Daniel Ortega: "Se houver rutura na Nicarágua, o narcotráfico assumirá o controlo

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A Euronews entrevistou o presidente da Nicarágua sobre os recentes tumultos no país que provocaram centenas de mortos e feridos.

A Nicarágua vive uma crise social e política profunda. Desde o dia 18 de abril, há centenas de mortos e milhares de feridos. Os protestos contra o presidente Ortega não param. Após mais de cem dias de protestos contínuos, o país parece dirigir-se para um confronto inevitável. Que futuro para a Nicarágua? Qual será o papel de Daniel Ortega? A Euronews entrevistou Daniel Ortega, presidente da Nicarágua e figura histórica da vida política do país.

euronews: "Tem sido tudo para o povo da Nicarágua: um libertador, líder das massas e uma figura histórica. Agora, esse mesmo povo sai à rua para pedir-lhe que se vá embora. Porquê?"

Daniel Ortega: "Em primeiro lugar, não é o povo todo. É só uma parte da população. Tivemos sempre uma oposição que durante todo o tempo se manifestou claramente, inclusive nas eleições. Houve eleições, anteriormente, em que participámos e não alcançámos a maioria. Quem obteve a maioria foram as forças da oposição unidas sob a batuta da política norte-americana".

euronews: "Uma sondagem recente indica que 79% da população quer que se vá embora. Há razões para duvidar que o povo da Nicarágua queira que continue no poder.

Daniel Ortega: "Mas eu sinto, por outro lado, que há uma boa parte da população... mas não posso dar a percentagem. Não conheço nenhuma sondagem séria".

euronews: Não crê que há um tumulto nas ruas que o poderia levar a voltar a consultar o povo, a convocar eleições?

Daniel Ortega: "Tivemos eleições há pouco tempo. O que houve agora foi uma tentativa de golpe de Estado. Foi o que vivemos e foi o que o povo sofreu. Quero clarificar para os espetadores da euronews porque li títulos na euronews sobre a Nicarágua como 'cem dias, noventas dias, 300 mortos'. Não".

"São centros de Direitos Humanos financiados pelos Estados Unidos"

euronews: "É o número do Centro Nicaraguense de Direitos Humanos, 300 mortos, outras organizações falam em 450".

Daniel Ortega: "Esses números não estão certos. O número real em relação aos confrontos que começaram a 18 de abril, dos confrontos violentos entre a oposição e o governo, a polícia e a população sandinista é 195 mortos. É claro que, se a este número acrescentarmos a média de mortos diários na Nicarágua antes de 18 de abril, que é um dos índices mais baixos da região, dois mortos por dia, então teríamos mais 180 mortos. Esses organismos de direitos humanos contam tudo junto".

euronews: Pensa que eles manipulam os números?

Daniel Ortega: "Somam tudo! Como explica que nesse período não há falecidos por delitos comuns?"

euronews: "Não é o que dizem. As organizações que mencionem esse número de mortos não dizem que não há delitos comuns. Dizem que o número de mortos nos protestos se situa entre 300 e 400, o que é um número bastante elevado".

Daniel Ortega: "Somam tudo. Contam todos os mortos desse período como mortos nos protestos".

euronews: "Não entendo uma coisa. Deixou que o Centro Nicaraguense de Direitos Humanos contasse os mortos. Por que razão, de repente, eles começariam a manipular os dados?"

Daniel Ortega: "São centros de Direitos Humanos financiados pelos Estados Unidos, precisamente para manipular os números".

euronews: "A minha pergunta é: será que tem alguma responsabilidade como presidente em relação ao que se passa? Independentemente dos números, há diferenças entre os seus números e os dos centros internacionais, considera que tem responsabilidade como presidente por não ter conseguido manter a segurança dos seus cidadãos?"

Daniel Ortega: "A verdade é que enfrentamos um inimigo poderoso, que interveio militarmente na Nicarágua, em várias ocasiões, os Estados Unidos, e que continua a intervir".

"Usam o dinheiro para destabilizar o país e encorajar ações armadas"

euronews: Há um aspeto curioso. Mencionou algumas vezes que os protestos são financiados pelos Estados Unidos, mas, não vi qualquer prova desse facto. Tem provas?"

Daniel Ortega: "Claro que sim".

euronews: "Por que razão ainda não as mostrou?"

Daniel Ortega: "Há contas que mostram que organismos dos Estados Unidos enviaram dinheiro a essas pessoas, através dessas agências, até o disseram publicamente. Anunciaram o número de milhões que deram à Nicarágua, à "democracia" como eles dizem. Mas usam o dinheiro para destabilizar o país e encorajar ações armadas por grupos criminosos que cometem crimes desde 2007 desde que tomámos o poder".

euronews: "Então pensa que os protestos são financiados pelos Estados Unidos e não têm nada a ver com o povo nicaraguense?"

Daniel Ortega: Esses protestos têm a ver com a parte da população que está afiliada às forças da oposição, ao partido da oposição, que estão inclusive no parlamento e que tiveram um papel ativo nas barricadas".

euronews: "Quando elabora a ideia de que os protestos provêm de uma organização terrorista, devo dizer que é difícil encontrar um líder. Não há provas do financiamento. É uma versão difícil de sustentar".

