Síria: Tortura na primeira pessoa

Síria: Tortura na primeira pessoa
De  Hans von der Brelie

Tortura na primeira pessoa, a vontade de responsabilizar criminosos e a "jurisdição universal": guerras dentro da guerra na Síria.

“Os meus pulsos estavam acorrentados. Penduraram-me numa barra de ferro sob o teto para que os meus pés ficassem dois centímetros acima do chão.”
‘Abu Firas’ – Vítima de tortura

“Eles penduraram-me do tecto pelas mãos . Bateram-me com uma barra de ferro.”
Abdul Karim Rihawi – Vítima de tortura

“Sentia o meu dedo do tamanho de uma bola de futebol. Sentia os meus braços muito compridos porque os meus ombros foram deslocados com tortura… olhava e via os meus braços muito longe…”
Yazan Awad – Vítima de tortura


Sem culpados, não há justiça


Quando as emoções deles são um torvelinho agitado, Nahla Osman decide-se por um passeio ao longo do rio Main com os clientes.
Osman é uma advogada alemã, cujos pais são de Alepo, na Síria, que ajuda vítimas de tortura prisional. Juntamente com o irmão, dirige um escritório de advocacia em Rüsselsheim, na Alemanha.

Osman compilou centenas de relatórios de testemunhas. Uma impressionante quantidade de provas de que há tortura nas prisões sírias, em proporção substancial. Mas, então, por que é que apenas um punhado de sobreviventes decidiu avançar para tribunal até agora? Osman sabe a resposta: “Muitos refugiados sírios esperam ainda uma reunificação familiar. Se os membros da família estão na Síria, os que já chegaram à Alemanha têm medo de tomar medidas legais. Se iniciassem aqui na Alemanha um processo judicial contra os torturadores, o regime sírio prendiam ou matavam os familiares.”

No escritório de advocacia de Osman conhecemos dois sobreviventes da tortura prisional siria: Abdul Karim Rihawi, fundador da Liga dos Direitos Humanos Sírios, e um ativista de direitos civis, de Damasco, que prefere não ser identificado e que se dá como ‘Abu Firas’ no primeiro testemunho que alguma vez deu sobre a tortura por que passou.

“Tinham um instrumento eléctrico e punham cabos eléctricos debaixo dos meus pés, debaixo dos dos meus braços e nos polegares. Ainda se conseguem ver sinais do procedimento nos meus polegares. Depois ligavam a corrente, desligavam a corrente, ligavam, desligavam, outra vez e outra e outra…”

‘Abu Firas’ quer levar o seu caso ao Ministério Público alemão em breve, pedindo-lhe que emita mandados de detenção contra funcionários sírios de topo.

“Torturaram-me com o método do pneu de carro, apertando o meu corpo dentro do pneu, com os braços dobrados, sem me poder mexer. Bateram-me com um bocado de um motor de um tanque, uma espécie de cinto em V, muito grosso e bastante largo…Logo depois dos dois primeiros golpes senti o meu corpo paralisado. Só tive esperança de conhecer o filho de que a minha mulher estava grávida naquela altura.”

O testemunho de ‘Firas’ deixa o passado doloroso para falar do futuro possível. Quanto a isso, é inequívoco: “A reconciliação com todos os grupos sectários na Síria é possível, sim, mas não com este regime criminoso.”

Insiders: Torture in Syrian prisons - Part 1

A volatilidade das provas


Abdul Karim Rihawi, o amigo de ‘Abu Firas’, convida a euronews para o seu minúsculo quarto de hotel onde está há já dois anos. Aí, mostra-nos as provas que recolheu contra os torturadores, em conjunto com a sua rede de direitos civis ainda ativa de modo clandestino na Síria. Identificou alegados torturadores que vivem agora na Alemanha.

Em face de um álbum com fotos tipo passe, a euronews pergunta a Rihawi: “Entre estas pessoas há alguém que seja torturador?”

