A violência urbana em França - após o jovem Nahel ser morto por um polícia quando, alegadamente, resistia à detenção - relembra os motins de 2005. Dois sociólogos fazem a análise.
Que paralelos podem ser traçados entre estes dois acontecimentos? Embora a origem da raiva - a morte de jovens durante controlos policiais - seja semelhante, o contexto social é diferente e os canais de comunicação evoluíram muito, permitindo a disseminação instantânea e sem filtros da informação.
Os motins de 2023 serão mais intensos do que em 2005
No outono de 2005, França viveu três semanas de tumultos, inicialmente, concentrados nos chamados subúrbios "sensíveis" da região parisiense, antes de se estenderem a outras partes do país.
A revolta foi desencadeada pela morte, em 27 de outubro, perto de Clichy-sous-Bois (Seine-Saint-Denis), de dois adolescentes - Zyed e Bouna - que foram eletrocutados num equipamento da EDF, o maior fornecedor de energia gaulês, onde se tinham refugiado para escapar a um controlo policial.
As suas mortes, que se seguiram às de dois outros jovens, uns meses antes, deram origem a uma onda de violência urbana durante a qual foram incendiados mais de 10 000 carros, danificados numerosos edifícios, feridos dezenas de polícias, guardas e manifestantes e detidas mais de 6 000 pessoas. Os tumultos provocaram ainda três mortos, dois dos quais em incêndios.
A 27 de junho, a história repetiu-se com a morte de Nahel, um jovem franco-argelino de 17 anos que foi morto a tiro por um agente da polícia quando alegadamente se recusou a obedecer.
De acordo com os últimos números divulgados pelo Ministério do Interior, os oito dias de violência urbana que se seguiram causaram danos parecidos e mobilizaram mais forças de segurança do que os motins de 2005, que duraram três semanas.
Cenários que se repetem
Espetaculares na sua intensidade, os motins de 2023 e 2005 estão longe de ser os únicos ocorridos em França.
O sociólogo François Dubet, que contabilizou cerca de quarenta motins desde 1980, diz-se impressionado com a repetição do mesmo cenário: "Sempre que há um problema ou um assassinato pela polícia, há violência contra edifícios públicos, esquadras de polícia, escolas, câmaras municipais. Acaba sempre com algumas pilhagens, os representantes eleitos e as associações não são ouvidos".
O sociólogo Fabien Truong concorda: "Os mesmos problemas repetem-se, ou seja, detenções frequentes, há a impressão de que as coisas vão ficar fora de controlo, o que acontece com bastante regularidade, porque é tudo crónico. Infelizmente, todos os anos se registam mortes em bairros destes, na sequência de confrontos com a polícia. Isto reflete (...) a lógica de suspeição, com a polícia a intervir muitas vezes às cegas".
Os jovens sentem-se "negligenciados"
Em 2005, como em 2023, muitos jovens de 16 e 17 anos saíram à rua para exprimir a sua cólera e o seu ressentimento.
"É uma franja jovem dos subúrbios que sente, com ou sem razão, que chegou a um impasse, que foi abandonada e que, no fundo, sente que não tem mais nada a perder". São_ "jovens que_não têm, à sua volta, uma presença adulta suficiente_",_ explica Fabien Truong.
Os problemas são profundos: a transformação dos bairros em guetos, a precariedade, o desemprego, o fracasso do sistema de Educação nacional, o racismo, a discriminação e a delinquência estão entre os sintomas mais frequentemente citados.
François Dubet sublinha também o vazio que rodeia os jovens envolvidos na violência urbana: "Por detrás dos, chamemos-lhes, desordeiros, nestes motins, de hoje ou de ontem, não há nenhuma organização, nenhum partido, nenhum sindicato, nenhuma mesquita, não há nada. O que é caraterístico é o vazio político. O presidente da câmara, que fez tudo o que podia pelo centro social e pelo centro de juventude, ainda pode falar, mas fala para o vazio. Ninguém o ouve".
Em 2023, as redes sociais desempenharam um papel acelerador
Desta vez, as redes sociais desempenharam um papel catalisador, como explica François Dubet: "O assassinato de Nahel foi filmado. Todos os cidadãos puderam ver um polícia a brandir um revólver contra a cabeça de um rapaz que conduzia um carro. Em 2005, ninguém viu nada, tudo foi interpretado e discutido".
As cenas de destruição e de pilhagem, difundidas nas redes sociais, criam um burburinho e têm um efeito de bola de neve: "Podemos constatar que existem efeitos de encenação (...). Além disso, as redes mudaram a forma como percecionamos a relação entre a polícia e o público, atualmente", salienta Fabien Truong.
Um contexto social mais explosivo em 2023
Em 2023, o contexto social parece mais explosivo do que em 2005. França acaba de viver várias semanas de greves e manifestações ligadas à reforma das pensões.
O país continua também marcado pelo movimento "Gilets jaunes", os coletes amarelos em português; contra a precariedade do emprego e a injustiça social; por dois anos de restrições sanitárias ligadas à crise da Covid-19 e por uma inflação galopante, ligada à guerra na Ucrânia, que pesa sobre o poder de compra.
Outros acontecimentos ocorridos no estrangeiro também se propagaram ao Velho Continente, como a morte do afro-americano George Floyd, símbolo da violência policial e da discriminação de que é vítima a comunidade negra nos EUA.
Em 2005, Nicolas Sarkozy, então ministro do Interior, usou frases chocantes para inflamar a opinião pública. _"Vamos limpar os bairros sociais com uma_Kärcher" declarava aquele que viria a ser Presidente de França, durante uma visita a La Courneuve, um bairro sensível da região parisiense. A 25 de outubro, pouco antes dos tumultos, o mesmo Sarkozy tinha voltado a fazê-lo, dirigindo-se aos habitantes do bairro de Argenteuil: "Estão fartos deste bando de escumalha? Então, vamos livrar-nos deles".
Fora de França, uma impressão de caos generalizado
Tal como em 2005, as imagens dos recentes tumultos foram amplamente difundidas em todo o mundo, dando uma impressão de caos em França, onde os subúrbios são vistos, por alguns observadores estrangeiros, como zonas sem lei onde reina a criminalidade.
"As pessoas que vivem nestas zonas não são traficantes de droga. Apesar do desemprego maciço, a maior parte trabalha, pode ser menos abastada, mas vive uma vida normal", afirmava o sociólogo François Dubet, sublinhando uma forma de ambivalência no seio desta população: "Os habitantes condenam a violência porque destrói o seu bairro, mas também denunciam o racismo policial e pedem mais polícias, porque o bairro deixou de ser habitável".
Fabien Truong também considera que a violência urbana em França distorce a realidade destes bairros: "Quando olhamos para os números dos fluxos populacionais vemos que há muita mobilidade social. Por isso, se os bairros estão a ficar mais pobres é também porque as famílias, bem sucedidas ou que melhoram as suas condições de vida, abandonam esses bairros", referia o sociólogo, que destaca também os muitos êxitos dos jovens: "Há uma franja destes jovens que encontrou realmente o seu lugar na sociedade francesa. Basta ver quem trabalha na SNCF, quem trabalha em empresas, quem está na seleção francesa, quem são as personalidades preferidas dos franceses, qual é a música mais ouvida, o rap. Mas a outra face da moeda é o empobrecimento dos próprios bairros".