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Síria numa encruzilhada: que destino espera o país e quem ganhará e perderá com a queda de Assad?

Soldados do exército sírio capturados por grupos armados na estrada Homs-Damasco
Soldados do exército sírio capturados por grupos armados na estrada Homs-Damasco Direitos de autor  AP /Ghaith Alsayed
Direitos de autor AP /Ghaith Alsayed
De Samia Mekki
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Com os múltiplos grupos armados que assumiram o controlo do governo sírio, as suas diferentes agendas ideológicas e a dependência em relação a potências regionais e internacionais, as perspetivas permanecem nebulosas, se não pessimistas, quanto à possibilidade de uma transição pacífica do poder.

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Perante o cenário dramático que se vive na Síria e a aceleração dos acontecimentos em poucos dias, parece que o país está prestes a entrar numa fase ambígua e aberta a todas as possibilidades.

Quem olha para o mapa do país, da região ou mesmo além dela, vê-se confrontado com vários pontos de interrogação que podem não ter resposta num futuro próximo.

Quem governará o país, o que acontecerá com os aliados de Assad em Teerão, Beirute e Moscovo, mas também com os seus inimigos mais ferozes, e que destino pode esperar a Síria depois de Assad?

Líbano

O Líbano, o ponto fraco da Síria, está preocupado com os próprios problemas internos, com a devastadora guerra israelita que custou a vida a cerca de 4.000 pessoas e com o Hezbollah, antigo aliado de Assad, exausto pela guerra que travou contra Telavive e que terminou com o anúncio de um frágil cessar-fogo de 60 dias. O qual, aliás, tem vindo a assistir a violações diárias do lado israelita que, até agora, resultaram em destruição e em mortos e feridos, mesmo entre as fileiras do exército libanês, que é responsável por supervisionar o respeito pelo cessar-fogo.

Com a mudança do panorama político em Damasco, a linha de abastecimento do Irão ao Hezbollah através da Síria será cortada ou, na melhor das hipóteses, não será fácil. A Síria deixará de ser o "quintal" do Hezbollah, que foi crucial para o restabelecimento do controlo de Assad na sua guerra contra os grupos armados da oposição, depois de ter intervindo no conflito em 2013. Tudo sob o pretexto de proteger o território libanês dos ataques destes grupos, bem como de proteger o santuário da cidade de Sayyida Zainab nos arredores de Damasco, que tem um estatuto especial entre os muçulmanos xiitas e que, se fosse comprometido, poderia ter provocado mais tensões sectárias e rivalidades entre sunitas e xiitas.

Turquia

A Turquia tentou distanciar-se dos avanços espetaculares dos grupos armados nos últimos dias e sublinhou que não está envolvida na operação. Isto apesar do apoio que tem dado à oposição desde o início da revolta contra o regime de Assad, abrindo as suas fronteiras aos deslocados sírios e tendo apelado, na altura, à saída do presidente Recep Tayyip Erdogan. Ancara também acolheu figuras da oposição e deu apoio ao Exército Nacional Sírio. Será que podemos esperar uma solução para o dilema dos cerca de três milhões de refugiados sírios na Turquia se a segurança for restabelecida na Síria e se o país evitar entrar num novo ciclo de caos?

Israel

Israel ocupou os Montes Golã durante mais de 57 anos antes de anunciar a sua anexação, que Washington reconheceu durante a anterior administração de Donald Trump, apesar das claras resoluções internacionais que consideram os Montes Golã um território ocupado. Telavive está a acompanhar de perto o que se passa na Síria, entre acusações de grupos armados de que a sua recente ação serve também os interesses israelitas e surge na sequência da ameaça do primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu ao presidente Assad, há duas semanas.

Há dois dias, o Estado hebreu mobilizou as forças aéreas e terrestres no Golã sírio ocupado, em antecipação a qualquer emergência. Mas, seja como for, a queda do regime serve os interesses de Israel, sobretudo se surgir um regime virado para dentro e preocupado com os seus problemas internos e que não reivindique o seu direito a reclamar os montes Golã ou a chegar às margens do lago Tiberíades.

O Irão

Quanto ao Irão, perdeu um aliado importante e vital na região árabe, quase o único à exceção do Iraque. A história das relações entre os dois países remonta a muitos anos antes da chegada de Assad júnior ao poder. Os interesses convergiam entre um regime islâmico que emergiu da revolução liderada por Khomeini, que derrubou o Xá em 1979, e um regime nacionalista secular liderado pelo Partido Baath, chefiado por Assad.

Na altura, Hafez al-Assad apoiou Teerão na sua guerra contra o Iraque na década de 1980, tendo-se unido na sua hostilidade contra o regime do falecido presidente Saddam Hussein e na rivalidade com Washington, que apoiava militarmente o Iraque na guerra de oito anos contra o Irão.

Este apoio continuou sob o governo do seu filho, especialmente durante a guerra civil, e não podemos esquecer o papel do comandante da Força Quds, o general Qassem Soleimani - morto num ataque dos EUA em Bagdade no início de 2020 -, na prevenção da queda do regime e na gestão das operações militares em Alepo em 2015. Local onde, ele próprio, liderou a batalha para quebrar o cerco à maior cidade da Síria e à capital económica do país, sendo então chamado pela oposição de "Carniceiro de Alepo".

