Rússia e o reforço militar perto da Ucrânia

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Especialistas alertam que desta vez situação é diferente

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A tensão na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia tem vindo a crescer gradualmente, com Kiev e Washington a alertarem para o que consideram ser um aumento invulgar de tropas russas no terreno.

No início do mês, o ministério da Defesa da Ucrânia disse que cerca de 90 mil soldados russos estavam estacionados perto da fronteira do país e em áreas controladas pelos rebeldes no leste da Ucrânia.

Unidades do 41.º Exército russo mantiveram-se em Yelnya, uma cidade localizada 260 quilómetros a norte da fronteira ucraniana, de acordo com o ministério.

“O que vemos é um aumento [da presença] militar russa grande e significativo. Vemos uma concentração invulgar de tropas. Sabemos que a Rússia esteve anteriormente disposta a usar este tipo de capacidade militar para conduzir ações agressivas contra a Ucrânia,” sublinhou o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, na semana passada.

Os comentários surgiram no rescaldo de relatos de que os EUA alertaram a União Europeia (UE) para a possibilidade de Moscovo estar a preparar uma invasão ao ex-vizinho soviético.

As autoridades russas negaram programar incursões na Ucrânia, citando o que qualificaram de muitas ameaças da Ucrânia e de ações supostamente provocatórias de navios de guerra dos EUA no Mar Negro.

A Rússia apoiou a insurgência separatista no leste da Ucrânia que eclodiu logo após a anexação da Península da Crimeia por Moscovo, em 2014. O conflito fez mais de 14 mil mortos.

Na primavera deste ano, o aumento do número de tropas russas perto da fronteira despertou preocupações na Ucrânia e no Ocidente, alimentando receios de uma escalada das hostilidades.

Mas os efetivos acabariam eventualmente por se retirar depois de algumas semanas e na sequência de uma cimeira entre o presidente dos EUA, Joe Biden, e o homólogo russo, Vladimir Putin.

Poderá o último reforço militar ser de natureza diferente, como um prelúdio para uma invasão russa?

A Euronews falou com especialistas militares e de política externa para esclarecer os movimentos das tropas russas, as respetivas implicações para a Ucrânia e aliados ocidentais.

O que sabemos sobre o reforço da presença das tropas da Rússia?

"Só conhecemos algumas movimentações importantes através de imagens de satélite, o que, obviamente, não é a maneira mais precisa de saber as coisas", referiu Gustav Gressel, investigador de política do Conselho Europeu para as Relações Externas (ECFR).

"Muitas vezes são apenas imagens de radar. Sabemos que há um tipo de formação militar no terreno porque os veículos que operam estão cheios de ferro, não são o camião típico. Não se sabe se é realmente um canhão automotor ou um tanque, um tanque de guerra principal ou outro veículo blindado de combate", lembrou o especialista.

"Quando se trata da situação na Ucrânia, as forças militares russas à volta do país são bastante consideráveis, mesmo sem a Rússia avançar com qualquer reforço especial", acrescentou Gressel.

"No entanto, dito isso, ainda assistimos a muito movimento e implantação de pelo menos alguns ativos do 41.º Exército de Armas Combinadas (CAA) que foi deslocado para o Distrito Militar Ocidental na primavera deste ano, que circunda Yelnya, na região [russa] de Smolensk."

"Sabemos que no campo de treino de Pogonovo há muitos exercícios e vimos lá alguns elementos de diferentes formações do Primeiro Exército Blindado de Guardas", continuou o especialista em assuntos russos.

"Vemos que alguns elementos das unidades do 58.º Exército, que está estacionado no norte do Cáucaso, foram transferidos para a Crimeia e vemos um fluxo de equipamentos e de pessoas para a Crimeia."

“Também vemos muito tráfego de aviação militar em Rostóvia do Dom - não são aviões de ataque, mas aeronaves de transporte a entrar e a sair."

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Gustav Gressel descreveu Rostóvia do Dom como "o hub central."

"As coisas de lá basicamente acabam infiltradas na região do Donbass", disse o especialista.

