção legal de emprego prevista na diretiva. Este é o pilar central da proposta de lei, sem o qual a DTP perdiria a razão de ser.

A presunção legal é o sistema segundo o qual uma plataforma digital seria considerada um empregador, e não apenas um intermediário, e o trabalhador seria considerado um empregado, e não um trabalhador independente.

De acordo com a proposta original da Comissão Europeia, a reclassificação seria efetuada se duas de cinco condições fossem cumpridas na prática:

  1. A plataforma determina o nível de remuneração ou estabelece limites máximos
  2. A plataforma supervisiona eletronicamente o desempenho dos trabalhadores
  3. A plataforma restringe a possibilidade de os trabalhadores escolherem o seu horário de trabalho, recusarem tarefas ou recorrerem a subcontratantes
  4. A plataforma impõe regras obrigatórias de aparência, conduta e desempenho
  5. A plataforma limita a capacidade de construir uma base de clientes ou de trabalhar para um concorrente

De acordo com as estimativas da Comissão Europeia, cerca de 5,5 milhões dos 28 milhões de trabalhadores de plataformas ativos em todo o bloco estão mal classificados e, por conseguinte, seriam abrangidos pela presunção legal. 

O executivo comunitário considera que os trabalhadores das plataformas devem usufruir de direitos tais como o salário mínimo, a negociação coletiva, os limites de tempo de trabalho, o seguro de saúde, as baixas por doença, o subsídio de desemprego e as pensões de reforma, em pé de igualdade com qualquer outro trabalhador regular.

A reclassificação poderia ser contestada ou refutada, quer pela empresa, quer pelos próprios trabalhadores. O ónus da prova recairia sobre a plataforma para demonstrar que a relação empregador-empregado não corresponde à realidade.

Políticas laborais pouco comunitárias

Desde o início, a diretiva revelou-se controversa entre os Estados-membros, tradicionalmente protetores das suas políticas laborais e sistemas de segurança social.

Antes de iniciarem as conversações com o Parlamento, os 27 países chegaram a acordo sobre uma posição comum que introduzia alterações consideráveis na presunção legal, alargando os critérios para sete e acrescentando uma disposição vaga que permite contornar o sistema em determinados casos.

Os eurodeputados optaram por uma cláusula de presunção geral que se aplicaria, em princípio, a todos os trabalhadores das plataformas. Os critérios para a reclassificação como trabalhadores por conta de outrem só seriam aplicados durante a fase de contestação, tornando mais difícil para as empresas contornarem o sistema. 

Os legisladores também reforçaram os requisitos de transparência dos algoritmos e aumentaram as sanções para as empresas que não cumpram os requisitos.

O fosso entre o Conselho e o Parlamento europeus abrandou as negociações, conhecidas como trílogo.

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A resistência dos Estados-membros tem a ver com a presunção legal de emprego, que o trílogo reverteu para os critérios originais de 2/5, o equilíbrio entre trabalhadores a tempo inteiro e a tempo parcial, a carga administrativa imposta às empresas privadas e os potenciais efeitos adversos na economia digital em geral.

"Em suma, a questão é que o texto não oferece clareza jurídica e não está em conformidade com o acordo do Conselho", disse um diplomata do grupo de países que se opõem ao acordo, sob condição de anonimato. "Proteger os trabalhadores, sim, mas a competitividade deve permanecer".

Outro diplomata disse que a posição alcançada no Conselho era "bastante delicada" e deixava um espaço mínimo para concessões. "É difícil. Não é um dossier fácil", observou o funcionário.

Bélgica deve continuar mediação

Além de não haver a maioria qualificada necessária para avançar ao nível dos Estados-membros, a Alemanha poderá vir a abaster-se. Sendo o maior país do bloco, o caminho para uma maioria qualificada torna-se ainda mais íngreme.

Alguns dos países relutantes acolhem as sedes  de algumas das plataformas digitais mais proeminentes da Europa: Bolt (Estónia), Wolt (Finlândia), Free Now e Delivery Hero (Alemanha). 

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Estas empresas, juntamente com a Glovo (Espanha), a Uber (EUA) e a Deliveroo (Reino Unido), criaram associações para a representação dos seus interesses, em Bruxelas, que fazem intenso lóbi para influenciar a legislação.

Uma dessas associações, a Move EU, celebrou publicamente,, o impasse daído da reunião de dezembro e classificou a diretiva como "inadequada" po rcausa da presunção legal, argumentando que "sobrecarregaria os tribunais nacionais e anularia reformas positivas".

Em contrapartida, a Confederação Europeia de Sindicatos (CES) afirmou que a proposta de lei estava a ser "atrasada sem qualquer razão válida" e apelou às instituições para que encerrassem o dossiê. "O acordo encontrado em trílogos estava longe de ser ideal, mas finalmente trouxe algumas normas básicas para o setor", afirmou a confederação.

Cabe agora à presidência belga da UE apresentar uma nova posição comum e avançar para uma sétima ronda de negociações com os eurodeputados.

"Estamos muito determinados a chegar a um acordo, mas não a qualquer preço. Porque, como é óbvio, temos de manter a ambição inicial" estabelecida pela proposta da Comissão, disse Pierre-Yves Dermagne, ministro belga da Economia e do Trabalho, na semana passada.

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"Sabemos que o prazo é muito apertado. Estamos a falar de uma questão de semanas, na verdade".

Mas o caminho a percorrer está cheio de obstáculos. Um novo impulso no Conselho para satisfazer as exigências da coligação de bloqueio pode desencadear a reação dos governos de esquerda. A França, em particular, é vista como uma oposição inflexível à diretiva.

E mesmo que o Conselho consiga, de alguma forma, ultrapassar as adversidades e rever a sua posição comum, nada garante que os eurodeputados estejam dispostos a ceder e a diluir o acordo de dezembro. Se o texto não conseguir concluir a fase do trílogo até meados de fevereiro, data-limite imposta pelas eleições, ficará num limbo legislativo.

"Estamos agora num impasse, com a Presidência belga confrontada com a tarefa de conciliar posições tão opostas que o resultado corre o risco de ser um regulamento muito fraco", disse Agnieszka Piasna, analista no Instituto Sindical Europeu (ETUI).

"Se o Conselho não alterar a sua posição, poderemos assistir a uma diretiva que estabelece um mínimo tão baixo que as condições dos trabalhadores das plataformas em alguns países poderão piorar e obstruir a via legal. Apesar de ser incrivelmente dispendiosa e complicada, aos tribunais têm sido até agora uma forma eficaz de os trabalhadores defenderem os seus direitos", acrescentou a analista.

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