Mulheres Yazidis: de escravas sexuais ao trauma duradouro

Mulheres Yazidis: de escravas sexuais ao trauma duradouro
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Uma reportagem dura sobre o sofrimento de mulheres e crianças Yazidi que foram raptadas e tornadas escravas sexuais do Daesh

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Estugarda, Alemanha – Conversas de mulheres ecoam pelas escadas de um edifício de apartamentos modesto.
“Aveen”, 26 anos, chama-lhe o seu santuário. Vive num dos mais de 20 quartos-dormitório, grandes o suficiente apenas para uma pequena cama de metal, uma secretária e um cacifo. O nome dela foi alterado para lhe proteger a identidade.
A vida de Aveen num quieto subúrbio contrasta com o que deixou para trás no Iraque onde nasceu. Ela é uma antiga escrava sexual do Daesh. Um programa alemão ajuda mulheres Yazidis a reconstruir as vidas delas
Durante quase 12 meses, ela foi sujeita a abusos horríveis; raptada, drogada, espancada, repetidamente violada e trocada entre militantes.
Depois, em Janeiro de 2016, foi-lhe dada a aoportunidade de sarar e reconstruir a vida graças ao “Projeto de Quotas Especiais”. O plano ambicioso, lançado pelo estado alemão de Baden-Württenberg, trouxe 1100 mulheres e crianças – todas ex-prisioneiros do Daesh e maioritariamente yazidis – para o país.

‘Não houve nada que eles não me tivessem feito’

Encontrámos a costureira tímida e de voz suave há dois anos, num campo para deslocados no norte do Iraque. Aveen tinha acabado de escapar do seu martírio e vivia com a mãe numa tenda.
A família de Aveen é Yazidi, uma minoria não muçulmana que vive maioritariamente no norte do Iraque.
Em 2014, à medida que o Daesh conquistava grandes partes da região, os Yazidis transformaram-se num alvo de extermínio para o Daesh, que lhes chamava adoradores do diabo por causa da religião antiga que mantêm e executando centenas de homens e raptando-os para os forçar a trabalhar.
Aveen, juntamente com cerca de 7 mil mulheres e crianças Yazidi, foi capturada por militantes do Daesh no verão de 2014, de acordo com investigadores das Nações Unidas. Muitas das mulheres tornaram-se escravas sexuais para os membros do grupo terrorista.
Na altura, os militantes expandiam o poderio no norte do Iraque e pouco depois de terem tomado Mossul, lançaram-se para a área de Sinjar, lar de cerca de meio milhão de yazidis, incluindo a família de Aveen. Ela foi levada para Raqqa, na vizinha Síria.
Seis dos membros da família de Aveen ainda estão desaparecidos, incluindo duas irmãs que podem estar sob domínio do Daesh.
Numa voz hesitante, quase um murmúrio, voltou a contar-nos a sua tormenta – como os militantes lhe bateram e depois a drogaram. Desmaiou, foi violada.

A tormenta de Aveen: A experiência traumática de uma mulher Yazid sob a brutalidade do Daesh
“Não houve nada que eles não me tivessem feito”, disse ela enquanto tentava conter as lágrimas.
Aveen conseguiu escapar quando a mulher do seu raptor se apiedou dela e a ajudou a atingir um local seguro.

Longe da origem do mal, mas com trauma duradouro

Aveen encontrou sobreviventes entre os membros da família; a mãe, uma irmã mais nova e um irmão a viver numa tenda, num campo para Yazidis deslocados no norte do Iraque, que cresce cada vez mais.
Apesar de fugir das garras dos militantes, Aveen está aprisionada num trauma emocional. Sofreu de ataques de pânico frequentes, pesadelos, mal comia e chorava regularmente.
Mas num Iraque destruído pela guerra, não havia acesso a ajuda psicológica. Numa comunidade profundamente conservadora como a de Aveen, a sua tormenta tornou-se a sua vergonha e era incapaz de partilhar a angústia até mesmo com a mãe ou com a irmã. E depois havia a constante ansiedade, à medida que os militantes do Daesh ocupavam território a pouco mais de 30 quilómetros.
Cerca de 1 800 mulheres e crianças conseguiram fugir aos raptores, mas tal como Aveen, a maioria sofria em silêncio. Apenas uma mão cheia era alvo de algum tratamento para os traumas físicos e emocionais.
“Costumava pensar que era a única que estava sob o sofrimento de uma experiência tão atroz”