Num artigo recente, Gressel referiu que a mobilização das unidades da Guarda Nacional é um sinal de que o Kremlin está a considerar, pelo menos, incursões na Ucrânia.

"Além da inteligência operacional que basicamente mostra o movimento das tropas, existe o que se chama de inteligência estratégica", referiu Andriy Zagorodnyuk, presidente do think tank Centro para Estratégias de Defesa e ex-ministro da Defesa da Ucrânia (2019-2020).

Zagorodnyuk assinalou a inteligência estratégica recentemente partilhada pelos EUA de que a Rússia estaria, supostamente, a preparar-se para uma operação de invasão.

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Os avisos de Washington, acrescentou, ocorreram na mesma altura de uma rara visita do diretor da CIA, William J. Burns, a Moscovo, no início do mês.

"Isso significa que eles receberam informações sobre as decisões tomadas a nível estratégico em Moscovo, basicamente o ministro da Defesa de Moscovo ou a Presidência, e que as informações foram passadas pelos EUA a todos os principais aliados - fundamentalmente países da NATO," disse o ex-ministro à Euronews.

Katharine Quinn-Judge, uma analista especializada em assuntos da Ucrânia no International Crisis Group, disse também à Euronews que ouviu "comentários de autoridades de todos os lados sobre a extensão do aumento."

"Na primavera, autoridades ucranianas e da UE divulgaram alguns números um pouco enganosos sobre o volume de tropas russas perto da fronteira com a Ucrânia. Números que incluíam tropas perto da linha de frente em Donbass. Esta última encontra-se na fronteira de fato da Ucrânia e dentro de sua fronteira internacional reconhecida. Mas eles estão sempre lá, por isso é enganoso incluí-los no número de tropas que a Rússia supostamente acumulou nas últimas semanas," acrescentou.

"Saber disso deixa-me mais cética em relação aos comentários que ouço de autoridades ucranianas e europeias hoje - não que eu ache as declarações russas confiáveis", ressalvou Quinn-Judge.

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O movimento mais recente de tropas é diferente do da primavera passada?

Os especialistas entrevistados pela Euronews disseram que o último reforço militar foi diferente em muitos aspetos do que aconteceu na primavera passada.

Uma diferença, ressalvou Andriy Zagorodnyuk à Euronews, é que a Rússia ligou os desenvolvimentos da última primavera a exercícios militares, "o que honestamente não foi o caso porque os exercícios começaram muito mais tarde, mas pelo menos deram algum tipo de explicação."

Além disso, acrescentou, "não tínhamos esse tipo de inteligência estratégica sobre os preparativos russos de uma invasão planejada. Agora temos. Essa é a diferença e é por isso que todos estão preocupados", observou o ex-ministro.

"Em comparação com a situação em março e abril de 2021, quando moveu tropas pela última vez perto da fronteira com a Ucrânia, a Rússia parece estar a fazer muito menos esforço para garantir que o corpo atual seja visível. Isso pode sugerir uma intenção significativamente mais séria do que simplesmente um desejo de parecer ameaçador," sublinhou Gustav Gressel, investigador de política do Conselho Europeu para as Relações Externas (ECFR), num artigo.

Outra diferença, disse, é que "desta vez, os movimentos do 41.º Exército preocupam mais a NATO do que a Ucrânia."

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"Se analisarmos, Smolensk não é a área mais próxima para colocar esse exército na Ucrânia. E, na verdade, na primavera, quando o sinal era apenas sobre a Ucrânia, o 41.º Exército foi deslocado mais a leste e mais ao sul."

O especialista observou que a unidade militar está atualmente mais perto da fronteira da Bielorrússia do que da Ucrânia e relaciona isso com a crise migratória na região que colocou a Polónia e a Lituânia em rota de colisão com Minsk.

De acordo com o especialista, a presença ali tem um propósito de treino, nomeadamente, praticar um "ataque à Polónia."

