Depois do embargo ao carvão russo, o que se segue: petróleo ou gás?

Os Estados-membros da União Europeia continuam divididos sobre o dossier dos combustíveis fósseis russos
Os Estados-membros da União Europeia continuam divididos sobre o dossier dos combustíveis fósseis russos Direitos de autor Dmitry Lovetsky/Copyright 2019 The Associated Press. All rights reserved.
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De  Jorge LiboreiroPedro Sacadura
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Depois de os países da União Europeia darem "luz verde" a um embargo ao carvão russo, as atenções estão, agora, voltadas para o petróleo e o gás natural, as exportações de combustíveis fósseis mais lucrativas para Moscovo

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A União Europeia (UE) ousou quebrar um tabu que há alguns meses seria impensável: banir o carvão russo, um dos preciosos combustíveis fósseis do país - além do petróleo e do gás natural - de que o bloco comunitário depende.

A medida radical surgiu depois de os líderes europeus serem confrontados com imagens brutais de assassinatos indiscriminados em Bucha, um subúrbio perto de Kiev.

O massacre precipitou a condenação internacional e gerou alegações de crimes de guerra cometidos pela Rússia, que nega qualquer tipo de envolvimento.

Ao conhecer os horrores de Bucha, os Estados-membros decidiram impor um período de graça de 120 dias até eliminar, por completo, as importações de carvão russo em agosto.

A decisão pretende complementar rondas anteriores de sanções contra a Rússia e ajudar a paralisar a máquina de guerra do Kremlin: a venda de combustíveis fósseis representa a principal fonte de receita da Rússia, contribuindo com mais de 40% do orçamento federal.

Mas, embora o anúncio de Bruxelas tenha recebido elogios iniciais, foi rapidamente eclipsado pela inação tomada contra as duas exportações mais lucrativas de Moscovo: o petróleo e o gás natural.

No ano passado, as compras de carvão russo por parte da União Europeia totalizaram 5,16 mil milhões de euros. Um valor muito aquém dos 71 mil milhões de euros gastos em petróleo e dos 16,3 mil milhões gastos com gás natural.

A crise energética que está a asfixiar o bloco comunitário desde o final do verão passado inflacionou ainda mais a pesada fatura da energia. De acordo com think tank económico Bruegel, sedeado em Bruxelas, a União Europeia está, atualmente, a pagar à Rússia 450 milhões de euros pelo petróleo e 400 milhões de euros pelo gás natural – todos os dias.

Josep Borrell, o chefe da diplomacia europeia, denunciou os gastos impressionantes no Parlamento Europeu, dizendo aos eurodeputados que o bloco gastou 35 mil milhões de euros em combustíveis fósseis russos desde o início da guerra na Ucrânia e apenas mil milhões de euros em ajuda externa destinada às autoridades de Kiev.

Na mesma semana, o parlamento aprovou, com apoio esmagador, uma resolução não vinculativa a pedir um "embargo total imediato às importações russas de petróleo, carvão, combustível nuclear e gás."

O apelo refletiu os pedidos da Polónia e dos países bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia), que há semanas lideram a campanha pública para cortar abruptamente a ligação com a energia russa, argumentando que a paralisação é a única maneira de infligir dor real ao presidente russo Vladimir Putin e forçá-lo a negociar um cessar-fogo.

Em sentido oposto, Alemanha, Áustria e Hungria, que dependem fortemente dos combustíveis fósseis russos, manifestaram preocupações em relação a um embargo total.

O chanceler alemão, Olaf Scholz, alertou que um corte repentino mergulharia "toda a Europa em recessão", enquanto o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, prometeu vetar qualquer tentativa de impor uma proibição de energia porque entende que isso "mataria" o seu país. (A Hungria votou, ainda assim, a favor da proibição do carvão.)

Mas como Moscovo não dá sinais de desistir da invasão da Ucrânia e perante os vários relatórios que continuam a surgir expondo a brutalidade da guerra, a União Europeia entende que o debate crucial não pode mais ser adiado.

A extraordinária unidade política mostrada pelos 27 Estados-membros para enfrentar a agressão de Putin enfrenta agora o maior teste de resistência.

A proibição do petróleo e a geopolítica do mercado

A Rússia é o terceiro maior produtor de petróleo do mundo, atrás dos EUA e da Arábia Saudita, produzindo cerca de 10,1 milhões de barris por dia (bpd) de petróleo bruto.

