Trata-se de um conflito aparentemente regional, mas com consequências que podem propagar-se aos vários cantos do mundo. A Euronews explica de que modo uma agudização das tensões poderá afetar Portugal.
Os ataques de sexta-feira de Israel contra alvos designados em várias partes do Irão vieram contribuir para um asseverar das tensões já existentes no Médio Oriente. Desde então, as duas partes têm vindo a bombardear-se mutuamente, em investidas que mataram já centenas de pessoas, especialmente no lado iraniano.
Telavive justificou a iniciativa com base no que disse ser a necessidade de conter o avanço do programa nuclear de Teerão, que considera ser uma ameaça “existencial”. Algo que acontece depois de a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) ter reportado que o Irão não está a cumprir as suas obrigações nucleares pela primeira vez em 20 anos - e que foram identificados vestígios de urânio em vários locais que não tinham sido declarados como instalações nucleares.
E, de facto, desde então, diferentes instalações nucleares e militares israelitas foram atingidas e, consequentente, danificadas, nomeadamente em Natanz, Isfahan e Kermanshah, entre outros.
Apesar de se tratar de um conflito, aparentemente, de carácter regional, este poderá ter consequências a nível global, especialmente se o mesmo continuar indefinidamente.
E de que modo Portugal poderá ser impactado? As consequências poderão ser de natureza económica e social, mas também ao nível da segurança e da política externa, como explicam à Euronews Helena Ferro Gouveia, especialista em assuntos internacionais, e o economista João Rodrigues dos Santos, docente coordenador da área de Economia e Gestão da Universidade Europeia.
Impactos económicos
“Apesar da nossa enorme distância geográfica em relação ao Médio Oriente, somos impactados por aquilo que se passa lá”, começou por explicar Helena Ferro Gouveia, que notou que a principal dimensão a ter em conta é a do “impacto económico”. Nomeadamente no que concerne ao “risco de aumento dos preços, nomeadamente da energia”, bem como de “disrupção das cadeias produtivas” - e, consequentemente, de “instabilidade económica”.
Uma tese com a qual o economista João Rodrigues dos Santos concorda - acrescentando que “o impacto direto” deste conflito sobre Portugal “é reduzido”, embora o indireto possa ser bastante mais significativo.
Isto porque “os fluxos de comércio de Portugal com o Irão e com Israel [...] são muito modestos, portanto o efeito direto sobre o comércio externo do país é bastante limitado”, explicou o docente. Contas feitas, “as exportações de Portugal para Israel corresponderam a apenas 340 milhões de euros em 2024, e de Israel para Portugal a cerca de 350 milhões de euros”. No que toca ao Irão, tal comércio direto “tem pouca ou mesmo nenhuma expressão”.
Mas, no âmbito desta intensificação do conflito regional, e registando-se uma eventual interdição ou limitação da circulação no Estreito de Ormuz e no Mar Vermelho, tal poderá afetar “o transporte marítimo à escala global”. É que, recordou o economista, o Estreito de Ormuz, “no seu ponto mais estreito”, tem uma “área navegável de apenas 10 quilómetros”, pelo que a probabilidade de sofrer “alguma limitação, ou de ficar inavegável, está muito longe de ser nula”.
Todo este cenário pode “interferir com os preços do transporte e da logística marítima” e, numa última fase, das “importações portuguesas” e do preço de venda dos produtos ao consumidor. É que o transporte marítimo “é responsável por 80% do transporte global de mercadorias”, pelo que restrições a este nível, “ameaçando as cadeias de abastecimento à escala global, atrasando entregas e causando custos mais elevados de transporte”, acaba também por atingir o “consumidor final”. Assim, referiu João Rodrigues dos Santos, “o impacto à escala global traduz-se num efeito de inflação”.
