"A amiga genial", de Elena Ferrante é descrito como o melhor livro do século XXI. Embora as razões do sucesso da obra pareçam fáceis de compreender, a identidade da autora continua a ser um mistério...
Elena Ferrante é uma das autoras mais admiradas do mundo, mas, até hoje, ninguém conhece a sua identidade.
Será uma mulher? Ou várias mulheres? Será um homem? É segredo. Nunca ninguém divulgou essa informação. Mas isso não impediu Elena Ferrante de marcar profundamente a história da literatura.
"Numa área em que o narcisismo está esmagadoramente presente, Elena Ferrante decidiu apagar o seu ego", disse à Euronews Enrica Ferrara, professora de literatura italiana no Trinity College de Dublin e romancista.
No início do mês de julho, a revista New York Times Book Review colocou a "A amiga genial" no topo da lista dos 100 melhores livros do século XXI, com base num inquérito a autores, intelectuais e críticos.
Uma distinção apoiada pelos leitores do New York Times que brindaram o romance com o oitavo lugar na lista dos seus livros favoritos.
A "febre Ferrante": um sucesso de vendas e uma série televisiva
O primeiro volume da tetralogia, que se desenrola em Nápoles, vendeu mais de 10 milhões de exemplares em 40 países.
A amizade entre Elena Greco (Lenù) e Raffaella Cerullo (Lila), duas crianças inteligentes e corajosas de um bairro operário dos anos 50, cativou os leitores de todo o mundo e desencadeou a chamada "febre Ferrante".
A obra deu origem a uma série de televisão italo-americana, dividida em quatro temporadas, uma por cada volume.
O que é que torna este romance italiano tão universal?
Como é que uma narrativa tão profundamente enraizada na história, na política e na sociedade italianas conseguiu cativar os leitores de todo o mundo?
O poder da amizade feminina
"A amiga genial" fala de amizade feminina e da relação entre mãe e filha de uma forma que nenhum outro escritor tinha feito antes. É isso que torna a história relevante globalmente", diz Ferrara.
A relação de amizade entre duas raparigas (Lenù e Lila) é a verdadeira protagonista da história e parece ser um dos elementos-chave do sucesso de Ferrante.
Ferrara destaca a "escrita visceral" de Ferrante, que retrata honestamente a natureza complexa das relações. Não há espaço para idealizações. Página após página, a autora revela a mistura de competição, admiração profunda, vergonha e inveja que une Lina e Lenù desde o seu encontro na escola primária.
É fácil identificar-se com as personagens.
"A forma como Ferrante escreve sobre a amizade feminina é única. Nunca li um livro assim na minha vida", disse à Euronews Maya, uma admiradora da obra de Ferrante que vive em Londres.
Dar espaço às vulnerabilidades
O sucesso de Ferrante não se deve apenas às leitoras.
De acordo com Ferrara, muitos leitores que não se identificam como mulheres estão igualmente interessados em descobrir a perspetiva feminina. "Nem todos os homens são machistas", sublinhou Enrica Ferrara.
Além disso, alguns homens podem sentir-se atraídos pela vulnerabilidade das personagens masculinas: "Os homens retratados na obra estão presos numa gaiola patriarcal, tal como as mulheres", disse a professora de literatura italiana.
"No mundo de Ferrante, algumas personagens, como a poderosa Solara, são uma representação do homem branco, heterossexual e rico. Em contrapartida, personagens como Antonio Cappuccio, o primeiro namorado de Lenù, são almas bondosas, indefesas e expostas a essa dinâmica de poder", considerou Ferrara.
"Elena Ferrante descreve um mundo homofóbico dominado pela violência, onde até os homens se sentem desconfortáveis, e é isso que torna o livro atrativo para os leitores masculinos", diz Enrica Ferrara.
As desigualdades económicas
Na opinião de Frederic, dono de uma livraria em Bruxelas, o elemento chave do romance, que lhe dá a sua tonalidade universal, é o facto de ele nos oferecer um retrato social e económico do mundo.
"Os belgas, os franceses, os alemães, todos os que não são ricos nem poderosos identificam-se com as personagens", sublinhou Frederic.
Os temas da desigualdade económica, da injustiça social e da corrupção são mais do que o contexto da história - definem-na do princípio ao fim.
No livro, as duas amigas são boas alunas, mas como a família de uma é mais aberta à possibilidade de a filha estudar do que a família da outra, as duas raparigas acabam por ter vidas muito diferentes.
"A história de Lila e Lenù mostra que o contexto social e as raízes das pessoas prevalecem sobre o seu temperamento natural", disse à euronews Asia, uma professora de piano italiana, admiradora da obra de Ferrante.
Nápoles, um microcosmos global
Um outro elemento interessante do livro é Nápoles, a cidade onde a história se desenrola, no bairro il Rione.
"Nápoles é como um mundo implodido", considera Ferrara. "Está tudo confinado a um bairro, é um microcosmo que adquire relevância global."
Nápoles não só desperta a curiosidade dos leitores italianos. Muitos estrangeiros sentiram que havia algo de familiar na vida daquela cidade.
É o caso de Maya, que cresceu em Londres mas tem origens brasileiras: "Não estava familiarizada com o contexto geográfico e histórico do livro, mas senti-me ligada a esse contexto", disse à euronews a admiradora da obra de Ferrante.
"O facto de haver algumas palavras italianas não traduzidas e alcunhas semelhantes para as pessoas, dá-nos a ideia de uma comunidade, de uma família como qualquer outra", acrescentou Maya.
Para preservar a magia do cenário, Ferrante contou com a preciosa ajuda dos tradutores que tiveram de encontrar a melhor tradução para palavras, expressões e nomes de personagens napolitanas, de modo a manter a essência da história.
Identidades sem fronteiras
"Ela queria dizer algo diferente: queria desaparecer; queria que cada uma das suas células desaparecesse, que nada dela fosse encontrado", escreve Lenù, no romance, descrevendo a necessidade de Lila de desaparecer.
Embora Elena Ferrante possa partilhar o nome com Lenù, também está ligada a Lila na sua paixão pelo desaparecimento.
Elena Ferrante "é um contentor vazio com o qual todos nos podemos identificar", sublinha Ferrara.
O facto de não se saber quem é Elena Ferrante deu origem a possibilidades ilimitadas de identidades, tornando mais fácil para todos identificarem-se com a autora e, por extensão, com as suas personagens.
Cada personagem do livro está envolta numa aura de mistério, onde tudo é difuso e as identidades não têm fronteiras.
"Ferrante quer criar um mundo onde existe uma abertura absoluta ao outro, seja ele feminino, masculino, transgénero e ao mundo tecnológico não humano, e é isso que torna Elena Ferrante tão sedutora para os leitores", considera Ferrara.