A resposta é clara: “Muitos deles, muitos deles: torturar… uma série de crimes… eles cometeram muitos crimes… Por isso estamos a pedir às autoridades alemãs que ajam contra isto.
Fazemos uma lista destes assassinos. Até agora temos seis listas, entregámo-las ao governo alemão…
Há pelo menos 7 mil criminosos de guerra da Síria em toda a Europa mas a maior parte deles residem na Alemanha, vieram sobretudo depois da chegada maciça de refugiados em 2015…
É também isso que me faz zangar: eles estão a gozar a vida aqui na Alemanha e têm todos os benefícios resultantes da lei, mesmo sendo criminosos de guerra….”

A unidade de crimes de guerra no Gabinete Federal Alemão de Investigação Criminal disse à euronews que recebeu 4300 pistas de sobreviventes sírios e iraquianos. Resultaram em 43 investigações, mas muitos suspeitos apagaram as conta de facebook. É difícil ficar em posse de provas sólidas.

“A tortura na Síria é muito normal, muito sistémica. O que é anormal é ires para a prisão e ninguém te torturar… Bateram-me com cabos, com as mãos, com os pés…
Quando nos levavam à casa-de-banho tinhamos de passar junto aos cadáveres no chão. Meu Deus, era realmente horrível…
Toda a noite… ainda consigo ouvir as vozes das pessoas a implorar, a gritar, a berrar da tortura…
Ouvi a voz de uma criança, um rapaz, talvez tivesse 14 ou 16 anos. Só chamava pelo pai: ‘Por favor, preciso do meu papá… o meu papá….”


A arte da e na sobrevivência


Viajamos agora para norte, com destino a Berlim, a capital alemã, a mais de 500 quilómetros.

O jovem artista sírio Hamid Sulaiman convida-nos para o seu estúdio, em Berlim.
Também ele conhece as prisões sírias por dentro. Depois de ter sido libertado, foi-lhe concedido asilo em Paris.
Atualmente, divide-se entre a Alemanha e a França. Sulaiman é o autor de “Freedom Hospital”, uma novela gráfica onde relata o início do conflito na Síria. O livro é dedicado a um antigo amigo, Hussam, torturado até à morte.

Sulaiman fala-nos de Hussam, do processo criativo resultante do pesadelo que deixou para trás no tempo físico, mas com que vive e com que faz viver os que já não podem: “Partilhámos o início da Primavera Árabe juntos, partilhámos o sonho da liberdade num país melhor e tudo isso… Eu deixei a Síria, o Hussam estava prestes a sair da Síria quando foi preso…e foi morto na prisão. Cinco dias mais tarde telefonaram à mãe para ir buscar o corpo.
Eu sou um sobrevivente, os outros estão mortos. Eu falo por eles, é um pouco a minha responsabilidade…
Pensei muito em como podia representar a violência nesta obra porque muitas pessoas vão dizer: ‘ok, não eras obrigado a mostrar sangue e toda aquela violência para falares sobre a Síria…’. E, ao mesmo tempo, eu digo-me: ‘ok, mas esta é a realidade.’”

Insiders: Torture in Syrian prisons - Part 2

A persistência de quem resiste ao regime


Encontramo-nos com Anwar al-Bunni, um conhecido advogado sírio de direitos humanos, e Yazan Awad, um ativista em direitos civis de Damasco, ambos sobreviventes de tortura. O nosso destino é o Centro Europeu para Direitos Constitucionais e Humanos, uma organização que localiza criminosos de guerra por todo o mundo.

O trabalho artístico de Hamid Sulaiman está exposto na sede do Centro. Apoiados pela conselheira jurídica Alexandra Lily Kather, Anwar e Yazan entregaram queixas criminais ao Procurador Federal Alemão. Querem apanhar os cabecilhas, aqueles que deram as ordens.