Além do mais, o docente da Universidade Europeia considerou ainda o Estreito de Ormuz o “corredor energético mais importante do mundo”, sobretudo no que diz respeito ao petróleo - é por lá que circula “cerca de 20% do petróleo utilizado diariamente à escala global” -, mas também ao gás natural.
E isso é algo que pode impactar severamente Portugal, já que “ainda estamos muito dependentes de combustíveis fósseis importados”. Tendo acrescentado o economista: “este é um problema que podemos considerar sério para já, o grande problema no decurso de um confronto direto entre o Irão e Israel.”
A este propósito, citou ainda previsões da Bloomberg, que avançava “três grandes cenários” para a evolução das tensões no Médio Oriente. O primeiro deles, “relativamente pouco impactante, desde que o conflito permanecesse ali confinado no território palestiniano”, nomeadamente na Faixa de Gaza, previa que “o impacto no preço do petróleo e, por conseguinte, na economia mundial seria relativamente reduzido". Num segundo cenário, com um alastramento “ao Líbano e à Síria”, poderia existir “um impacto negativo no PIB mundial de 0,3 pontos percentuais”, enquanto a inflação “aumentaria 0,2 pontos percentuais”. Mas num cenário mais grave, “de confronto militar direto entre o Irão e Israel” e numa situação em que o Estreito de Ormuz “ficasse operacional ou com a navegabilidade limitada”, isso poderia, segundo a Bloomberg, originar uma recessão global” - com uma “queda de 1 ponto percentual no PIB mundial e um acréscimo de 1,2 pontos percentuais na inflação - e levar a “uma subida de 64 dólares no preço do barril de petróleo”.
Sobre o caso nacional, a “Associação Empresarial de Portugal (AEP) diz que estamos perante um risco sistémico, que potencialmente afeta toda a economia”, referiu ainda João Rodrigues dos Santos. Exemplo disso é a “indústria automóvel”, até porque, segundo cálculos da Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel (AFIA), “98% dos automóveis fabricados na Europa são produzidos com peças portuguesas”.
E segundo estima a mesma associação, apontou ainda o economista, “se as indústrias europeias baixarem a sua atividade”, fruto da “perturbação das cadeias de fornecimento” motivada pela instabilidade no Mar Vermelho, “isso vai ter efeito nas empresas portuguesas”, que vão ter “menos encomendas”. O que pode obrigar a uma “reestruturação” e a uma “gestão de custos”, com possível impacto sobre o emprego e os funcionários e podendo até, nos casos mais graves, obrigar ao encerramento das atividades mais expostas.
Uma situação de instabilidade que, tal como é habitual, gera “imprevisibilidade e incerteza” que também afeta os mercados financeiros, ao gerar “retração” e “preocupação face ao futuro”. O que acaba por ser um obstáculo ao investimento, impactando os diferentes países, como Portugal.
Pressões sobre a segurança e política externa
No entanto, as consequências não ocorreriam apenas na dimensão económica, podendo também manifestar-se através de uma série de “pressões sobre a segurança e sobre a política externa portuguesa”, notou Helena Ferro Gouveia.
Primeiro que tudo no que toca à segurança, porque, em território português, existem “representações diplomáticas, quer de um país, quer do outro” - Irão e Israel - pelo que “existe sempre o risco de ocorrerem atentados terroristas” que visem as mesmas.
“Aliás, não seria nada de novo quando considerando o Médio Oriente, por exemplo, as embaixadas, e sobretudo as israelitas, serem alvo de ataques terroristas”, pelo que essa “questão do terrorismo é uma possibilidade” - e atingindo eventualmente, até, “empresas” desses países que operem em Portugal.
Já “em termos de política externa europeia”, a especialista em assuntos internacionais considera que este conflito é “um desafio para todos os governos, e para o Governo português também, que tem tido uma posição de equilíbrio, de ‘tudo por Israel, nada contra a Palestina’”.
