O ex-paraquedista, que não pode ser identificado e é conhecido apenas como "Soldado F", é acusado de ter assassinado dois homens e de ter tentado assassinar outros cinco.
O único soldado britânico acusado de homicídio no massacre do Domingo Sangrento, em 1972, na Irlanda do Norte, foi a julgamento na segunda-feira, em Belfast, num caso que se tornou um símbolo das três décadas de violência conhecidas como " The Troubles".
O ex-paraquedista - conhecido como "Soldado F" por ordem judicial de anonimato - é acusado de ter assassinado James Wray e William McKinney e de ter tentado assassinar outras cinco pessoas em 30 de janeiro de 1972, em Londonderry/Derry.
Membros de um regimento do exército britânico abriram fogo contra manifestantes católicos desarmados pelos direitos civis na cidade, matando 13 pessoas e ferindo outras 15 nesse dia.
Foi o tiroteio mais mortífero do longo conflito entre os apoiantes, maioritariamente católicos, de uma Irlanda unida e as forças predominantemente protestantes que queriam continuar a fazer parte do Reino Unido.
"Os civis (...) não constituíam uma ameaça para os soldados e os soldados também não podiam acreditar que eles constituíssem uma ameaça", afirmou o procurador Louis Mably numa declaração de abertura no Tribunal de Belfast. "Os civis estavam desarmados e foram simplesmente alvejados enquanto fugiam".
O "Soldado F" - que se declarou inocente de todas as acusações - foi escondido atrás de uma cortina azul que o ocultava para proteger a sua identidade.
Embora o conflito tenha terminado, em grande parte, com o acordo de paz de Sexta-Feira Santa de 1998, que criou um sistema de partilha de poder entre os partidos republicano e unionista na Irlanda do Norte, as tensões mantêm-se.
As famílias dos civis mortos continuam a pedir justiça e os apoiantes dos veteranos do exército queixam-se de que as suas perdas foram desvalorizadas e de que foram injustamente visados nas investigações.
Como é que o "Soldado F" acabou por ser julgado por homicídio?
O facto de terem sido necessários mais de 50 anos para que um julgamento fosse iniciado reflete a história tortuosa do tiroteio.
Em 2010, o governo britânico pediu desculpa pelas mortes "injustificadas e injustificáveis", depois de um inquérito judicial ter concluído que os soldados tinham disparado contra civis desarmados em fuga e depois mentido sobre o assunto durante décadas.
Isso abriu caminho para a eventual acusação do "Soldado F", embora tenham passado sete anos desde que a polícia abriu a investigação até que os procuradores anunciaram as acusações em 2019.
Dois anos mais tarde - em 2021 - os procuradores desistiram do caso. A decisão foi tomada depois de um juiz ter arquivado um processo contra dois soldados pelo assassinato de um dirigente do Exército Republicano Irlandês, por ter considerado inadmissíveis provas fundamentais da acusação.
A acusação contra o "Soldado F" foi reavivada em 2022, depois de a família de McKinney ter ganho um recurso no Supremo Tribunal da Irlanda do Norte.
'Perderam o controlo de si próprios'
O procurador Louis Mably disse no tribunal na segunda-feira que, embora não fosse possível identificar quem atirou sobre cada uma das vítimas, a teoria da acusação é que o "Soldado F" e outros do seu batalhão tiveram responsabilidade conjunta quando puxaram os gatilhos das suas espingardas de carregamento automático.
"Estes soldados perderam o controlo de si próprios", disse Mably, acrescentando que "desonraram o exército britânico".
Numa entrevista à polícia em 2016, o "Soldado F" recusou-se a responder a perguntas, dizendo que não tinha uma "recordação fiável" dos acontecimentos desse dia, mas que tinha a certeza de ter cumprido corretamente os seus deveres como militar.
Espera-se que três dos sobreviventes testemunhem no julgamento de semanas que recomeça na quarta-feira.
Os familiares das vítimas, que há mais de meio século lutam pela responsabilização dos assassinatos, dirigiram-se ao tribunal antes do julgamento, na segunda-feira, transportando fotografias dos mortos e caminhando atrás de uma faixa em que se lia "Rumo à Justiça".
"Foram necessários 53 anos para chegar a este ponto e lutámos contra todas as adversidades para chegar aqui", disse John McKinney, cujo irmão William foi morto no Domingo Sangrento.
"Tudo o que conseguimos até aqui foi graças a um empenho implacável e à recusa de desistirmos", vincou na segunda-feira de manhã.
"Em breve ocuparemos um tribunal com muito orgulho, de cabeça erguida e com a certeza de que, independentemente do resultado final, estamos do lado certo da história."