Nadim Houry trabalha há 15 anos em direitos humanos. Diz que raramente viu uma prática de tortura tão sistematizada como a que testemunhou na Síria.
As notícias que chegam da Síria são sombrias apesar das retiradas e da, talvez, derrota próxima do chamado Estado Islâmico e a perspetiva de uma resolução pacífica do conflito distancia-se com o falhar sucessivo das negociações de paz e com a recusa do presidente Bashar al-Assad V, apoiado pela Rússia, de deixar o poder.
Assim, a guerra continua e uma das facetas – tenebrosa e talvez menos conhecida deste conflito – é a prática generalizada de tortura, também em civis, seja em prisões governamentais ou às mãos dos rebeldes. De acordo com a Amnistia Internacional, perto de 20 mil sírios morreram sob custódia do governo e 75 mil desapareceram depois da intervenção das forças de segurança.
A Euronews entrevistou Nadim Houry, especialista da Humans Rights Watch em direitos humanos na Síria para perceber qual é e como funciona o procedimento jurídico ao alcance das vítimas.
Here's what
— Hélène Parson (@HeleneParson) 20 de dezembro de 2017nadimhoury</a> from <a href="https://twitter.com/hrw?ref_src=twsrc%5Etfw">
hrw has to say on the scope and magnitude of torture in Syria. Full interview bySophieClaudet</a><br>out soon on <a href="https://twitter.com/euronews?ref_src=twsrc%5Etfw">
euronewspic.twitter.com/mtRhlvolic
Sophie Claudet, Euronews – Qual é, pelo que sabe, o grau e a magnitude da tortura praticada na Síria? É algo bastante sistemático, seja nas prisões governamentais seja em hospitais – sabe-se que unidades hospitalares têm sido usadas como centros de tortura. Quão generalizada está e porquê?
Nadim Houry – É sistemática e é generalizada. Trabalho pelos direitos humanos há já 15 anos em muitas partes do mundo… Raramente vi uma prática tão sistematizada como a que vi na Síria… prática de tortura.
É basicamente um mecanismo de controlo dos serviços de segurança societária. Não é novo, tem sido um pilar do poder do regime na Síria desde o final da década de 70. Na verdade, ainda usam algumas das técnicas que colegas meus documentaram em 1980. Por que o fazem? Porque como muitas autocracias e ditaduras, querem criar uma parede de medo para conter a sociedade e controlar os seus elementos. E quando a revolta começou em 2011, vimos estas práticas aumentarem em magnitude e escala para controlar ainda mais e mais as pessoas.
Euronews – Vimos na nossa reportagem que vários autores de tortura conseguiram chegar à Europa. Algum deles já foi condenado?
Nadim Houry – Houve de facto uns quantos processos de acusação na Europa, em particular na Suécia e na Alemanha. Não falamos de mais do que uma dúzia deles em ambos os países. Levaram a algumas condenações por tortura e em alguns casos as pessoas em causa foram também acusadas de terrorismo ou de execuções.
Euronews – Também há sírios que foram torturados por grupos rebeldes. Cruzou-se com casos desses e podem esses crimes também ser julgados?
Nadim Houry – Sim, claro que sim. Quer dizer, nós documentámos tortura e execuções feitos por grupos de oposição ao governo, conhecidos como o Exército Livre da Síria, mas também grupos associados à Frente al-Nusra ou ao Daesh. E assistimos a processos judiciais destes casos na Europa. Na verdade, em termos de números de processos em solo europeu, a maior parte dos acusados têm sido membros do que podem ser considerados grupos de oposição sírios, ou dos outros já referidos. Porquê? Simplesmente porque muitos deles fugiram da Síria e foi mais fácil processá-los.
Euronews – E quanto aos torturadores que estão ainda na Síria, ou aqueles que encobriram ou ordenaram tortura? Os testemunhos das vítimas que vimos na reportagem são suficientes para os processar?
Nadim Houry – Se se concluir que têm indícios suficientes sem que seja possível investigar a pessoa, podemos ter potencialmente um mandado de prisão local e talvez um dia um mandado de detenção internacional, se houver um acordo entre os dois países. Se o torturador permanece na Síria, há muito pouco a fazer, no contexto atual, para o prender. Mas pelo menos este mandado de detenção, a um nível europeu, pode atuar como espada sobre a cabeça dos autores de tortura se alguma vez viajarem para a Europa.
Euronews – E é justo dizer que mesmo que demore um pouco até se obter justiça para as vítimas, todas estas provas que estão a ser recolhidas, todos estes testemunhos ouvidos agora, podem um dia vir a ser cruciais no âmbito de um Tribunal Criminal Internacional ou de qualquer outro tribunal que possa julgar?
Nadim Houry – Devemos manter presente que estes processos na Europa devem ser apenas uma componente de uma abordagem jurídica muito mais ampla ao conflito na Síria, que inclui tantos crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Ainda tem de haver uma atitude política para que a situação seja referenciada a um tribunal internacional. Será que vai acontecer no Conselho de Segurança, dada a oposição da Rússia? Talvez não, mas poderá haver potenciais caminhos alternativos através da Assembleia Geral? Nós queremos acreditar que sim, e estamos a trabalhar com muitos governos nesse sentido. Contudo, a esperança é que, à medida que o grau de violência diminui na Síria, vozes internas sírias comecem a pedir justiça de modo mais pressionante e esperamos que a comunidade internacional amplifique essas vozes.
Euronews – Mas o dossiê da Síria é substancialmente político. Acha que a justiça pode sobrepor-se à política?
Nadim Houry – Se a justiça pode sobrepor-se? Não gostamos de pensar desse modo. Quer dizer, é mais se podemos criar um caminho para a justiça, para que se colham as sementes da responsabilização. E se, politicamente, é impossível obter hoje essa responsabilização porque os membros de segurança de topo não vão sair de território sírio, pode ao menos plantar-se hoje a semente para que, quando viajem, possam ser presos? Pode semear-se agora o que pode vir a ser, não já amanhã, mas talvez em 5 anos, um sistema judicial sírio independente com a coragem de processar estes elementos? Pode parecer uma prova de fé, agora, mas a experiência em lugares como a Argentina, ou em África em países como o Chade, mostra que o que parece impossível agora pode ser possível amanhã. Mas a única maneira de tornar o amanhã possível é começar a trabalhar nisso hoje.