Ou seja, “Portugal vai ter que coordenar aquilo que é a sua política externa, sobretudo focando-se em dois eixos”. Primeiro que tudo, o facto de ser “um país atlantista”, o “país que está mais a oeste da Europa” e, portanto, “que está mais próximo dos Estados Unidos”, faz com que Lisboa necessite de estar em sintonia com Washington. Especialmente por ser um Estado “pequeno”.
“Portugal precisa dos Estados Unidos, é um aliado, e, portanto, em matéria de política externa, deve procurar um alinhamento com a política norte-americana, independentemente de quem se senta na Casa Branca”, explicou Helena Ferro Gouveia.
No entanto, o país “tem outro pilar da sua política externa” que tem de ser considerado na equação, “que é o facto de ser membro da União Europeia e de ser europeísta” e de estar alinhado com os “principais players”, neste caso, com “a Alemanha e França”.
“Embora França e Alemanha se dividam no que toca ao conflito israelo-palestiniano, falam a uma só voz, ou pelo menos têm uma posição concertada e comum, no que toca ao Irão”, destacou a especialista, ao reconhecerem “que Israel tem o direito de defender-se” contra Teerão, “ao abrigo do direito internacional”, face ao “risco real” desse país poder “estar muito perto de ter uma arma atómica”.
Assim, no que diz respeito aos “desafios que se colocam à política externa” devido ao asseverar de tensões entre Israel e o Irão, Portugal necessita de ter “alguma cautela no seu alinhamento de posições” com base naquilo que são as suas dimensões atlantista e europeia. Ainda que seja facto que, nesse tópico, “quer Estados Unidos, quer o eixo franco-alemão e a esmagadora maioria dos países europeus estão alinhados”, concluiu.
Riscos de instabilidade social
Mas Helena Ferro Gouveia destaca aquela que, na sua ótica, é outra possibilidade que não deve ser desconsiderada: e que se prende com a questão da “instabilidade social”.
“Tudo o que é Médio Oriente é discutido apaixonadamente e coloca as pessoas em trincheiras há muitos anos, portanto, não é um fenómeno novo”, elucidou, sobre um tema que, acrescentou, “há muitas décadas é discutido de forma irracional, muitas vezes com enorme desconhecimento” acerca da “dimensão política” e da “realidade” da região.
Recordou como, ao longo dos últimos meses, se têm multiplicado pelas “ruas europeias” iniciativas levadas a cabo por movimentos pró-Palestina - uma causa com “muita expressão” naquilo que é o ativismo e atividade de protesto em Portugal. A especialista considerou, portanto, que existe “um risco” de “alguma instabilidade”, mas que não deverá ir além de “algum vandalismo, de umas pichagens”, por exemplo.
No que diz respeito a uma eventual crise de refugiados, Helena Ferro Gouveia disse que lhe parece “muito improvável”. E explicou: “Primeiro porque os israelitas vivem lindamente no seu país e, portanto, não estou a imaginar israelitas virem para Portugal ou para a Europa, além daqueles fluxos normais que já existem, que não são necessariamente de refugiados.”
Já no que diz respeito ao Irão, prosseguiu, “vai depender um pouco de haver ou não uma alteração de regime”. Na eventualidade de uma queda do regime dos aiatolás, “poderá existir um fluxo de pessoas a sair do país até se perceber o que vai acontecer” depois. Notou, ainda assim, que o povo iraniano aparenta estar “preparado para esta queda do regime e para uma eventual substituição por um novo”, o que poderá minorar as probabilidades de tal vir a acontecer.
Para concluir, Helena Ferro Gouveia considerou que “este conflito vai ser necessariamente curto, devido à “soberania aérea” de Israel sobre o Irão e ao facto de esta ser “uma guerra muitíssimo dispendiosa” - o que poderá eventualmente levar Teerão a ceder no que diz respeito ao seu programa nuclear. Não o sendo, acrescentou, os impactos, “quer do ponto de vista económico, quer do ponto de vista social”, poderiam ser ainda mais expressivos.