Na proposta do Ministério da Educação para o novo currículo da disciplina, em consulta pública até 1 de agosto, o domínio da Sexualidade é retirado enquanto eixo de estudo obrigatório. Em contrapartida, a Literacia Financeira e o Empreendedorismo passam a deter um maior destaque nas aprendizagens.
O Governo português quer avançar com algumas alterações no currículo da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, destinada aos alunos do ensino básico e secundário. Os temas relacionados com a sexualidade e a saúde sexual e reprodutiva, que constavam explicitamente no guião de aprendizagens essenciais previstas até agora – e consequentemente sobre identidade de género –, passarão agora a estar de fora do leque das dimensões de abordagem obrigatória, segundo os documentos colocados recentemente em consulta pública.
Em causa uma proposta que surge depois de, em outubro passado, no contexto do 42.º Congresso do PSD, em Braga, o já então primeiro-ministro, Luís Montenegro, ter anunciado que era intenção da AD “libertar” a disciplina “das amarras ideológicas e de projetos de facção”. Algo que, ao que tudo indica, o novo Governo, sob a mesma liderança, terá desejado, desta forma, concretizar.
É que, até agora, a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, implementada ao longo dos últimos anos e que foi apresentada em setembro de 2017, durante o primeiro Executivo de António Costa, previa um leque de conteúdos a ser abordados de forma “transdisciplinar no 1.º ciclo do ensino básico”, enquanto “disciplina autónoma no 2.º e no 3.º ciclos” e, finalmente, enquanto “componente do currículo desenvolvida transversalmente com o contributo de todas as disciplinas e componentes de formação no ensino secundário”.
Este enquadramento geral não deverá sofrer grandes mudanças, mas existem algumas alterações nos temas programáticos. De acordo com a estratégia até agora em vigor, os diferentes domínios a ser lecionados sistematizavam-se em três grandes grupos. No primeiro deles, “obrigatório para todos os níveis e ciclos de escolaridade”, previa-se a abordagem de temas relacionados com os Direitos Humanos, Igualdade de Género, Interculturalidade (diversidade cultural e religiosa), Desenvolvimento Sustentável, Educação Ambiental, e Saúde (promoção da saúde, saúde pública, alimentação, exercício físico).
No entanto, previa-se ainda um outro grupo de conteúdos letivos, a ser estudado “pelo menos em dois ciclos do ensino básico”, onde se inseriam aprendizagens relacionadas com os Media, Instituições e Participação Democrática, Literacia Financeira e Educação para o Consumo, Segurança Rodoviária e Risco, mas também Sexualidade, com enfoque na “diversidade, direitos, saúde sexual e reprodutiva”. Um terceiro grupo de aprendizagens, “com aplicação opcional em qualquer ano de escolaridade”, era também elencado, com temas como: Empreendedorismo; Mundo do Trabalho; Segurança, Defesa e Paz; Bem-Estar Animal; Voluntariado; e Outros.
Mas, segundo a renovada Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, tal como proposta pelo Ministério da Educação, Ciência e Inovação e colocada em consulta pública esta segunda-feira, passam a estar previstas apenas “oito dimensões a implementar ao longo da escolaridade obrigatória”. São elas: Direitos Humanos, Democracia e Instituições Políticas, Desenvolvimento Sustentável, Literacia Financeira e Empreendedorismo, Saúde, Risco e Segurança Rodoviária, Media, e Pluralismo e Diversidade Cultural. Ficando, portanto, a questão da Sexualidade excluída da lista de domínios a abordar, tal como o Bem-Estar Animal (embora anteriormente de natureza opcional), e ganhando a Literacia Financeira e o Empreendedorismo um destaque que não tinham até agora.
Na lista atualizada, indica-se que os primeiros quatro tópicos são de natureza obrigatória “em todos os anos de escolaridade”, enquanto cada um dos restantes deve ser estudado em, pelo menos, um ano de escolaridade em cada um dos seguintes três intervalos definidos pela tutela: 1.º Ciclo do Ensino Básico; 2.º e 3.º Ciclos do Ensino Básico; e Ensino Secundário.
Identidade de género de fora: ministro fala em “matéria de grande complexidade”
Questionado pelos jornalistas, na tarde de segunda-feira, sobre a aparente ausência dos temas sobre sexualidade nas aprendizagens essenciais previstas no âmbito da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, o ministro da Educação, Ciência e Inovação, Fernando Alexandre, deixou a garantia de que “todos os domínios que são considerados [atualmente] na disciplina” – já que só “no próximo ano letivo é que vamos ter a disciplina a funcionar em moldes diferentes” –, terão “um reflexo naquela que é a [nova] organização” da mesma.