Daniel Ortega: "Se nós prendêssemos os líderes, já estou a imaginar a reação que isso suscitaria, tendo em conta as reações ao que fizemos até agora, quando prendemos os que materialmente participaram em ações terroristas. Os organismos de direitos humanos vieram falar em nome deles, vieram defendê-los, quiseram castigar a Nicarágua e tivemos o congresso dos Estados Unidos a votar resoluções contra a Nicarágua".

euronews: "Gostaria de fazer uma pergunta sobre os paramilitares porque o papel deles não é muito claro. Muitas testemunhas dizem que eles colaboraram com as suas forças de segurança. E alguns cometeram crimes. A Amnistia Internacional fala de execuções extrajudiciais.

Daniel Ortega: "A Amnistia International não apresentou qualquer prova. O que é um facto público é a forma como os paramilitares de extrema-direita mataram pessoas durante as barricadas, filmaram e torturam jovens e cidadãos por serem sandinistas. Torturaram-nos, atearam o fogo e dançaram à volta deles, isso é terrorismo. A Amnistia Internacional não disse uma palavra sobre isso, nem a comissão interamericana dos direitos humanos, quando queimaram um polícia. Pode procurar o vídeo para ver como eles torturam".

euronews: "Há vários exemplos da colaboração entre os paramilitares e as forças de segurança. A BBC esteve numa localidade da Nicarágua e disse que os paramilitares colaboravam com a polícia sem qualquer vergonha".

Daniel Ortega: "Não. Aqui trata-se da chamada polícia voluntária".

euronews: "Não. Porque eram pessoas encapuçadas. Imagino que a polícia voluntária não estava encapuçada".

Daniel Ortega: "A polícia voluntária em operações especiais está encapuçada. em tempos normais. Há países na América Latina onde até os juízes estão disfarçados para não serem mortos".

euronews: "Então, essas pessoas que se definem eles próprios como parapolícias eram voluntários da polícia."

Daniel Ortega: "Sim, são polícias voluntários."

"Assumimos o compromisso de fazer justiça"

euronews: "Se voltar a sentar-se à mesa para debater, quais serão as suas linhas vermelhas? Deixar o poder é algo que não poderia aceitar em circunstância alguma? Convocar eleições é algo que não poderia aceitar em quaisquer circunstâncias? Quais são as suas linhas vermelhas no diálogo com a oposição?"

Daniel Ortega: "Primeiro, trata-se de consolidar a paz e assumimos o compromisso de fazer justiça".

euronews: "Se a paz for consolidada está disposto a convocar eleições?"

Daniel Ortega: "Aqui temos normas constitucionais que estabelecem períodos eleitorais. O nosso termina em 2021, quando se realizam de novo eleições na Nicarágua. Em todos os processos de paz em que estive envolvido na América Central nunca se considerou que era preciso antecipar eleições".

euronews: "Considera ou não, durante o diálogo, demitir-se ou antecipar eleições? Porque convocar eleições antecipadas também é constitucional."

Daniel Ortega: "Na América Central, isso nunca aconteceu. Na Colômbia, cada vez que há um processo de paz, as eleições não são antecipadas, com todo o sangue vertido na América Central".

euronews: "Ou seja é algo que nem sequer considera?"

Daniel Ortega: "Não. A oposição considera-o, inclusive, disse-me que eu tinha de ir embora imediatamente, é o que dizem desde 19 de abril. Mas, eu não considero essa possibilidade. Penso que seria um precedente sério para o país. Se amanhã há um novo governo, isso significaria que a Frente Nacional de Libertação Sandinista teria o direito de parar o país e pedir ao governo para sair no dia seguinte. Seria um precedente perigoso. Isso significa que bastaria então ser uma oposição violenta, paralisar o país para chegar ao governo. Isso levaria o país para a anarquia e o caos".

"Seguir esse caminho é abrir portas à anarquia na Nicarágua"

euronews: "Então a escolha é entre você e a anarquia ?"

Daniel Ortega: "Sim, ou seja, seguir esse caminho é abrir portas à anarquia na Nicarágua. Isso não é conveniente para o país. O que é conveniente é consolidar a paz e a estabilidade, o que traz a segurança. Isso é importante para a região. A Nicarágua funciona como uma barragem para o crime organizado e o tráfico de droga. Se houver uma rutura na Nicarágua, o narcotráfico assumirá o controlo em toda a região".

euronews: "Em 2017, ganhou as eleições pela terceira vez. A sua mulher e alguns dos seus filhos assumiram cargos importantes. Por que razão o seu governo e a sua família estão tão entrelaçados?"

Daniel Ortega: "A única que ocupou uma posição importante é a minha companheira, como militante sandinista. Conhecia-a como militante sandinista, não a conheci na vida privada, e como militante sandinista tem direito a um cargo. É a primeira vez que ocupa. Os meus filhos dedicam-se à televisão, ao jornalismo".

euronews: "E ao petróleo".