A Europa é, de longe, o principal cliente: o continente compra 2,4 milhões de barris de petróleo por dia, juntamente com 1,4 milhões de barris por dia em outros produtos refinados. Só a Alemanha e os Países Baixos consomem 1,1 milhões de barris por dia.

Tudo isto tornou a Rússia no principal fornecedor de petróleo da União Europeia, representando mais de 25% do total de importações e resultando em mais de 70 mil milhões de euros gastos em 2021.

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O oleoduto Druzhba - operado pela gigante estatal russa Transneft - transporta mais de um milhão de barris diários diretamente para as refinarias na Polónia, Hungria, Eslováquia, República Checa, Áustria e Alemanha, que depois transformam o ouro negro em gasóleo, nafta, gasolina e lubrificantes.

O oleoduto está a funcionar desde a década de 1960 e promoveu um elevado grau de interdependência entre os dois lados, que confiam nos abastecimentos contínuos e regulares para manter os negócios ativos.

Mas o Druzhba - que ironicamente significa "amizade" - não é a única porta que a UE tem para receber os fornecedores. O bloco recebe a maior parte das importações de petróleo através de portos como o de Roterdão, nos Países Baixos, e de La Havre, em França, onde navios-tanque descarregam milhares de barris de petróleo bruto e toneladas de produtos refinados.

Se a UE decidir cortar o petróleo russo, esses portos seriam fundamentais para contornar os oleodutos físicos e garantir que os abastecimentos continuam a fluir após a introdução do embargo.

"Existem algumas refinarias afetas ao oleoduto [Druzhba] que devem ser as mais expostas a uma interrupção nos fluxos da Rússia", disse à Euronews Ben McWilliams, investigador do think tank económico Bruegel.

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"Algumas das outras refinarias que estão nos portos terão mais facilidade em substituir as importações de petróleo russo porque, em vez de um navio que transporta petróleo bruto da Rússia, recebem um navio que transporta petróleo bruto do Médio Oriente. E com algumas restrições, são capazes de substituir o petróleo bruto desta forma", acrescentou.

O bloco precisaria de alavancar o poder como um rico mercado único para garantir os abastecimentos necessários de outras nações produtoras de petróleo, incluindo a Noruega, a Argélia, a Nigéria, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, para compensar a grande perda do petróleo russo.

Fechar esses acordos pode ser difícil, porque a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), em conjunto com Moscovo, tem limitado a produção desde o início da pandemia de COVID-19, alegando que a procura global ainda é instável e que está sob a pressão do vírus.

"Até agora, os países da OPEP não estão a aumentar a oferta a uma taxa maior do que antes da guerra, o que é, do ponto de vista económico, bastante estranho, já que os preços estão acima de 100 dólares o barril", disse McWilliams.

"Isso deve-se, provavelmente, a outras razões geopolíticas e não a grandes relações, particularmente com os EUA, os sauditas e os Emirados Árabes Unidos, relacionadas com o que acontece na guerra do Iémen, o que significa que eles são menos propensos a ajudar os EUA e os seus aliados", insistiu.

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A OPEP já alertou que um embargo ao petróleo russo criaria um enorme choque no mercado comparável à crise de energia da década de 1970, que provocou um longo e doloroso período de estagflação no Ocidente.

"Poderíamos, potencialmente, assistir à perda de mais de sete milhões de barris por dia de petróleo russo e de outras exportações de líquidos", disse o secretário-geral da OPEP, Mohammad Barkindo, a representantes da União Europeia durante uma reunião recente em Viena, de acordo com uma cópia do discurso a que a agência Reuters teve acesso.

"Considerando as perspetivas atuais de procura, seria quase impossível substituir uma perda de volumes dessa magnitude."

As circunstâncias desafiantes deram origem a ideias intermédias que ficam aquém de um embargo total, mas que, no entanto, asfixiariam o baú de guerra do Kremlin.

Entre as últimas propostas discutidas pelos Estados-membros está a possibilidade de impor uma tarifa onerosa sobre as importações de petróleo russo, que reduziria a procura em todo o bloco e obrigaria as empresas russas a vender barris a preços com desconto.

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Como o debate político continua num impasse, o setor privado está a tomar as rédeas da situação. Algumas das principais empresas petrolíferas da Europa, como a Shell, BP, TotalEnergies e Neste, iniciaram o processo para se livrar do petróleo russo, temendo danos reputacionais e a retaliação direta por causa das sanções ocidentais.

