O tabu que Malta criou em torno do aborto

O tabu que Malta criou em torno do aborto
De  Valérie Gauriat
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Malta continua a encarar a questão do aborto como um crime. Em todas as suas vertentes, mesmo que tenha havido uma violação ou haja risco de vida. No

Malta continua a encarara questão do aborto como um crime. Em todas as suas vertentes, mesmo que tenha havido uma violação ou haja risco de vida. No exterior, muitos denunciam uma política arcaica. Mas, neste arquipélago, como constatámos, parece imperar a lei do silêncio.

“Fiquei grávida aos 17 anos. Decidi ir a Inglaterra para abortar. Mas as coisas correram mal durante a operação. Acordei a meio, só queria sair dali. Eles disseram-me ‘não, não, não’ e voltaram a deitar-me. Depois acho que fizeram tudo à pressa porque, quando saí no dia seguinte, tinha muitas dores. Comecei a sangrar imenso no avião, coágulos de sangue.”

“Foi pouco antes de fazer 44 anos. Falei com o meu marido e decidimos que o melhor para a família, para os nossos quatro filhos, era fazer um aborto. É muito duro, porque em Malta não podemos falar com ninguém sobre isto. Temos de guardar segredo como se tivéssemos cometido um crime.”

Dois depoimentos anónimos, uma realidade. Em Malta, a interrupção voluntária da gravidez é passível de pena de prisão entre 18 meses e três anos, mesmo em casos de violação, de riscos para a saúde da mãe ou de malformação do feto.

O culto da maternidade

O aborto em Malta é um tema verdadeiramente tabu. Passámos horas e horas a tentar obter depoimentos, sobretudo por parte daqueles que são a favor da despenalização. Eles existem, são bastante ativos nas redes sociais. Mas ninguém quer dar a cara.

Não é, de todo, o caso de Paul Vincenti, um empresário que se tornou numa das principais figuras do Gift of Life, um movimento pró-vida maltês. “Para mim, e para a maior parte das pessoas aqui em Malta, a vida começa no momento da conceção. É impensável matar um outro ser humano simplesmente porque ele não foi desejado. Nós definimo-nos como pró-vida, não como antiaborto. Matar é errado. É errado matar uma criança. O correto é ajudar uma mãe que se encontre nesse tipo de situação”, declara.

O culto da maternidade é muito pronunciado neste arquipélago mediterrânico, com cerca de 450 mil habitantes. O Ministério da Educação ajudou a criar o Servizz Ghozza, um centro para mães adolescentes. Têm entre 12 e 18 anos, e integram um programa que lhes fornece acompanhamento durante a gestação e nos primeiros meses após o parto. A responsável, Melanie Bonavia, salienta que “o programa em si ajuda-as a tomar consciência não só do papel de jovens mães, mas também de estudantes e de mulheres. E talvez ainda como parceiras numa relação e como membros de uma família.”

Deborah Bartolo recorreu ao centro há cinco anos. Hoje em dia, sempre que pode, esta professora vem dar uma mão nas atividades. “Fazer este programa torna-nos seres humanos mais fortes. Eu acredito que todas as vidas têm direito a nascer e a serem valorizadas. A responsabilidade era minha, o que é que eu podia fazer? Se procurarmos ajuda, encontramo-la e conseguimos ir até ao fim”, afirma.

“Como é que se vive depois de passar por uma situação destas?”

Mas há quem não queira seguir o mesmo caminho. Para essas mulheres, a opção mais comum é procurar uma clínica no Reino Unido ou na Sicília, mesmo ao lado. Ao que tudo indica, o número de abortos clandestinos em Malta é praticamente inexistente. Os médicos incorrem numa pena de 4 anos de prisão e a expulsão da atividade. Aliás, entre os profissionais de saúde, abordar o tema é mal visto e mesmo arriscado. Falámos com uma médica que também preferiu o anonimato.

