Trabalhadores humanitários afirmam que este caso é o exemplo de uma repressão europeia mais alargada contra indivíduos e organizações que prestam assistência a migrantes e requerentes de asilo.
Duas dezenas de trabalhadores humanitários que participaram em operações de busca e salvamento na ilha grega de Lesbos, entre 2016 e 2021, começaram agora o seu tão aguardado julgamento.
Outrora um ponto turístico paradisíaco, Lesbos tornou-se o principal ponto de entrada de indivíduos e pequenas embarcações que se dirigiam para a Europa em 2015, um ano que marcou o pico da crise migratória no continente.
Mais de dez anos depois, os arguidos - 24 no total - enfrentam uma pena de prisão até 20 anos por acusações que incluem a alegada participação numa organização criminosa, a facilitação da entrada de cidadãos de países terceiros na Grécia e o branqueamento de capitais.
Embora o julgamento se centre numa questão de segurança das fronteiras, de acordo com as autoridades gregas, os grupos de defesa dos direitos humanos classificaram as acusações de "infundadas", condenando o que dizem ser provas frágeis e acusando as autoridades de uma repressão politizada contra grupos humanitários.
Esta situação surge após anos de alegações de que as autoridades gregas têm violado as leis internacionais e europeias na sua resposta à chegada de migrantes e potenciais requerentes de asilo.
Em janeiro deste ano, o Tribunal Europeu dos Direito Humanos, sediado em Estrasburgo, considerou que a guarda costeira grega tinha conduzido "sistematicamente" as chamadas expulsões contra potenciais requerentes de asilo, marcando a primeira vez que um tribunal reconheceu oficialmente uma prática que a Grécia há muito nega.
Estou confiante de que o que fiz foi correto
Entre os acusados encontra-se Seán Binder, um cidadão germano-irlandês que viajou para Lesbos em 2017, com 23 anos. Era um voluntário de busca e salvamento do agora extinto Emergency Rescue Centre International (ERCI), uma ONG humanitária grega registada.
"Passei a maior parte do tempo em 'turnos de observação', olhando para o continente turco a poucos quilómetros de distância, onde os contrabandistas empurram as pessoas para barcos e as enviam para procurar asilo na Europa", disse Binder à Euronews.
"Os barcos não querem ser apanhados, por isso não há luzes brilhantes. Em vez disso, estávamos atentos aos pedidos de socorro, aos gritos e aos berros. Eu comunicava semanalmente com a guarda costeira e informava a autoridade portuária quando saíamos para o mar", acrescentou.
Mas o trabalho voluntário de Binder foi interrompido quando foi detido em 2018 com Sarah Mardini, uma trabalhadora síria de uma ONG que atravessou a nado um trecho do Mediterrâneo com a sua irmã Yusra. A sua história foi ficcionada no filme da Netflix "The Swimmers".
Em entrevista à Euronews, Binder sublinhou a sua frustração face à provação de sete anos que viveu: "Se somos realmente estes criminosos hediondos, não estaríamos já na prisão?", questiona.
Em 2023, Binder e um grupo de outros arguidos foram absolvidos de uma série de contra-ordenações: falsificação, escuta ilegal de frequências de rádio e espionagem. No ano seguinte, os restantes 16 arguidos foram arquivados.
Binder disse à Euronews que, desta vez, está preparado.
"Em termos práticos, preparei-me para a prisão", disse. "Tenho um pequeno fundo de maneio para que a minha mãe e a minha família me possam visitar na prisão. Estou confiante de que o que fiz foi correto. Estou menos confiante de que a polícia tem feito a coisa certa durante todos estes anos. Mas continuo otimista quanto à atuação do poder judicial. Afinal de contas, estamos no berço da democracia".
Chegadas empurradas para um "estado de invisibilidade"
Atualmente, não há ONG a conduzir operações de busca e salvamento ou a dar resposta de emergência durante os desembarques em Lesbos, apesar de mais de 3.500 pessoas terem chegado à ilha este ano, de acordo com a agência de refugiados da ONU.
O último desembarque em que estiveram presentes socorristas teve lugar em março de 2020. No mesmo ano, o governo grego reforçou as regras de registo das organizações e indivíduos que trabalham com requerentes de asilo e migrantes.
Franziska Grillmeier, jornalista freelancer que tem feito reportagens sobre a situação nas fronteiras externas da UE, com destaque para Lesbos, explicou que, desde a altura da detenção de Binder, "tornou-se muito mais normal impedir o trabalho dos socorristas e dos trabalhadores humanitários nas ilhas do mar Egeu".
"Significa que tudo foi empurrado para um estado de invisibilidade", disse. "Não vemos o que está a acontecer. Como jornalista aqui presente, não seria capaz de documentar a chegada de um barco sem que me fizessem muitas perguntas".
O diretor-executivo da Amnistia Internacional da Bélgica, Wies de Graeve, descreveu as acusações contra Binder como "parte de uma tendência que se espalha pela Europa e que está a criminalizar a solidariedade", afirmando que os governos europeus estão a "punir aqueles que tentam preencher essa lacuna perigosa".
Casos semelhantes ao de Binder foram apresentados em vários países europeus. Em 2018, três bombeiros espanhóis envolvidos em missões de salvamento de migrantes e refugiados em Lesbos foram levados a julgamento por contrabando, mas acabaram por ser absolvidos.
A ONG PICUM, sediada em Bruxelas, afirma que 142 pessoas enfrentarão processos judiciais semelhantes em 2024.
Durante os anos em que Binder esteve a aguardar julgamento, assistiu-se também a uma forte reviravolta na política europeia em matéria de migração, com os líderes a adoptarem cada vez mais pontos de vista de linha dura e a explorarem formas novas e "inovadoras" de travar as chegadas.