A ideia nasceu na Universidade do Porto e acabou por assentar bagagens na ilha da Madeira, de onde são naturais dois dos criadores e onde nasceu a MYLeukaemia, agora premiada com dois galardões de inovação da União Europeia.
A leucemia, um tipo de cancro do sangue, matou em 2020 mais de 311 mil pessoas em todo o mundo, com mais de 474 mil novos casos, representando cerca de 2,5% dos casos de cancro e 3,1% das mortes por cancro a nível global, segundo o mais recente estudo global da doença (Disease Burden, Risk Factors, and Trends of Leukaemia: A Global Analysis, Frontiers in Oncology, 2022).
O tratamento para a doença evoluiu nas últimas décadas, com a introdução dos transplantes de medula óssea. O primeiro transplante com sucesso realizou-se em 1956, e o primeiro em Portugal foi realizado em 1987 no IPO. A taxa de sobrevivência a cinco anos para alguns tipos de leucemia duplicou, passando de 34% no período de 1975 a 1977 para 70% entre 2014 e 2020, nos EUA (fonte: Blood Cancer United). Os transplantes de medula óssea ou de células estaminais vieram complementar aquele que continua a ser o vetor primordial de tratamento da doença: a quimioterapia.
É neste contexto que este grupo de investigadores doi3S - Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Portoescolhe um alvo prioritário: a leucemia mieloide aguda (LMA), uma das leucemias agudas mais frequentes em adultos e uma das mais agressivas. A LMA não é uma doença “única”, pois reúne múltiplos subtipos e perfis moleculares, com respostas muito diferentes às terapias disponíveis. Por isso, apesar dos avanços, os resultados continuam a ser duros: a taxa de sobrevivência a cinco anos ronda, em média, 25-30%, diminuindo significativamente com a idade.
Mas os doentes não são números. Para além do diagnóstico, cada pessoa traz um contexto clínico e biológico próprio: idade, comorbilidades, historial terapêutico e características biológicas únicas da doença, que podem determinar por completo como vai responder ao tratamento. Por isso, uma questão permanece, apesar de todos os avanços feitos no combate à doença: como adaptar a terapia a cada doente, como criar um quadro terapêutico feito à medida para cada pessoa, que responda às necessidades biológicas de cada um?
Avatar da medula óssea
A resposta pode vir do modelo inovador que este grupo criou. A ideia foi desenvolvida por Hugo Caires (investigador principal), Hugo Prazeres (technology transfer officer) e Diana Sousa (farmacêutica) no âmbito da investigação que desenvolviam na Universidade do Porto, um projeto exploratório financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT): "A ideia foi perceber que tínhamos de criar modelos mais realistas para perceber o que é que se passa nestes doentes com leucemia mieloide aguda, perceber porque é que após a terapia muitos destes doentes têm recidivas da doença. Cerca de metade dos doentes que entram em remissão numa primeira linha de quimioterapia de indução/consolidação, após um ano, voltam a ter uma recidiva da doença, e precisávamos de perceber porquê", explica Hugo Caires, CEO da MYLeukaemia, à Euronews.
Do projeto universitário, a ideia evoluiu para a criação de uma empresa que pretende dar cartas no campo das terapias para a leucemia: a MyLeukaemia está ainda em fase de formação, mas venceu recentemente dois prémios nos EIT Innovation Awards, os prémios anuais do Instituto Europeu da Inovação e Tecnologia (EIT), uma instituição da UE sediada em Budapeste que apoia as startups europeias. O projeto venceu na categoria "Saúde" e, ainda, na categoria "Prémio Especial Regiões Ultraperiféricas", já que está sediado na ilha da Madeira. Foram também atribuídos prémios a duas outras startups portuguesas, a ProSpec na categoria "Matérias-primas" e a SmartRoads em "Cidades Inteligentes e Mobilidade".
Do Porto para a Madeira, de onde Hugo Caires e Diana Sousa são originários, é aqui que o grupo quer ter a sua base e começar os trabalhos, tendo começado já diálogos com diversas entidades do governo regional e com o serviço de hematologia do SESARAM (Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira), tendo em vista uma futura colaboração.
No entanto, ainda vamos ter de esperar alguns anos até esta tecnologia poder efetivamente beneficiar os doentes, já que terá de passar por uma exaustiva fase de testes: "A medicina e a inovação têm de ser seguras", diz Hugo Caires, por isso há várias fases de testes previstas: "Em primeiro lugar, é preciso fazer um estudo-piloto, geralmente observacional, para estabelecer a capacidade de a nova tecnologia (organ-on-a-chip) prever quais são os doentes que não vão, à partida, responder à terapia-padrão. Aqui estamos a falar entre os 20 e os 30 doentes. É um processo que pode demorar um ano", acrescenta. "Depois, existe todo um processo muito bem regulamentado e delineado, muito bem validado, de validação por parte das entidades nacionais e das agências europeias, os chamados Notifying Bodies, que vão supervisionar o desempenho da tecnologia em uso clínico. Só passada essa validação em estudos multicêntricos, com mais de 100 ou 150 doentes, se pode passar à fase seguinte. Em termos de limite temporal, estamos a falar geralmente de 3 anos de investigação árdua, em colaboração com os clínicos, com muito investimento para conseguir levar o projeto a bom porto e é só então é que, em caso de parecer positivo por parte das entidades competentes, é atribuída a chamada validação CE-IVD (in vitro diagnostics) e a tecnologia pode ser comercializada para diagnósticos in vitro e ficar disponível para servir os hematologistas e, por conseguinte, os doentes com neoplasias hematológicas. A inovação não se faz de um dia para o outro. É preciso regulamentar e validar com responsabilidade para que, quando chega ao doente, seja segura, eficaz e permita que se tome uma decisão clínica baseada numa evidência funcional prévia, facultada por estas novas tecnologias, o que permita aumentar a sobrevivência destes doentes", conclui Hugo Caires.