Ortega: "Não, nenhum deles. Isso é o que dizem os nossos adversários. Em primeiro lugar, não somos um país produtor de petróleo, aqui quem gere a indústria petrolífera são as grandes empresas transnacionais. O que houve foi uma cooperação com a Venezuela no domínio do petróleo que não tem nada a ver com uma operação mercantil."

euronews: "Tem a ver com o petróleo".

Daniel Ortega: "Mas não foi algo gerido pelos meus filhos"

euronews: "Há um sentimento de que não há diferenças entre a sua família e o seu governo".

Daniel Ortega: "Há a experiência da dinastia aqui na Nicarágua. O Somoza enviou o filho para escola militar West Point e fê-lo chefe da guarda, chefe do exército. O outro filho foi mandado para os Estados Unidos para estudar e depois foi nomeado deputado na assembleia nacional".

euronews: "Senhor presidente, entendo que Somoza criou uma dinastia, mas, estamos a falar da Nicarágua em 2018 e estou a questioná-lo sobre o mal-estar da população. Não pode negá-lo".

Daniel Ortega: "Não há país algum, no mundo, em que uma parte da população não sinta mal-estar".

euronews: "Sim, mas, não é em todo o mundo que há mal-estar porque há muitos membros da família dentro do governo, lidando com questões importantes. Não há muitos governos assim".

Daniel Ortega: "Isso é mentira".

euronews: "Então, não acha que é um problema o facto de haver tantas ligações entre diferentes departamentos do estado e a sua família, o seu governo, ainda que não sejam altos cargos?"

Daniel Ortega: "Simplesmente, eles estão na televisão. Qual é o delito? Não têm o direito de trabalhar na televisão? Não têm o direito de trabalhar como jornalista? Porque fazem um jornalismo que se identifica com os esforços que nós fazemos pela paz, pelo progresso e pelo bem-estar? Isso é mau?"

"Concorremos às eleições em 1990, não ganhámos e saímos do poder".

euronews: "Outra dos motivos de mal-estar de que fala a oposição diz respeito ao facto de estar a esforçar-se, desde 2011, para se perpetuar no poder. Por exemplo, há a interpretação do tribunal constitucional que decidiu que poderia candidatar-se de novo. Também não entende esse mal-estar?"

Daniel Ortega: "Primeiro, aqui na Nicarágua o nosso ponto de partida é a constituição que nasceu com a revolução de 1984. Chegámos a 1979 e disseram que nunca chegaríamos ao governo, concorremos às eleições em 1984 e ganhámos. Concorremos às eleições em 1990, não ganhámos e saímos do poder. Foi a primeira transição política pacífica da história da Nicarágua, porque a história da Nicarágua é uma história de guerra, em que havia duas forças que se opunham, uma que governava de Leon, outra de Granada.

euronews: Porquê voltar a concorrer se, na constituição, estava claro, pelo menos do ponto de vista da assembleia, que não podia candidatar-se?

Daniel Ortega: "A constituição de 1984 deixava em aberto a possibilidade da reeleição".

euronews: "Mas em 2011?"

Daniel Ortega: "Em 2011, utilizei simplesmente o recurso usado pelo Presidente Oscar Arias para se reeleger na Costa Rica. O Presidente Oscar Arias é um dos presidentes mais democráticos da América Latina.

euronews: Se ele estivesse aqui colocar-lhe-ia a mesma pergunta.

Daniel Ortega: O Presidente Oscar Arias usou este recurso para poder reeleger-se na Costa Rica e foi reeleito. O President Álvaro Uribe na Colombia também usou esse recurso para reeleger-se.

euronews: "Tanto na Costa Rica e sobretudo na Colômbia isso suscitou a mesma pergunta que lhes estou a fazer".

Daniel Ortega: "Se isso está bem para um país, também estará bem para o outro. São principios em aberto".

euronews: "Mas a minha pergunta é: tentar ser reeleito quando a constituição especifica que esse não é o espírito da lei é bom ou mau como princípio, independentemente de quem o faça?

Daniel Ortega: "É uma via constitucional. A constituição atual foi reformada e deixa a porta aberta, não impede a reeleição porque foi reformada".

euronews: "Para que pudesse candidatar-se".

Daniel Ortega: "Ou outra pessoa".

euronews: "Desde 2011, várias instituições respeitadas que estudam as democracias no mundo afirmam que a democracia na Nicarágua se deteriorou devido às suas alegadas ações para permanecer no poder. Considera que a Nicarágua é uma democracia?"

Daniel Ortega: "É uma democracia porque no fim de contas é o povo com o seu voto que decide. Não se pode impedir o povo de decidir. Na Europa, existem sistemas sistemas que preveem a possibilidade de uma pessoa ser reeleita indefinidamente. O que é bom para os europeus é mau para os latino-americanos? Não pode ser. São princípios universais. É o povo que tem de decidir com o seu voto se quer ou não reeleger uma pessoa. Eu tentei ser reeleito em 1990 e o povo não votou em mim".

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