Proibição de gás e os limites da diversificação

A difícil tarefa de banir o petróleo russo e todas as suas terríveis consequências são rapidamente ofuscadas por um dilema ainda maior de banir o gás russo.

No ano passado, a União Europeia importou 155 mil milhões de metros cúbicos (bcm) de gás russo, representando cerca de 40% do consumo do bloco comunitário. Ao contrário do petróleo, em que o abastecimento é facilmente transportado de porto a porto, a grande maioria do gás russo viaja para a UE através de uma rede de oleodutos acima do solo e submarinos.

Muitos Estados-membros acostumaram-se a essa grande infraestrutura. Em países como Alemanha, Áustria, Finlândia, Hungria e Bulgária, a Rússia ocupa uma posição dominante como principal ou único fornecedor de gás. A Alemanha tem acesso direto ao Nord Stream, um gasoduto que transporta mais de 55 mil milhões de metros cúbicos por ano.

Essa dependência empurrou a UE para uma alternativa mais cara, o gás natural liquefeito (GNL), que requer terminais sofisticados que transformam o líquido arrefecido de volta em gás. Os EUA, Catar, Austrália, Nigéria, Argélia, Malásia, Indonésia e Rússia são os principais exportadores.

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À medida que as tensões aumentaram ao longo da fronteira com a Ucrânia nas semanas anteriores à invasão, o bloco comunitário começou a aumentar as suas compras de GNL, quebrando recordes históricos em termos de volume. Uma parceria política recente firmada entre a UE e os EUA permitirá ao bloco receber 15 mil milhões de metros cúbicos adicionais de GNL dos EUA. O acordo baseia-se num roteiro separado revelado pela Comissão Europeia que visa comprar 50 mil milhões de metros cúbicos de GNL até o final de 2022.

Mas estes planos ambiciosos pretendem diminuir, gradualmente, a dependência da UE do gás russo, e não aboli-la da noite para o dia. Distribuir tanto GNL em 27 países pode ser logisticamente difícil: os terminais de GNL do bloco estão distribuídos de forma desigual, com a maioria concentrada em nações costeiras como Espanha e Itália, deixando países do interior da Europa Central e Oriental afastados do sistema.

"Desde o início da guerra, o mercado de gás europeu está muito apertado", disse Zongqiang Luo, analista da consultora Rystad Energy, à Euronews.

"Todos os terminais de regaseificação da Europa estão a operar quase em plena capacidade. Nos últimos meses, especialmente, a taxa foi na ordem de 100% de utilização ou perto de 95% para o uso de terminais de gás."

Além de uma capacidade de processamento limitada, a União tem de lidar com uma forte procura internacional por GNL. Enquanto o consumo de gás do bloco, vindo de gasodutos, representa mais de 75% do mercado global, a participação cai para 16% quando se trata de GNL, de acordo com a Comissão Europeia.

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Zongqiang Luo acredita que a UE pode superar essa desvantagem se oferecer um "preço premium muito alto" que possa convencer os compradores asiáticos a revender os seus abastecimentos para os concorrentes europeus.

No entanto, observa o especialista, ainda seria "muito difícil" para a UE atender às suas necessidades de armazenamento de gás sem qualquer gás russo oriundo de um gasoduto.

"Podemos perceber que a União Europeia está à procura de gasodutos alternativos, como o gás africano da Argélia e também o fornecimento de gás do Azerbaijão e, claro, da Noruega", disse Luo.

Mas o impulso repentino de diversificação seria suficiente para compensar apenas metade dos 155 mil milhões de metros cúbicos de gás que o bloco recebe da Rússia, alertou Ben McWilliams, investigador do think tank económico Bruegel. Os governos seriam, por isso, obrigados a "pedir às famílias que cooperem" para reduzir significativamente a procura dos consumidores.

"É possível economizar gás ligando ligeiramente o aquecimento e sendo sensato com o uso da energia. Também envolverá falar com a indústria e algumas indústrias terão de fechar durante alguns períodos de tempo para gerir isso", ressalvou McWilliams, sugerindo que alguns países teriam de repensar a sua eliminação da energia nuclear.

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A interrupção da produção, que já se verificou em alguns setores por causa do aumento das faturas de eletricidade, precipitaria uma dramática desaceleração económica e, possivelmente, uma recessão, a terceira da UE nos últimos dois anos.

O Goldman Sachs estima que um embargo total ao gás russo pode fazer o PIB da zona do euro cair 2,2 pontos percentuais este ano, eliminando, efetivamente, todo o crescimento de 2,5% da sua previsão atualizada.

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