Em que consiste o avatar?
O “avatar” da MYLeukaemia é um modelo de medula óssea em organ-on-a-chip que permite testar, em laboratório, como células leucémicas respondem a diferentes terapias, uma abordagem de oncologia de precisão funcional pensada para apoiar decisões terapêuticas no futuro.
Nesta fase de desenvolvimento, a equipa trabalhou com linhas primárias e linhas celulares leucémicas humanas (células derivadas de doentes e hoje comercializadas ou disponibilizadas por biobancos), uma prática comum em investigação para otimizar o protótipo e validar o modelo antes de avançar para amostras clínicas.
A partir dessas células humanas, é construído um modelo que replica a medula óssea que todos partilhamos: "Trata-se de um chip do tamanho de uma moeda de um euro, no qual criamos um microambiente muito semelhante ao que se passa na medula óssea humana, que tem uma parte óssea externa e uma componente gelificada no centro com uma rede muito vascularizada. Conseguimos, assim, mimetizar em laboratório o que aconteceria no corpo do doente", explica Hugo Caires. Este tipo de modelo também ajudou a estudar como as células leucémicas interagem com o seu ‘refúgio’ na medula, incluindo mecanismos associados à evasão à quimioterapia e ao risco de recidiva.
A próxima etapa é tornar o avatar progressivamente mais personalizado, integrando células leucémicas do próprio doente ao microambiente criado no chip e testando diferentes regimes terapêuticos já usados na prática clínica, com o objetivo de gerar evidência funcional que possa informar o clínico em tempo útil. “Hoje, muitas decisões seguem protocolos, porque faltam ferramentas funcionais rápidas que ajudem a antecipar qual é a melhor opção terapêutica para cada indivíduo, antes de efetivamente a administrar ao doente”, acrescenta.
A empresa procura estabelecer contactos com departamentos de hematologia e testar, em paralelo, com amostras clínicas do doente, colocando-as em contacto com o dispositivo, para que estas atuem como avatares de medula óssea humana e deem uma resposta fisiológica ao que será esperado quando a terapia for administrada ao doente. Os estudos-piloto deverão, em princípio, ser realizados na Madeira e, depois, envolver hospitais da região norte do país, o próprio i3S e também o Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP).
Pode a ideia revolucionar os tratamentos?
Hugo Caires prefere não prometer uma revolução até ter os resultados do estudo-piloto, mas acredita que a sua ideia vai permitir aos clínicos fazer um uso mais inteligente das terapias que existem hoje à disposição. Será um instrumento útil na batalha contra um adversário muito poderoso: uma doença bastante agressiva e difícil de tratar como é a leucemia mieloide aguda, um dos tipos mais comuns de leucemia que, na verdade, se declina em mais de 11 doenças diferentes devido a mutações diferentes que dão origem a entidades clínicas distintas com elevada heterogeneidade na resposta terapêutica à terapia-padrão. A ideia é "conseguir melhorar os resultados clínicos destes doentes, que são bastante pobres, atribuindo a terapia certa ao doente certo com base num diagnóstico prévio de medicina de precisão funcional nas células leucémicas do próprio doente", nas palavras do investigador.
Ainda que bem-vindos, os 10 mil euros do prémio não são suficientes para financiar a investigação, mas constituem uma boa ajuda para a abertura da empresa, confessa o CEO. Mais do que o valor monetário, foi importante receber o prémio pelo reconhecimento de grande potencial a nível europeu, que dá à MYLeukaemia mais argumentos para conseguir financiamentos por parte das instituições europeias: "Acredito que a MYLeukaemia será preponderante daqui a alguns anos, assim que tiver a sua validação e aprovação, mas é um processo moroso, para o qual trabalhamos todos os dias", acrescenta Caires.
Onde vê a empresa dentro de dez anos? "Vamos agora formar a empresa, incubar na Startup Madeira e, se tudo correr como desejado, passada a barreira dos testes clínicos, esperamos exportar o conceito de Portugal para o resto da União Europeia e tornarmo-nos na empresa de referência no que toca a tratamentos personalizados da leucemia e de outros cancros do sangue a nível europeu", diz.
Quanto ao prémio, Hugo Caires acredita que é uma prova de que, mesmo com menor financiamento, Portugal pode ombrear com os outros países da UE no que toca à inovação tecnológica, sendo que as empresas portuguesas receberam quatro dos nove prémios atribuídos pelo EIT, dois dos quais foram para a MYLeukaemia: "Significa que Portugal é capaz de fazer ciência de alto nível, Deep Tech com um potencial enorme, sendo agora necessário encontrar os instrumentos financeiros para que estas startups portuguesas consigam ultrapassar o chamado 'vale da morte' do financiamento", conclui.