Médicos estão a acumular mensalmente rendimentos várias vezes superiores ao respetivo salário-base, à custa do trabalho adicional. Suspeitas de irregularidades estão a ser averiguadas.
Com listas de espera cada vez maiores e equipas reduzidas, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem recorrido há anos à realização de cirurgias fora do horário normal de trabalho dos profissionais para dar resposta à procura, através do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC). Mas recentemente vieram a público situações de abuso, com médicos a acumularem mensalmente rendimentos várias vezes superiores ao respetivo salário-base, à custa destas cirurgias extra.
Foi o caso de um dermatologista do hospital Santa Maria, em Lisboa, que terá recebido 400 mil euros em dez sábados de trabalho adicional o que fez desencadear várias investigações, do próprio hospital, da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS), da Ordem dos Médicos e do Ministério Público.
A auditoria do IGAS, em específico, vai avaliar o recurso à atividade cirúrgica realizada em produção adicional face à atividade normal, assim como a classificação de doentes em grupos de diagnósticos homogéneos que suporta o registo e o pagamento da atividade realizada em produção adicional. A investigação vai ainda analisar os mecanismos de controlo da atividade realizada em produção adicional.
Estão também a ser investigadas suspeitas de irregularidades no âmbito do SIGIC em Braga. Uma das situações em análise envolve um conjunto de cirurgias concentradas num feriado, num fim de semana e em dois dias de folga, que renderam a um médico cerca de 15 mil euros adicionais ao salário.
E não se trata de um caso isolado. No serviço de cirurgia geral do Hospital de Braga, há registo de profissionais que, só em março deste ano, terão faturado 15 mil, 13 mil, 10 mil ou 8 mil euros extra, exclusivamente com operações realizadas fora do horário normal de trabalho.
Estão em causa não apenas os valores pagos, mas também a forma como estes foram obtidos, uma vez que podem estar a ser introduzidos no sistema (a chamada codificação, na linguagem clínica) procedimentos diferentes dos que são realizados.
Além disso, as cirurgias estão a ser agendadas com maior rapidez via SIGIC, o que pode revelar que a produtividade é maior em horário extra relativamente ao horário normal.
Para a Federação Nacional dos Médicos (FNAM), os baixos salários e as condições laborais estão na origem destas situações.
"A forma como o Ministério da Saúde ao longo destes anos tem tentado fixar os médicos é absolutamente errada, porque oferece salários baixos e depois procura uma política de incentivos, que são as horas extraordinárias e estes programas de cirurgias adicionais. Ora, isto é totalmente errado", denuncia Paulo Passos da FNAM em declarações à Euronews.
Já a Ordem dos Médicos fala num problema de gestão e na falta de mecanismos de controlo interno nos hospitais.
"Há aqui uma forma de gestão, do nosso ponto de vista, das listas de espera, dos procedimentos que são feitos, enfim, para combater a lista de espera, neste caso em concreto cirúrgica, mas também a lista de espera em termos de consultas, que foi mal construída ao longo do tempo. Tem que haver regras, tem que haver uma monitorização, um acompanhamento, uma auditoria, e tem que haver também - e isso não existiu ao longo dos anos devo dizer até de forma estranha - envolvimento da Ordem dos Médicos", refere o bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes.
O bastonário também reconhece as desigualdades salariais motivadas pelo SIGIC: "No seio da União Europeia, os médicos portugueses são aqueles que menos ganham. Obviamente que no país existirão, pelos vistos, esses desvios [através do SIGIC], mas o vencimento dos médicos, a parte remuneratória médica em Portugal não corresponde de todo àquela que é a sua diferenciação clínica e a sua responsabilidade no Serviço Nacional de Saúde".
À Euronews, Carlos Cortes revela ainda que, após um pedido de esclarecimento, o Hospital de Santa Maria terá apenas respondido que ainda está a averiguar o que aconteceu para depois transmitir essa informação à Ordem dos Médicos.
Numa reação a esta polémica, a ministra da Saúde referiu que até as averiguações serem feitas, reside sobre esta classe profissional uma suspeita que "em nada abona na confiança dos portugueses". Ana Paula Martins considerou que a investigação generalizada por parte do IGAS configura uma situação "grave" e disse querer aguardar pelas conclusões para depois o Governo tomar as medidas que tiver a tomar.