Teerão está a perder o seu aliado em Damasco e é o maior perdedor na região, mas parece estar a adotar uma posição cautelosa em relação aos recentes acontecimentos, o que se reflete nas recentes declarações tímidas e ponderadas sobre a situação na Síria. Está também preocupado com outros desafios e questões, nomeadamente a hostilidade crescente entre o país e Israel e os Estados Unidos, que se encontram no limiar de uma nova administração liderada pelo presidente eleito republicano, Donald Trump.

Com o dossier nuclear por resolver e com as sanções norte-americanas e internacionais ainda no panorama, a República Islâmica está apreensiva quanto à próxima etapa, sobretudo com a nomeação, por parte de Trump, do diplomata veterano Brian Hook, conhecido pelas suas posições duras em relação a Teerão desde a era do presidente George W. Bush, para o cargo de enviado especial responsável pelo dossier iraniano.

Rússia

A Rússia continua a ser um dos principais intervenientes no que se passa na Síria e a saída do aliado Bashar al-Assad seria um rude golpe para Moscovo, que tem instalações militares neste país. As mais importantes são a base aérea de Hmeimim, situada a sudeste da cidade de Latakia, e a base naval de Tartus, que deu à Rússia acesso às águas do Mediterrâneo a partir da sua margem oriental, o que serve os seus interesses na região e também em África.

Manobras russas na Síria. 15 de fevereiro de 2022
Manobras russas na Síria. 15 de fevereiro de 2022 AP/Russian Defense Ministry Press Service

A Rússia de Putin tem prestado um apoio militar significativo ao regime desde 2015, com menos de 4.000 soldados no país. Este apoio, sob a bandeira da luta contra o Estado Islâmico e os grupos extremistas, tem sido crucial para manter o regime de Bashar al-Assad.

A queda do regime significaria que Moscovo deixaria de ter um ponto de apoio na Síria, dada a profunda hostilidade dos grupos armados. Do ponto de vista geoestratégico, seria um rude golpe para o presidente Vladimir Putin, que trava uma guerra na Ucrânia há quase três anos. Estes desenvolvimentos podem ser um fator de resolução da questão ucraniana e influenciar o conflito entre a NATO e os países ocidentais, por um lado, e a Rússia, por outro.

Que futuro para Damasco?

Agora que os grupos armados liderados pelo grupo militante Hayat Tahrir al-Sham (antigo al-Nusra) assumiram o controlo do governo na Síria, e com as diferentes agendas ideológicas destes grupos e a associação de alguns deles a potências regionais e internacionais, o cenário permanece nebuloso, se não mesmo sombrio.

Ninguém pode afirmar com certeza que o país não será dividido e que não haverá uma transição democrática do poder. Será que a Síria vai evitar um destino semelhante ao da Líbia, desde a sua revolta contra o regime de Kadhafi, a 17 de fevereiro de 2011?

Atirador sírio em frente ao tribunal militar de Damasco enquanto o edifício arde em chamas
Atirador sírio em frente ao tribunal militar de Damasco enquanto o edifício arde em chamas AP /Ghaith Alsayed

Há anos que o país está dividido entre um governo internacionalmente reconhecido, sediado em Tripoli, a oeste, e um governo a leste, liderado pelo homem forte da Líbia, o marechal Khalifa Haftar, num contexto de polarização regional e internacional. Todas as tentativas para sarar o fosso entre os "irmãos desavindos" e pôr fim à rivalidade que resultou em centenas de mortos e na imposição de dois governos, dois bancos centrais, forças armadas e milícias, infraestruturas degradadas e uma economia em colapso, apesar da vasta riqueza petrolífera do país.

Outro receio é o cenário que se tem registado no Afeganistão, controlado pelos talibãs desde 15 de agosto de 2021, e a imposição de um regime islâmico de linha dura após a retirada dos EUA e de outras forças internacionais.

Homem armado da oposição entra no palácio presidencial e o regime cai. Domingo, 8 de dezembro de 2024
Homem armado da oposição entra no palácio presidencial e o regime cai. Domingo, 8 de dezembro de 2024 AP Photo & AP Photo/Omar Sanadiki

E se o Hayat Tahrir al-Sham, ponta de lança no derrube do regime de Assad, assumir o controlo dos mecanismos do governo num país multiconfessional e multiétnico, povoado por curdos, alauítas, drusos, xiitas e sunitas? Isto para além dos cristãos que fazem parte integrante do tecido demográfico da Síria, uma vez que os seus antepassados foram os primeiros a abraçar esta religião e a seguir os ensinamentos de Jesus. A antiga cidade de Maaloula, situada a 50 quilómetros da capital Damasco, é a mais antiga cidade cristã da Síria e os seus habitantes ainda falam aramaico, a língua de Jesus.

Será que estes receios vão ser desmentidos pela realidade e que vai haver uma transferência de poder pacífica, em que o país vai sarar as feridas da guerra civil e virar a página de 54 anos de regime totalitário?

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