"Se a Rússia realmente iniciasse uma guerra com a NATO no oeste, a tarefa do 41.º Exército de Armas Combinadas (CAA) seria liderar o avanço da Bielorrússia em direção à brecha de Suwalki. Esta é a área de fronteira polaco-liutana que separa a Bielorrússia do enclave russo de Kalininegrado. O CAA provavelmente avançaria em conjunto com o 11.º Corpo de Exército em Kalininegrado. O seu objetivo seria esmagar as defesas polacas e lituanas," explicou o especialista no seu artigo.

O que é que a Rússia está a tentar conseguir?

Gustav Gressel disse à Euronews que os movimentos das tropas russas coincidiram com "uma certa retórica" ​​de Moscovo, incluindo "acusações contra a saída da Ucrânia do Tratado de Minsk" e "exigências muito específicas sobre que legislação é que a Ucrânia precisaria de mudar, que leis deveria adotar, que leis não deveria adotar, como deveria reconhecer as repúblicas fantoches na região do Donbass, etc."

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"Tudo isso dá uma imagem de que a Rússia realmente quer algo e está a sustentar essas exigências com poder militar", acrescentou.

Moscovo, disse Gressel, quer que o acordo de Minsk seja implementado nos seus próprios termos.

O acordo de 2015, que foi mediado por França e pela Alemanha para ajudar a resolver o conflito no leste da Ucrânia, estipulou que a Ucrânia recuperaria o controlo total de sua fronteira com a Rússia nos territórios controlados pelos rebeldes somente após a eleição de líderes e legislaturas locais.

Kiev apresentou recentemente planos para adotar uma lei sobre a administração transitória, prometendo fazer a transição para novas autoridades após as eleições, de acordo com a lei ucraniana.

"Moscovo não gosta do conteúdo do projeto de lei porque não permite efetivamente reter as repúblicas que estabeleceu no leste da Ucrânia", escreveu Gressel.

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Na quinta-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov, divulgou correspondência com os homólogos franceses e alemães sobre as negociações conhecidas como "formato da Normandia". O grupo foi organizado por França, Alemanha, Rússia e Ucrânia para resolver o conflito.

De acordo com a porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Maria Zakharova, a divulgação teve como objetivo desmascarar as alegações ocidentais de que Moscovo se recusou a cooperar com uma reunião no formato da Normandia.

"A divulgação de tais elementos é uma violação grave de confiança e protocolo. Isso indica que o Kremlin desistiu da Normandia / Minsk e não negociará mais. Por outro lado, comunica novamente as exigências da Rússia - Moscovo tem exigido muito vigorosamente nos últimos tempos ", disse Gressel à Euronews.

Andriy Zagorodnyuk sublinhou que houve "uma aceleração da propaganda contra a Ucrânia" na televisão russa, com os russos "a retratarem-se como alvos da agressão ucraniana, o que obviamente não é o caso".

"Eles estão basicamente a preparar as pessoas para o fato de que a Rússia precisa se defender," disse Zagorodnyuk.

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Na quinta-feira, Vladimir Putin acusou o Ocidente de "intensificar o conflito na Ucrânia."

"Os (nossos) parceiros ocidentais estão a agravar a situação, fornecendo a Kiev armas letais modernas e conduzindo manobras militares provocatórias no Mar Negro", disse Putin num discurso ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Afirmou que os bombardeiros ocidentais estão a voar a "20 quilómetros de distância da nossa fronteira."

Questionado se a Rússia planeava invadir a Ucrânia, o vice-embaixador da Rússia na ONU, Dmitry Polyansky, respondeu na semana passada que "nunca planeou, nunca fez e nunca fará a menos que sejamos provocados pela Ucrânia ou por outra pessoa." 

Putin também rejeitou a ideia de uma Ucrânia independente nos últimos meses. Um longo ensaio publicado pelo Kremlin em julho afirma que ucranianos e russos são "um só povo" e que “a verdadeira soberania da Ucrânia só é possível em parceria com a Rússia.”

Até que ponto é que a escalada de tensão pode avançar?

"O fato de se estarem a preparar [para uma invasão] não significa que a vão começar", disse Andriy Zagorodnyuk.

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"Tomar uma decisão de preparação é uma atividade militar estratégica. Mas iniciar uma operação dessa escala é uma decisão política. E tem de ser uma decisão muito, muito bem calculada, porque os riscos para a Rússia são enormes", acrescentou o ex-ministro ucraniano à Euronews.