“Há muita gente que se mostra intransigente na questão do aborto, mas depois vai fazê-lo na mesma. Conheço estórias de mulheres que regressaram ainda sedadas, a sangrar. Isto é um facto. Um dos aspetos que será talvez mais compreensível nesta questão tem a ver com as mães que não são autorizadas a abortar, mesmo sabendo que o feto não terá hipóteses de sobreviver. Eu própria já vi, no espaço de algumas horas, duas crianças nascerem, uma anencéfala, ou seja sem cérebro, outra com o Síndrome de Edwards, que não é compatível com a vida. E as mães tiveram de as ver morrer na incubadora. Como é que se vive depois de passar por uma situação destas?”, pergunta.

Eleanor Borg trabalha como psicoterapeuta. É diretora de um programa de apoio a grávidas em situações de dificuldades e também dá aconselhamento a mulheres que já abortaram. Uma coisa, assegura, é certa: o trauma fica. “Como o aborto é ilegal em Malta, há muito medo do julgamento dos outros. Se eu, por exemplo, decidisse fazê-lo, teria receio de partilhar essa experiência com quem quer que fosse. Guardaria tudo para mim. Só que, dessa forma, não há hipótese de sarar. Não se faz o luto. A experiência permanece interiorizada, os sintomas vão piorando ao longo dos anos. São inúmeras as implicações que isto tem na vida de uma mulher”, considera Borg.

O consenso no poder e os movimentos espontâneos

O governo de Malta não prevê, por agora, qualquer alteração na lei. Tanto os trabalhistas que estão no poder como a oposição conservadora se anunciam contra eventuais mudanças. Segundo as sondagens, 60% dos malteses defende a mesma posição.

Renee Laiviera, à frente da Comissão Nacional para a Promoção da Igualdade, diz que “ao longo dos anos, alguns grupos da sociedade começaram a mexer-se. Na verdade, 60% da população é contra, o que em si já demonstra que houve mudanças. Antes, a percentagem era muito maior. No entanto, os dois grandes partidos políticos mantêm a mesma posição. Ou seja, diria que tem de haver um debate público. O grupo que pretende mudar alguma coisa tem de trabalhar nesse sentido.”

O governo trabalhista fez aprovar outras leis relativas à união civil de casais homossexuais, por exemplo, ou à liberdade de identidade de género. Mas ninguém toca no assunto do aborto, numa sociedade que faz eco de princípios católicos profundamente enraizados. Mas a explicação não reside apenas aí. Contactámos vários sociólogos para tentar procurar respostas. Nenhum deles aceitou uma entrevista. Foi na localidade de Zabbar que encontrámos finalmente a luz. Na rua da Imaculada Conceição…

Segundo Andrea Dibben, investigadora em política social, há um fator que pesa muito neste país: a proteção dos elementos que compõem a identidade nacional, aliás uma questão que gerou muitas preocupações durante a adesão à União Europeia. “Malta é um país muito pequeno. Os elementos de controlo social, a estigmatização, tendem a ser muito mais significativos do que em sociedades maiores. É uma ilha que foi colonizada há 7 mil anos. Há um medo da invasão, e quando digo invasão não me refiro apenas à invasão física… Há todo um receio da invasão concetual, de que os nossos pensamentos, o nosso estilo de vida, a nossa identidade nacional, os nossos comportamentos se comecem a decompor por causa da influência de países mais liberais”, realça Dibben.

Mas se impera o silêncio em torno da interrupção voluntária da gravidez, o mesmo não acontece com a questão da pílula do dia seguinte, também proibida em Malta. Francesca Fenech Conti criou uma página no Facebook reservada a mulheres para discutir o tema, mas o objetivo é iniciar um debate público. Segundo ela, “as escolhas que existem, neste momento, são perigosas. Em vez de poderem utilizar uma contraceção de emergência – a pílula que se vende em todas as farmácias noutros países -, as mulheres são obrigadas a tomar os contracetivos normais em grandes quantidades. Isso também pode ser perigoso. Nós queremos iniciar um debate informado. Esperemos que isto seja o início da mudança aqui em Malta. Pelo futuro. Pelas mulheres de Malta.”

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