Esclarecimentos que surgiram cerca de duas semanas depois de, em conferência de imprensa, o ministro e o secretário de Estado Adjunto e da Educação, Alexandre Homem Cristo, terem dado a conhecer as linhas orientadoras das alterações a materializar na discilpina de Cidadania e Desenvolvimento. Nesse momento, a tutela detalhou que as questões sobre sexualidade passariam a ser abordadas no domínio da Saúde.
No entanto, Fernando Alexandre confirmou, esta segunda-feira, que a identidade de género será um assunto que ficará de fora das novas “aprendizagens essenciais”. E explicou os motivos, aqui citado pela agência Lusa: “É uma matéria de grande complexidade e, muitas vezes, as pessoas não estão sequer preparadas para lecionar isso, sobretudo quando estamos a falar de alunos muito jovens.”
Porém, o ministro apontou que está prevista, ainda assim, a análise de “casos históricos e atuais de violação dos direitos humanos (incluindo, entre outros, (…) a violência contra pessoas com orientação sexual e identidade e expressão de género não normativas)", no âmbito do domínio sobre Direitos Humanos, mais concretamente no 3.º ciclo.
Mencionou ainda que outra questão é a que concerne à igualdade de género e à “cultura de respeito” que lhe é inerente, algo que Fernando Alexandre considerou ser “muito importante”.
Aprendizagens sobre Saúde: o que está previsto?
Mas apesar dos esclarecimentos do ministro, no documento que elenca as aprendizagens essenciais previstas já para o próximo ano letivo, conclui-se que não é feita qualquer referência explícita à abordagem de temas relacionados com a sexualidade e a saúde sexual e reprodutiva no âmbito do domínio programático da Saúde.
No contexto desta dimensão, na recém-delineada Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, indica-se apenas que se pretende que “as crianças e os jovens adquiram os conhecimentos, capacidades, valores e atitudes que incentivem a assunção do bem-estar físico e mental”. A “importância da alimentação saudável”, da “atividade física” e da “promoção da saúde mental” serão, assim, assuntos dignos de destaque no currículo. A “proteção contra todas as formas de violência (incluindo a exploração, o abuso e a ciberviolência) e para a prevenção de consumos, comportamentos aditivos e dependências” está também entre as prioridades mencionadas.
No que concerne ao currículo para os 2.º e 3.º ciclos do Ensino Básico, indica-se, ainda assim, que alguns dos pontos a abordar se prendem com o respeito por “questões relacionadas com a intimidade e a privacidade de cada pessoa”, bem como pelo estabelecimento de “relações interpessoais saudáveis, baseadas no respeito, na comunicação, na confiança e no consentimento”.
“Interagir com base no respeito e na confiança, sem discriminação” é também, por sua vez, uma das atitudes que se pretende fomentar nos estudantes do ensino secundário, de acordo com os objetivos elencados.
Bastonária diz que é um “retrocesso pedagógico e social”
Em declarações à Euronews, a bastonária da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), Sofia Ramalho, informou que esta entidade “vai apresentar um parecer relativamente à consulta pública” associada à proposta do Governo, por considerar que “a retirada e o esvaziamento do currículo de Educação para a Cidadania relativamente a estes temas da saúde sexual e reprodutiva” representa um “retrocesso pedagógico e social e contraria, inclusive, a evidência científica”.
“Nós temos de olhar aquilo que é o desenvolvimento da criança e do jovem como um todo, portanto, não é só a componente curricular que importa”, notou Sofia Ramalho, acrescentando que “a retirada objetiva destes termos e terminologias” do currículo da disciplina, “e também de possíveis conteúdos relativamente a esta matéria, é altamente prejudicial ao desenvolvimento das nossas crianças e jovens”.
Ao não definir especificamente o módulo da sexualidade no leque das aprendizagens essenciais, salientou a bastonária, tal materializa-se na “possibilidade de a escola tomar uma decisão autónoma sobre se esses são temas a abordar ou não, sendo que deixa de haver uma intencionalidade educativa, pedagógica e social de trabalhar este tema no âmbito da Educação para a Cidadania e em articulação, também, com as outras disciplinas”. O que poderá originar uma maior “falta de literacia” sobre esses temas, “que faz com que as decisões e os comportamentos dos jovens não sejam tão informados”.
E, assim, “podemos inclusivamente estar a contribuir para o aumento de riscos que já fomos identificando nos últimos anos”, no que diz respeito “à saúde sexual dos jovens”, nomeadamente “na dimensão da prevenção do abuso sexual, da violência no namoro, da discriminação face a questões relacionadas com identidade de género”, mas também de situações de “gravidez na adolescência”.
Desta forma, “estamos, com isto, a impedir o acesso a um direito fundamental e a retirar instrumentos de proteção aos jovens e às suas famílias face a um conjunto muito grande de situações”.