Queremos saber dos próximos passos, do que vai acontecer em 2018. Kather fala de um trajeto a percorrer: “Depois das investigações a pessoas específicas, esperamos obter mandados de detenção emitidos pelo Supremo Tribunal Federal na Alemanha; e depois dos mandados de detenção alemães, esperamos mandados de detenção em toda a Europa e internacionalmente, para estes indivíduos.”

Anwar al-Bunni não tem dúvidas de que a tortura começa por cima: “Encontrei-me pessoalmente com o chefe do Gabinete da Segurança Nacional síria e falei-lhe sobre a tortura – e ele sabe disso… porque eu estava detido, detido por ele.”

Na Procuradoria Federal alemã, Yazan está listado como “testemunha-chave número 24”: está entre esses muito poucos sobreviventes sem medo de falar publicamente.
Durante a Primavera Árabe organizou protestos da juventude civil. Em novembro de 2011 foi preso e torturado de modo tão severo que confessou crimes que nunca cometeu – tal como ter assassinado o primeiro ministro do Líbano.

“Eu disse ao torturador: ‘Confesso o que seja, até testemunho contra a minha própria mãe’. Ele respondeu: ‘Nós vamos trazê-la e veremos…’.
Saiu e, depois de 15 ou 30 minutos, disse-me: ‘Trouxemos a tua mãe para assistires à tortura dela’, mas eu sabia que ele mentia e comecei a gritar: ‘A minha mãe, a minha mãe…’ e ele esmurrou-me na cara.
O torturador disse: ‘ok, vamos ver o que faremos com a tua mãe’, mas eu estava vendado, sem poder ver nada. A pressão psicológica sobre mim era enorme – colapsei porque abusaram de uma mulher inocente.
Eu não a conhecia, talvez ela fosse uma das prisioneiras do Centro de Jaweyeh. Trouxeram-na, ela estava na sala e era óbvio que duas pessoas a estavam a torturar ou a violar porque distingui várias vozes.
Desmoronei completamente. Disse ao torturador que admitia o que quisesse, mas que parasse de a torturar, de a violar. Ele respondeu que os homens ainda não tinham acabado com ela…”

Yazan não contém as lágrimas. O tempo parece não tirar a força das memórias que evoca: “Eles estavam a torturar os outros prisioneiros antes, mas agora tinham vindo 5 ou 6 homens para me torturarem em conjunto. Torturaram-me, torturaram-me… Do meu ponto de vista, eu pensava que já estava morto. Do ponto de vista deles, fingiam que eu era um homem que os atacava. mas como pode um homem nú atacar os seus torturadores? Disseram-me: Pensas que és um homem? Vamos mostrar-te que és uma mulher. Continuaram a bater-me e o torturador que usava o punho da arma para me bater, de repente virou a arma e introduziu o cano no meu corpo, por trás, e depois arrancou-o para fora, de novo. Quando o fez, as pontas de ferro do cano da arma destruíram-me o ânus.”

O Tribunal Criminal Internacional em Haia não pôde tomar “medidas contra funcionários sírios porque a Rússia e a China usaram o veto deles. Mas a Alemanha e um alguns países da União Europeia aplicam o ‘‘princípio da jurisdição universal’‘ e começaram uma investigação a nível nacional.

Anwar al-Bunni, enquanto advogado de direitos humanos, tem recados para deixar: “A primeira mensagem que queremos mandar aos assassinos e criminosos na Síria e no mundo inteiro: o tempo da impunidade acabou. A impunidade já não é permitida nunca, em nenhum sítio. E, em segundo lugar: tenham cuidado, a justiça está à vossa espera. Sem justiça, não há Síria. Nenhum país em todo o mundo pode ser construído sem justiça.”

Al-Bunni corre para apanhar o avião: tem algumas reuniões de alto nível em Bruxelas, com a Comissao Europeia e o governo belga. Al-Bunni quer convencer mais membros da União Europeia a usar também a ferramenta da “jurisdição universal”: que não haja um porto de abrigo para torturadores, em lado algum…

Insiders: Torture in Syrian prisons - Part 3

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