A missão de um profissional
O psicólogo Jan Kizilhan, um especialista alemão em trauma, entrevistou mais de 1400 sobreviventes. O fato de muitas terem tendências suicidas perturbou particularmente o profissional. Pelo menos 20 acabaram por cometer suicídio, de acordo com Kizilhan.
Arquitetou um plano para trazer 1 100 sobreviventes, entre as mais traumatizadas. O estado alemão de Baden-Württemberg providenciou aproximadamente 96 mil euros para o programa-piloto.
“A rapariga mais nova que examinei tinha 8 anos. E esteve cerca de 8 meses nas mãos do Daesh. Foi vendida 10 vezes”, disse-nos Kizilhan. “Isso quer dizer que em 8 meses ela foi violada centenas de vezes, todos os dias.”
As mulheres e crianças vivem em 23 abrigos espalhados pela região do sul alemão, conhecida pela floresta luxuriante e carros topo de gama bem como a casa mãe de marcas como Mercedes Benz e Porsche.
A localização dos abrigos não é revelada de modo a proteger as sobreviventes do alcance do Daesh ou dos simpatizantes. As sobreviventes têm vistos especiais por dois anos, com a opção de ficar permanentemente na Alemanha.
Kizilhan diz que precisam de tempo para fazer a transição física e que muitas ainda não estão prontas para receber tratamento psicológico.
“Cerca de um terço das mulheres e crianças estão sob tratamento médico psicológico, mas cerca de 300 não estão prontas. Precisam de tempo. O trauma delas está longe de ter acabado”, diz. “As famílias ainda estão em cativeiro, com o Daesh. A família é crucial para estas pessoas. Se a sua família está sob cativeiro ou pensar que está a ser torturada, como pode trabalhar no trauma que tem? Não é possível.”
O pai de Aveen, três irmãos e duas irmãs ainda estão desaparecidos. Aveen ainda espera por um terapeuta. Está sob medicação para dormer à noite e diz: “Já não choro tanto.”
Está lentamente a aprender o alemão. Assistentes sociais fazem visitas regulares para saber como ela e as outras mulheres estão. As 30 mulheres cozinham e fazem refeições juntas e encontram conforto em conviver com outras sobreviventes.
“Costumava pensar que era a única em sofrimento com uma experiência tão atroz”, diz Aveen. “Pensava que eu era o pior caso, mas estar aqui com as outras mulheres fez-me perceber que não sou a única a sofrer.
Apesar daquilo a que a assistente social que lhe foi designada chama “progresso significativo” no trauma que tem, este está profundamente enraizado. Semanas antes da nossa reunião, perguntámos a uma amiga de Aveen o que poderíamos levar como presente para ela. A amiga respondeu “Por favor certifiquem-se de que não trazem perfume ‘oriental’, porque desencadeia uma resposta negativa. O cheiro fá-la lembrar-se de alguns dos seus raptores.”
“O que tentamos fazer é explicar-lhes que, sim, este trauma faz parte das suas vidas, mas não estará lá para o resto da vida delas,” diz Kizilhan.
‘Uma oportunidade para renascer’
Outra sobrevivente, Ivana Waleed, de 21 anos, teve uma recordação brutal do seu passado recente quando reconheceu um homem que ela afirma ter abusado dela e tê-la vendido, quando via as notícias on-line. Afirmou que ele estava a tentar misturar-se com civis e tinha cortado a longa barba. Waleed encontrou o homem no Facebook, publicou um apelo para o levar diante da justiça.
“Nunca me vou esquecer do que me aconteceu,” diz Waleed enquanto nos mostra a cara do homem. “Não quero que ele seja sumariamente executado. Quero justiça. E estou disposta a testemunhar e dizer em tribunal o que ele me fez e a todas as outras raparigas Yazidi.”
Waleed é uma das histórias de sucesso do programa. Faz psicoterapia semanalmente. Diz que a está a ajudar.
“Quando estava num campo, no norte do Iraque, fui deixada sem esperança. Mas quando ouvi sobre o programa alemão, disse-me que seria uma oportunidade para renascer.”
Está a aprender Alemão e Inglês, a fazer aulas de fotografia e de pintura, e a sonhar alto.
“Um dia quero ser advogada e lutar pelo meu povo.”

‘Elas vão lutar para sobreviver”
Segundo ativistas Yazidi, há pelo menos 2400 mulheres e crianças nas mãos do Daesh.
À medida que a guerra contra os militantes continua a expulsá-los dos seus redutos, estas prisioneiras podem estar quase a atingir a liberdade. Kizilhan já começou a planear o acolhimento e tratamento. Está a treinar psicólogos Yazidis e curdos que estarão habilitados a tratar sobreviventes no Iraque.
Com o financiamento do Governo alemão, fundou uma escola de Psicoterapia na Universidade de Dohuk, no norte do Iraque. Os alunos terão de frequentar 3 anos de estudos sob os mesmos critérios praticados na Alemanha e no Reino Unido.
Entre as 1100 mulheres e crianças a viver na Alemanha, não houve, até agora, qualquer suicídio.
“Graças a Deus, isto é bom,” diz Kizilhan. “Elas são fortes. Elas vão lutar para sobreviver.”

Por YUKA TACHIBANA e KELLY COBIELLA

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