Depois de uma delegação da UE ter sido humilhada pelo comandante que controla grande parte do leste da Líbia, a Euronews analisa a queda de Haftar, a sua ascensão ao poder e quem o está a ajudar a mantê-lo.
Quando uma delegação de alto nível da UE se deslocou à cidade de Benghazi, no leste da Líbia, na passada terça-feira, esperava discutir formas de limitar o número crescente de migrantes que saem do país em direção à Europa.
No entanto, pouco depois de o seu jato ter aterrado no aeroporto de Benghazi, o grupo de ministros dos Negócios Estrangeiros da UE - bem como o Comissário Europeu para a Migração, Magnus Brunner - foram mandados embora.
Não houve acordo, nem sequer uma reunião. Foram expulsos sem cerimónias e declarados persona non grata, disse na altura uma fonte do lado europeu à Euronews, acrescentando que a delegação foi apanhada numa "armadilha" diplomática em que Haftar tentou forçá-los a tirar uma fotografia com o seu governo de Benghazi, legitimando-o tacitamente.
Embora a própria UE tenha sido negligente em comentar publicamente o que um analista líbio de alto nível disse ter sido uma "humilhação", sabe-se que o homem com quem esperavam chegar a um acordo era o general Khalifa Haftar.
Como chefe do poderoso Exército Nacional Líbio, apesar de não liderar o governo reconhecido internacionalmente, Haftar tornou-se o governante de facto de vastas áreas do país do Norte de África, que não tem um Estado unificado desde a queda e assassinato do famoso ditador Muammar Kadhafi em 2011.
Embora Haftar seja, sem dúvida, a pessoa mais poderosa da Líbia atualmente, ele próprio já foi persona non grata, vivendo tranquilamente no exílio até à morte de Kadhafi.
Mantenha os seus amigos por perto...
Nascido numa família árabe de Benuin, no nordeste da Líbia, no início dos oito anos de ocupação britânica do país, Khalifa Belqasim Omar Haftar era, mesmo segundo os seus aliados, "um jovem muito calmo, que não trabalhava muito".
No entanto, conseguiu ser admitido na Academia da Universidade Militar de Benghazi, onde os seus amigos do tempo em que lá esteve também se referem a ele como "um rapaz muito severo".
"Ele não pedia para lutar, mas se a luta chegasse até ele, sabia como lidar com ela", descrevem os amigos de Haftar.
Foi na academia que Haftar ficou a conhecer um aluno do ano anterior - Muammar Kadhafi.
Tornaram-se amigos rapidamente, com o próprio Haftar a chamar "anjo" a Kadhafi. Ambos partilhavam um espírito revolucionário, fomentado por um golpe político recente que derrubou a monarquia e a classe política do país vizinho, o Egito.
"Fomos fortemente afetados pela era de Gamal Abdel Nasser e pelo que se passava no Egito", explicou mais tarde Haftar.
Haftar era também, na altura, um grande admirador do vice-presidente iraquiano, que em breve se tornaria um nome conhecido.
"O filho mais velho de Khalifa chama-se Saddam, que, por acaso, tem o mesmo nome que Saddam Hussein. É o mais parecido com o pai; penso que isso diz tudo o que é preciso saber", disse Tim Eaton, do Instituto Chatham House, numa entrevista à Euronews a partir de Londres.
É também provável que tenha escolhido o título de marechal de campo como uma homenagem ao líder socialista jugoslavo Josip Broz Tito, segundo os especialistas.
Apenas três anos após a sua formatura, foi fundamental no golpe de 1969 que derrubou o rei Idris e o substituiu por Kadhafi, que tinha ambições expansionistas de espalhar a sua ideologia socialista islâmica — também conhecida como Jamahiriya — para além das fronteiras da Líbia.
Nos anos seguintes, recebeu formação na União Soviética e subiu na hierarquia das forças armadas de Kadhafi, tendo chegado a comandar as tropas líbias que apoiavam as tropas egípcias na invasão do Sinai ocupado por Israel durante a Guerra do Yom Kippur, em 1973.
Este facto cimentou o que viria a ser uma relação duradoura entre o comandante militar líbio e os líderes do Cairo.
...mas mantenha os seus inimigos ainda mais perto
Em 1986, foi promovido a coronel, tendo-se tornado, posteriormente, chefe do Estado-Maior militar. À medida que o regime de Kadhafi se tornava cada vez mais autoritário e corrupto, a sua ascensão parecia inexorável.
No entanto, a sua sorte mudou de repente: No final da década de 1980, o comandante favorito de Kadhafi liderou uma missão desastrosa no Chade, que resultou na captura de quase 700 soldados líbios, incluindo o próprio Haftar.
Este foi preso juntamente com os seus homens. A sua libertação foi garantida pelos Estados Unidos da América e não pela Líbia, o que, segundo o analista líbio Anas El Gomati, foi um ponto de viragem na relação entre Haftar e Kadhafi.
