A crise política em França está a alimentar a incerteza económica e do mercado, com riscos para o crescimento e para o cumprimento das regras de empréstimo da UE. O BCE poderá ter de atuar se a situação continuar a deteriorar-se.
A crise política em França está a preocupar os economistas, que alertam para o facto de uma paralisia institucional prolongada poder prejudicar o crescimento e complicar os esforços de estabilização das finanças públicas.
A súbita demissão do primeiro-ministro Sébastien Lecornu, há menos de um mês no cargo, acentuou a crise causada pela falta de maioria do bloco governamental, numa altura de crescente pressão fiscal.
Sem um roteiro para resolver o impasse e com o presidente Emmanuel Macron a enfrentar crescentes apelos a novas eleições, os analistas alertam para o facto de a continuação da incerteza poder pôr em risco o cumprimento das regras orçamentais da UE, à medida que Bruxelas reforça a sua supervisão.
Mercado obrigacionista francês assinala aumento do risco-país
O mercado obrigacionista francês não perdeu tempo a reagir à demissão de Lecornu.
No momento em que escrevemos, os rendimentos das obrigações do Tesouro francês a 10 anos (OAT) estão agora a ser negociados cerca de 86 pontos base acima dos seus equivalentes alemães - um diferencial visto pela última vez durante o colapso do governo Barnier no final de 2024.
Este valor coloca os níveis atuais ao mesmo nível dos registados em julho de 2012, durante a fase final da crise da dívida da zona euro.
De acordo com a Goldman Sachs, a França registou o maior aumento do risco-país entre os principais mercados desde as eleições do ano passado.
O que significa a crise política em França para a economia
Numa nota publicada na terça-feira, o Goldman Sachs afirmou que espera que a incerteza resulte num crescimento ligeiramente mais fraco e em défices orçamentais mais elevados.
O economista sénior Simon Freycenet estimou que o défice de 2026 poderá aumentar 0,1 pontos percentuais, enquanto o crescimento do PIB poderá abrandar cerca de 0,2 pontos percentuais.
A Goldman Sachs observou também que o mercado obrigacionista já fixou o preço de grande parte do risco político.
Se a situação atual se mantiver, o banco espera que o diferencial entre as obrigações francesas e alemãs a 10 anos diminua para a sua previsão de 70 pontos de base para o final de 2025. No entanto, advertiu que a incerteza persistente significa que os riscos continuam a inclinar-se para o lado positivo.
"A demissão do primeiro-ministro francês assinala riscos orçamentais acrescidos", afirmou a economista do ING Charlotte de Montpellier.
A especialista indicou que França corre o risco de entrar no novo ano sem um orçamento aprovado para 2026. Nesse caso, o governo funcionaria sob uma extensão automática do orçamento de 2025, limitando tanto as novas despesas como as iniciativas de reforma.
De Montpellier afirmou que esta paralisia política surge num momento particularmente sensível, uma vez que o país já está a ser objeto de um procedimento por défice excessivo por parte da Comissão Europeia.
"França está atualmente sujeita a um procedimento por défice excessivo. É provável que a Comissão adote uma posição mais dura em relação ao país e insista na necessidade de restabelecer a ordem nas finanças públicas", afirmou De Montpellier.
A falta de progressos na consolidação orçamental, explicou, poderá fazer com que o défice se aproxime dos 5% do PIB em 2026, com a dívida pública a ultrapassar os 116% do PIB.
De acordo com as estimativas do ING, o crescimento económico de França deverá aumentar apenas 0,8% no próximo ano, o que coloca o país muito abaixo da média da zona euro.
França enfrenta eleições antecipadas ou um impasse: O que é que está em jogo?
Os analistas consideram que se desenrolam dois cenários principais, nenhum dos quais oferece uma solução fácil.
De acordo com o BBVA, o Presidente Emmanuel Macron poderá nomear um novo primeiro-ministro, numa nova tentativa de formar um governo estável, ou dissolver a Assembleia Nacional e convocar eleições antecipadas.
Ambas as vias comportam riscos: uma nova nomeação pode ter dificuldade em assegurar uma maioria parlamentar, enquanto as eleições podem aprofundar a fragmentação política e atrasar decisões orçamentais fundamentais.
"Podemos ver os spreads a sofrer uma maior pressão de alargamento à medida que a incerteza persiste na perspetiva de novas eleições, mas também porque o mercado está a olhar para o aumento dos riscos, como o fim antecipado da presidência de Macron", disse Benjamin Schroeder, analista do ING.
Se a especulação sobre um fim prematuro da presidência de Macron ganhar força, o spread OAT-Bund a 10 anos poderá ultrapassar o limiar dos 90 pontos de base, segundo o ING.
Poderá o BCE intervir?
Os mercados começam também a centrar-se no Banco Central Europeu e na possibilidade de este ser obrigado a intervir para conter os riscos crescentes no mercado de obrigações francês e evitar repercussões em toda a zona euro.
No centro do debate está o Instrumento de Proteção de Transmissão (IPT) do BCE, uma ferramenta de 2022 que permite a Frankfurt comprar obrigações de países que enfrentam tensões de mercado injustificadas.
Embora França possa não cumprir os rigorosos critérios orçamentais e de reforma necessários para a ativação do IPT, o BCE ainda tem alguma margem de manobra.
"O IPT tem condições rigorosas no papel, mas o BCE ainda tem poder discricionário na utilização deste instrumento", observa Benjamin Schroeder, do ING.
De acordo com o ING, se o mercado obrigacionista francês se tornar demasiado volátil e ameaçar o controlo do BCE sobre as condições financeiras em toda a zona euro, este poderá ser forçado a agir, mesmo que França não cumpra rigorosamente os critérios orçamentais de apoio: "França é demasiado grande e relevante para não se fazer nada", acrescenta Schroeder.
O caos em França poderá afetar o euro?
O euro já mostrou sinais de fraqueza em resposta à turbulência política em França, mas os analistas consideram que o impacto está contido, pelo menos por enquanto.
"A saga política em França sofreu uma nova reviravolta", diz Michał Jóźwiak, analista do mercado cambial da Ebury. Destaca que o euro caiu quase 1% em relação ao dólar, apesar do cenário de paralisação do governo dos EUA.
O BBVA indicou que o risco real reside no potencial de eleições antecipadas, que o banco vê como "o cenário mais prejudicial para o euro a curto e médio prazo".
"Os desenvolvimentos políticos e fiscais em França (particularmente a perspetiva de eleições antecipadas) podem diminuir o apetite dos investidores pela moeda ", disse o analista de divisas do ING Francesco Pesole, observando que a cotação do euro face ao dólar já carece de uma narrativa forte para empurrar para o nível 1.20 no curto prazo.
Ainda assim, observa que as expetativas de dois cortes nas taxas da Reserva Federal até o final do ano, combinadas com a sazonalidade favorável do quarto trimestre, continuam a apoiar a visão de que a cotação possa chegar a 1.20, mesmo tendo em conta a incerteza política na França.
Não é fácil sair do impasse político
O impasse político em França está a alimentar a incerteza económica, com os analistas a alertarem para o facto de poderem ser travadas as reformas e mantidos os défices elevados.
À medida que a pressão aumenta, aumentam também os riscos para a estabilidade do mercado e para o cumprimento das regras orçamentais da UE.
Por enquanto, a situação permanece contida e o BCE mantém-se à margem - mas, sendo França demasiado grande e importante do ponto de vista sistémico para ser ignorada, poderá não se manter por muito tempo se a crise se agravar.