Com Moscovo bem ciente dos riscos, o objetivo pode ser aumentar as apostas nas negociações, lembrou, "mostrando que eles têm poder suficiente para desestabilizar a situação."

Zagorodnyuk referiu que a cimeira de Genebra com o presidente Joe Biden, "que basicamente foi retratada como uma reunião de duas superpotências", foi um exemplo de como os russos usaram o reforço militar anterior "para obter o seu lugar à mesa e a um nível que pensam ser adequado para eles."

De acordo com Gustav Gressel, uma escalada completa não é o resultado mais provável dos movimentos recentes das tropas.

"Uma escalada limitada, para desestabilizar a Ucrânia em vez de conquistá-la, parece muito provável. Seria um sinal para Kiev lembrando: 'não podem esconder-se atrás de vosso Exército, não podem esconder-se atrás de França e da Alemanha. Ou fazem como dizemos ou terão guerra," explicou Gressl à Euronews.

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Quais são as opções para a Ucrânia e seus aliados da NATO responderem?

"O que o Ocidente pode fazer e já está a fazer é enviar sinais políticos à Rússia, dizendo que não tolerarão isso, que estão a monitorizar a situação de muito perto e que estão prontos para ajudar a defender a Ucrânia", disse Zagorodnyuk.

"Precisamos de uma reação forte do Ocidente" para evitar uma escalada, ressalvou, por outro lado, Gressel à Euronews.

Parte dessa resposta poderia ser na frente militar, acrescentou Gressel, "basicamente alertando os russos: 'vocês podem aumentar a tensão, mas poderá haver ramificações. E se atacarem o leste da Ucrânia mais profundamente, poderemos enviar paraquedistas. Nós podemos colocá-los em sentido."

Os EUA já enviaram navios para o Mar Negro como parte das atividades da NATO do lado da Ucrânia. Nas últimas semanas, Washington entregou equipamento militar como parte de um pacote de 60 milhões de dólares (€53 milhões de euros) anunciado em setembro.

Tanto Zagorodnyuk quanto Gressel também se referiram a relatos dos meios de comunicação não confirmados, afirmando que o Reino Unido estava supostamente pronto para enviar forças especiais para a Ucrânia.

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"Na última ronda da escalada de tensão, os americanos enviaram uma aeronave para a Polónia para mostrar que a NATO não é totalmente incapaz e que, na verdade, tem meios muito próximos", disse o especialista à Euronews.

"Também foi um sinal muito poderoso, porque os russos leram isso imediatamente e reagiram", acrescentou.

Uma cimeira com Putin, semelhante à reunião de Genebra com Biden no início deste ano, pode ser outra opção para dar ao líder russo "uma saída para salvar a face", segundo Gressel.

"Uma limitação dos governos ocidentais, incluindo o dos EUA, infelizmente, é que quando se encontram com os russos, colocam-se sob enorme pressão para ter um resultado. E uma cimeira que serve apenas como meio de massajar o ego de Putin e de lhe dar uma saída para poder vender ao público russo e aos seus próprios amigos que não foi derrotado e não foi dissuadido - mesmo se de fato, é claro, ele foi - não trará quaisquer resultados," precisou o especialista.

Qual é a situação no terreno?

Katharine Quinn-Judge estava em Luhansk, no extremo leste da Ucrânia, quando falou com a Euronews.

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"Não havia uma sensação de ameaça - as coisas estavam muito moderadas", disse num e-mail.

“Uma das pessoas com quem conversei mora no lado oeste da cidade de Donetsk, que fica perto de uma das piores partes da linha da frente. Ele disse que o acordo de cessar-fogo de julho de 2020 trouxe alívio, mas nos últimos meses 'eles' estão a disparar o tempo todo'.”

"Resumindo, as pessoas com quem falei estavam mais preocupadas com a rotina diária de pobreza, isolamento e guerra de baixo nível do que com alguma nova ameaça de escalada/invasão", lembrou Quinn-Judge.

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