"Haftar era a espada escolhida por Kadhafi, até se tornar a sua lâmina mais afiada virada para dentro", disse à Euronews o fundador do que é considerado o primeiro grupo de reflexão da Líbia.
El Gomati explica que, após ter sido abandonado como bode expiatório, "Haftar passou duas décadas na Virgínia a planear a vingança".
"Não se limitou a opor-se a Kadhafi; tornou-se o seu espelho negro, aprendendo todas as lições sobre o controlo autoritário", sublinhou.
De facto, durante os 24 anos seguintes, Haftar viveu no exílio, trabalhando com movimentos de oposição líbios, a poucos quilómetros de Washington, mais concretamente em Langley, sede da CIA.
Em 2019, Mohamed Bouzier, um antigo conselheiro de Haftar na década de 2010, concordou com El Gomati numa entrevista à BBC. "Ele estava obcecado com Kadhafi. Era consumido pela inveja de Kadhafi. Como Kadhafi governava o país", disse Bouzier.
No entanto, algumas pessoas ligadas à Líbia revelaram à Euronews, em privado, que há rumores de que Kadhafi terá oferecido ao seu antigo chefe militar uma opulenta mansão no Cairo durante esse período — a mesma casa onde cresceu o filho mais poderoso de Haftar, Saddam.
De volta ao ativo
Quando eclodiram protestos por todo o mundo árabe em 2011, os líbios saíram à rua em cidades de todo o país.
Depois de décadas a discutir conspirações para derrubar Kadhafi com os ocidentais, e como descreve a especialista em Líbia, Claudia Gazzini, "como que uma espécie de deserção para os americanos", Haftar finalmente viu surgir fissuras e partiu rapidamente para a capital líbia, Trípoli.
No entanto, o analista sénior do Grupo de Crise Internacional rejeitou a ideia de que Haftar se pudesse tornar um fantoche dos EUA na revolução líbia.
"Ainda não ouvi ninguém torná-la tão explícita. Faria sentido, mas ninguém disse que os americanos lhe disseram para regressar".
Mesmo que o tivessem feito, não teria sido um sucesso a curto prazo, continuou.
"Em 2012-2013, ele estava em Trípoli, mas não era uma figura importante na altura, porque havia muitos grupos armados diferentes e o poder estava equilibrado entre todos."
El Gomati foi menos diplomático: "Haftar era uma nota de rodapé, um fóssil da Guerra Fria".
Só em 2014 é que a figura de Haftar emergiu verdadeiramente, quando anunciou uma operação que, segundo ele, visava erradicar os extremistas em Benghazi.
Mesmo nessa altura, Gazzini afirma que não lhe foi dada importância. "Apareceu na televisão. Foi muito patético. Na verdade, apareceu na televisão com um grande mapa atrás a dizer: 'Sabem, temos de nos rebelar contra estes maus islamistas'".
Gazzini e Eaton duvidam desta afirmação, com este último a dizer à Euronews que "para o general, sempre houve bons e maus islamistas".
"Na verdade, há muitos salafistas (extremistas islâmicos) nas suas fileiras, apenas aqueles que sabem receber ordens", explicou.
No entanto, a Operação Dignidade, como ficou conhecida, ajudou a consolidar o poder de Haftar na segunda maior cidade da Líbia e em grande parte do leste do país.
Nos anos seguintes, este aumentou o seu poder e tornou-se comandante supremo do Exército Nacional Líbio em 2015.
Nada disto aconteceu no vácuo.
Família em casa, amigos no estrangeiro
Ao longo das décadas, Haftar estabeleceu laços estreitos com o Cairo, mas quando regressou à Líbia, o Egito estava também em pleno fervor revolucionário, tendendo para o grupo islamita Irmandade Muçulmana.
Como Gazzini explica, "havia uma ameaça jihadista na Líbia e, depois, temos o Egito, que era muito frágil".
"Se recuarmos a 2013, antes de El-Sisi, havia o receio de que o Egito pudesse implodir. E os europeus também não queriam que o Egito entrasse em colapso", disse.
Confrontados com escolhas difíceis e receando que grupos como o autoproclamado Estado Islâmico espalhem a sua influência no Norte de África, alguns analistas acreditam que os líderes europeus deram a Haftar — cujo poder e exército cresceram em força — um sinal silencioso de aprovação para fazer o que considera correto.
"Precisavam de um novo Kadhafi, alguém que pudesse impedir que a democracia se tornasse contagiosa. Haftar encaixava nesse perfil: implacável, ambicioso e disposto a trocar a soberania por apoio", considera El Gomati.
O Egito também o apoiou por ser alguém conhecido, da vizinhança imediata, que compreendia o contexto, mas também os perigos que a região enfrentava.
