O Brasil é "um país contraditório"

Brasil em campanha eleitoral
Brasil em campanha eleitoral Direitos de autor Eraldo Peres/AP Photo
Direitos de autor Eraldo Peres/AP Photo
De  Christophe GarachJoão Peseiro Monteiro
Partilhe esta notíciaComentários
Partilhe esta notíciaClose Button
Copiar/colar o link embed do vídeo:Copy to clipboardCopied

O jornalista Bruno Meyerfeld plasmou num livro um olhar crítico intitulado "Pesadelo Brasileiro - Cauchemar Brésilien", A Euronews conversou com o autor, igualmente correspondente do jornal francês "Le Monde".

PUBLICIDADE

No dia 2 de outubro decorre a primeira volta das eleições presidenciais no Brasil. Quatro anos depois da chegada de Jair Bolsonaro ao poder, o país nunca pareceu tão dividido. Falámos com Bruno Meyerfeld, correspondente do jornal francês "Le Monde" no Brasil e autor do livro "Pesadelo Brasileiro - Cauchemar Brésilien", um ensaio sobre a política brasileira que culminou, em 2018, com a eleição do primeiro presidente de extrema-direita à frente do maior país da América do Sul.

Jair Bolsonaro é frequentemente comparado, talvez erradamente, a Donald Trump. Mas no seu livro, descreve um Jair Bolsonaro ainda mais preocupante. O que o distingue de Donald Trump? A sua paixão por golpistas e ditadores?

Bruno Meyerfeld:

Tento sempre sublinhar as diferenças entre Donald Trump e Jair Bolsonaro. Bolsonaro é um homem que veio do exército, que passou dez anos no exército brasileiro, que chegou à patente de capitão e que, por isso, é completamente diferente do bilionário Donald Trump. Por outro lado, Trump era realmente um "outsider" quando chegou à política depois da era Obama, enquanto Jair Bolsonaro tinha 30 anos de experiência no Congresso como deputado. Isto distingue realmente os dois homens, quer na prática da política, quer no percurso pessoal.

Além disso, na verdade, os dois homens nunca se compreenderam um ao outro. É preciso saber que Donald Trump, um homem de poder, muito rico, nunca conseguiu realmente criar laços pessoais com Jair Bolsonaro, que vem de um meio bastante modesto do interior do estado de São Paulo, com um passado rural, numa pequena localidade chamada Eldorado, que não tem nada a ver com Nova Iorque e a abundância dos arranha-céus de Donald Trump.

Christophe Garach, Euronews:

Também escreve que Bolsonaro tem uma sinceridade desconcertante. É isso que o torna tão cativante para dezenas de milhões de brasileiros?

Bruno Meyerfeld:

Sim, sem dúvida. Jair Bolsonaro é considerado por muitos brasileiros como uma pessoa muito sincera. Chamam-lhe o "Sincerão". E muitas pessoas no Brasil dizem-nos que Bolsonaro não mente porque diz tudo. Isto é considerado uma forma de qualidade. Para ele, o facto de falar demais, de ser ultrajante e vulgar, de não reter as suas palavras, é visto como uma forma de sinceridade e honestidade num país que tem sido extremamente marcado há vários anos, especialmente desde o escândalo "Lata Jato", por problemas de corrupção.

O problema é que tudo isto não reflete a realidade de uma personagem que é muito mais complexa e muito mais reservada do que as pessoas querem dizer e que tem muitas áreas cinzentas. E entre elas, podemos recordar os múltiplos escândalos de corrupção que hoje têm como alvo os filhos, o círculo próximo de Jair Bolsonaro. Finalmente, na realidade, percebemos que Jair Bolsonaro e o seu clã é tudo menos honesto, antes pelo contrário. Mas pela sua linguagem, pela sua invectiva, pela sua retórica, ele dá a impressão de que poderia ser alguém completamente sincero e, portanto, honesto para uma parte da população.

Christophe Garach, Euronews:

O seu livro faz uma retrospetiva de décadas de miséria, corrupção endémica da classe política e especialmente da violência social, dos "gangs" e assassinatos repetidos. Isto explica-o?

Bruno Meyerfeld:

Jair Bolsonaro, na minha opinião, não é um passageiro clandestino da história, não é um acidente, não é um parêntesis. Ele representa, apesar dos seus ultrajes, uma parte muito importante da realidade brasileira.

Em 2018, se falarmos com os seus eleitores, o que fiz nos últimos três anos, eles explicam-nos que votaram nele porque era um capitão do exército que podia responder aos problemas de insegurança, porque era, como já foi dito, um homem sincero, que não seria corrupto e, finalmente, um pequeno liberal, de certa forma, representando as pequenas classes médias, que permitiria o crescimento económico no Brasil, pelo que respondeu aos problemas do Brasil.

Por outro lado, Jair Bolsonaro, personagem contraditória, representa um país contraditório, um país que se orgulha muito da sua natureza mas que a destrói há 200 anos, um país que é simultaneamente um cliché de uma certa sensualidade, de uma certa libertação do corpo, e ao mesmo tempo extremamente conservador em termos morais e um país que é ao mesmo tempo muito mestiço e muito racista. Bolsonaro é o produto destas contradições.

Christophe Garach, Euronews:

Sobre a gestão da pandemia, que ocupa uma parte importante do seu livro, esta gestão na qual a negação prevaleceu durante toda a pandemia, olhando agora para trás, com 685.000 mortes durante a pandemia, Jair Bolsonaro arrisca alguma coisa perante a justiça?

PUBLICIDADE

Bruno Meyerfeld:

Estima-se que das 680.000 ou 700.000 mortes brasileiras, um número muito subestimado, pelo menos 300.000 ou 400.000 poderiam ser atribuídas diretamente à ação de Jair Bolsonaro. Cometeram-se atos completamente descabidos durante esses anos, como por exemplo testar cloroquina em pacientes de Covid-19 sem o seu consentimento, o que foi permitido e encorajado pelo governo federal, de acordo com algumas investigações jornalísticas.

O que podemos dizer hoje é que o problema com o sistema judicial brasileiro é que é muito politizado e que Jair Bolsonaro pode muito bem ser processadosem ser condenado se tiver peso político suficiente para poder meter medo ao establishment. Penso que é isso que se joga nestas eleições.

Christophe Garach, Euronews:

Lula era a única alternativa a Bolsonaro?

PUBLICIDADE

Bruno Meyerfeld:

Ele é adulado por toda uma parte da população, uma população que não é maioritária, mas por uma grande parte da população e odiado por outra grande parte da população, especialmente porque é o fundador do Partido dos Trabalhadores, um partido que é rejeitado por uma grande parte dos brasileiros devido ao seu envolvimento em escândalos de corrupção, precisamente nos anos 2000. O que podemos dizer hoje é que Lula, foi condenado, enviado para a prisão e depois libertado até que o processo contra ele fosse arquivado. Hoje em dia, Lula é considerado inocente pela justiça brasileira e por uma boa parte do povo brasileiro.

Lula, convém lembrar, é um animal político que entrou na cena pública no final dos anos 70, que representa um peso considerável na história brasileira, e hoje, se ele é o favorito e se é talvez capaz de vencer na primeira volta, é precisamente porque, para uma grande parte dos brasileiros tem uma legitimidade considerável, em particular, por ter tirado dezenas de milhões de pessoas da pobreza nos anos 2000, e por ter conseguido projetar uma imagem positiva sem precedentes do Brasil na cena internacional. E muitos brasileiros lembram-se desta herança.

De facto, Lula está agora a fazer campanha sobre o passado, de certa forma, recordando os grandes feitos desses dois mandatos, e promete aos brasileiros que os seus dias serão, pelo menos, tão felizes quanto os do passado. Não há muitos líderes no planeta que sejam capazes de fazer campanha sobre o seu mandato e os seus sucessos. Este é o caso de um líder como Lula, apesar de todas as suas contradições.

Christophe Garach, Euronews:

PUBLICIDADE

Uma última pergunta e depois terminamos. Uma palavra sobre o balanço governativo de Jair Bolsonaro. Além da reforma do sistema de pensões, é tudo para deitar à urtigas?

Bruno Meyerfeld:

Globalmente, de facto, em termos de reformas, Jair Bolsonaro aprovou muitos poucos textos, se é que houve algum, à excepção de decretos sobre armas ou de alguns decretos que também suavizam a economia, algumas privatizações e algumas isenções para os pastores. Jair Bolsonaro é considerado no Brasil e internacionalmente como um criminoso que participou não só na destruição da Amazónia brasileira, mas também em ataques sem precedentes contra as instituições. É adulado por alguns dos seus apoiantes por este resultado, é odiado por outros, mas podemos dizer que o legado de Jair Bolsonaro é bastante catastrófico e que será sentido durante muitos anos.

Christophe Garach, Euronews:

Mas se olharmos para os dados macroeconómicos do país e as previsões a médio prazo, o balanço não é assim tão mau. O desemprego está em baixa, a dívida está em baixa, o défice público também, o crescimento para 2022 é de cerca de dois por cento, 2023 será um pouco mais complicado, mas o mundo inteiro está na mesma situação. Estes números económicos podem ajudar à reeleição de Jair Bolsonaro?

PUBLICIDADE

Bruno Meyerfeld:

Os números económicos devem ser, na verdade, relativizados, especialmente porque o país teve uma recessão muito forte, uma fuga maciça de capitais, um aumento muito forte da dívida e 33 milhões de brasileiros sofrem agora de desnutrição, mesmo de fome.

O Brasil tinha saído do mapa da fome no mundo nos anos 2000 e agora está de volta. Isto é conhecido no Brasil como o "Retrocesso", uma marcha-atrás significativa que, além dos números do desemprego, mostra um agravamento sem precedentes da pobreza no Brasil.

Basta andar pelas ruas do Rio de Janeiro para ver filas ininterruptas de dezenas de pessoas sem-abrigo, vestidas de trapos, que hoje passam fome nas ruas das grandes cidades. E isso era algo que não tinha desaparecido completamente, mas que tinha diminuído enormemente nos anos 2000.

O balanço económico de Bolsonaro serviu os interesses de algumas pessoas poderosas, em particular os barões do agronegócio, que conseguiram exportar como nunca, mas para as populações mais miseráveis é um balanço catastrófico.

PUBLICIDADE
Partilhe esta notíciaComentários

Notícias relacionadas

Apoios sociais, corrupção e projeção internacional marcam mandatos de Lula

Bolsonaro já gravou nome na história brasileira do séc. XXI

Antigo chefe do exército brasileiro ameçou prender Bolsonaro se insistisse com golpe de Estado