A lista de apoiantes, silenciosos ou não, não parou de crescer a partir daí. Além do Cairo, Haftar obteve o apoio de governos que vão de Moscovo a Washington, apesar da ONU não reconhecer a sua autoridade como chefe de Estado legítimo.
No entanto, segundo Gazzini, foram Abu Dhabi e Paris que acabaram por se tornar os seus apoiantes mais inquestionáveis. Enquanto os Emirados Árabes Unidos se interessavam pelas reservas de petróleo da Líbia, as maiores de África, França e o resto da Europa enfrentavam um afluxo de refugiados através do Mediterrâneo, centenas de milhares dos quais esperavam chegar ao continente através da Líbia.
Neste contexto, Haftar viu a oportunidade de utilizar o apoio internacional para se tornar finalmente o governante da Líbia, e quem sabe, talvez até maior do que o próprio Kadafi.
Quando este anunciou a sua intenção de derrubar o Governo de Acordo Nacional, com sede em Trípoli e reconhecido internacionalmente, no dia em que o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, chegou à capital, em 2019, até o Egito o avisou.
"Ele estava cheio de arrogância por parte dos emiratis, que o queriam fazer. Estavam a dar-lhe cobertura aérea. Os franceses também o queriam fazer", disse Gazzini à Euronews a partir dos escritórios do IRG, em Roma.
Esta arrogância foi por alguns comparada à invasão em grande escala da Ucrânia pelo seu aliado, o presidente russo, Vladimir Putin.
Da mesma forma, as tentativas de Haftar também falharam. Trípoli recusou-se a cair nas mãos das tropas de Haftar e a Líbia voltou a mergulhar num impasse.
Divididos, permanecemos
Durante todo este tempo, Haftar acumulou uma riqueza extraordinária para a sua família e colocou vários familiares em cargos importantes, segundo os especialistas.
Houve um debate sobre se os seus filhos poderiam entrar e assumir o controlo quando ele morresse. Parece que já o fizeram e começaram a criar as suas próprias pastas.
"Está tudo na família e nas mãos dos seus filhos", descreveu sucintamente El Gomati.
"Saddam dirige as forças terrestres. Khaled comanda a guarda pessoal. Belkacem controla os milhares de milhões do fundo de reconstrução da Líbia. Sidig gere o processo de reconciliação", explica. A família acumulou uma carteira de títulos avaliada em milhares de milhões.
Apesar de não terem conseguido conquistar o país, Haftar e os filhos continuam a governar grande parte da Líbia.
"Ele controla tudo o que é importante no leste da Líbia", afirmou El Gomati.
Campos petrolíferos, portos, aeroportos, bases militares e o banco central. Tem a sua própria força aérea e controla as rotas de contrabando transfronteiriças. Funciona como um Estado dentro de um Estado".
A Euronews contactou Khalifa e Saddam Haftar para comentarem o assunto.
O autoproclamado marechal-de-campo mantém um apoio internacional significativo, como demonstrado pela falta de reação da UE na semana passada.
Esteve recentemente na Rússia para conversações com Putin, numa viagem durante a qual se disse que tinha morrido, mas que, mais uma vez, acabou por recuperar milagrosamente.
A "humilhação" da delegação da UE não é a primeira vez que acontece e mostra como, mais uma vez, conseguiu fazer passar por cima de supostos aliados na Europa.
Os analistas com quem a Euronews falou atribuem este facto às disputas internas na Europa sobre "migrações irregulares" e ao simples facto de "não haver maneira de os barcos de migrantes saírem do leste sem que Haftar saiba".
Gazzini deu o exemplo da sua Itália natal: "Há cerca de um ano e meio, quando muitos migrantes chegavam à costa italiana, o general fez saber que queria uma visita oficial e um convite para ir a Roma. E conseguiu-o".
No final da entrevista, El Gomati não poupou nas palavras ao comentar a abordagem europeia ao comandante líbio. "Os europeus continuam a oferecer-se como vítimas. Haftar trata os diplomatas da UE como pretendentes desesperados, porque é exatamente isso que eles são".
Eaton também aborda este ponto, embora de forma um pouco mais diplomática. "Há um verdadeiro desequilíbrio", concluiu.
No entanto, a Europa também não está a agir no vazio. Muitas vezes, tenta respeitar as regras e as convenções internacionais num contexto em que as ações obscuras têm muito mais peso do que as palavras e os acordos no papel.
Por vezes, é melhor ter um homem forte do nosso lado — ou, pelo menos, a sua atenção.
"Temos muito pouca influência em comparação com outros Estados. Comparemo-nos com os russos, que têm caças MiG à disposição de Haftar", admitiu Gazzini.
"Compare-nos com os Emirados Árabes Unidos, que violam o embargo ao transportar reforços e munições".