Promete vinho canalizado em todas as casas, um Ferrari para cada português e quer ainda construir uma cidade com 10 milhões de habitantes baseada na Inteligência Artificial. A candidatura de Manuel João Vieira às presidenciais faz primeiro rir, depois pensar.
As eleições presidenciais portuguesas, marcadas para janeiro do próximo ano, têm mais um candidato, mas este é diferente de todos os outros. Se, de André Ventura a Henrique Gouveia e Melo, de Marques Mendes a Catarina Martins, Jorge Pinto e Joana Amaral Dias, passando por Cotrim de Figueiredo, António José Seguro e António Filipe, ou mesmo o já habitual Tino de Rans, todos se apresentam com um projeto mais ou menos sério e vontade de afirmar as suas ideias no panorama político português, esse não é o caso de Manuel João Vieira, que anunciou ter recolhido as 7500 assinaturas necessárias para concorrer (terá mesmo chegado às nove mil).
Com um discurso cómico e absurdo, o líder da banda Ena Pá 2000, figura conhecida do entertenimento em Portugal há várias décadas, apresenta-se com uma promessa: "só desisto se for eleito". É um discurso que faz sorrir, numa primeira fase, e pensar num segundo tempo, numa altura em que no panorama político português se nota o desgaste causado por cinco décadas de governação de dois partidos do centro, o PS e o PSD, que se reflete no crescimento da extrema-direita representada pelo Chega de Ventura e no aparecimento de uma figura apartidária, o Almirante Gouveia e Melo, com fortes hipóteses de chegar à mais alta magistratura do Estado.
Talvez para parodiar Gouveia e Melo, Vieira apresentou-se numa entrevista ao canal SIC Notícias, na sexta-feira, com um chapéu de comandante na cabeça. Ao longo de 20 minutos, fez desfilar toda a lista de propostas surrealistas que "apresenta", antes de trautear, perante uma jornalista/apresentadora algo atónita, um hino de campanha com a seguinte letra:
Tenho narinas de cocaína
Tenho artérias de heroína
Tenho pulmões feitos de haxixe
Eu sou um gajo muita fixe
Tenho pança de Super Bock
O fígado é do Capitão Haddock
Tenho cabeça de melão
E hálito de ca**lhão
Gosto de ouvir cantar o hino
O meu avô era campino
Gosto de sandes de pepino
E de rabinho de menino
Se os "likes" e partilhas da entrevista nas redes sociais se traduzirem em votos, então temos candidato, já que a prestação de Vieira na TV e todos os memes que gerou se tornaram virais. Entre as propostas, algumas novas e outras recicladas de campanhas anteriores (Vieira tentou candidatar-se em eleições anteriores, sem nunca ter conseguido recolher todas as assinaturas), contam-se:
- Construção de uma cidade com 10 milhões de habitantes chamada Vieirópolis, no centro do país, em que tudo está garantido pela Inteligência Artificial
- Vinho canalizado em todas as casas e fontes de bagaço nas ruas
- Uma prostituta em cada esquina; patinadoras russas para todos os homens e dançarinos cubanos para todas as mulheres
- Um Ferrari para cada português
Propõe ainda, como solução para o problema da imigração, recorrer a tratamentos para clarear a pele das pessoas mais escuras e escurecer a das pessoas mais claras, uniformizando assim o tom de pele de todos os habitantes de Portugal.
Apesar do tom jocoso e das propostas absurdas, Vieira não deixou de falar de temas sérios, justificando a sua candidatura com o "crescimento do fascismo" e alertando para a ausência do aquecimento global das agendas dos restantes candidatos.
Quem é Manuel João Vieira?
Nascido em 1963, é filho do pintor João Rodrigues Vieira e seguiu as pisadas do pai, sendo igualmente artista plástico e professor de arte. Mas foi na música que se afirmou, sendo vocalista e figura de proa dos Ena Pá 2000, banda formada em 1984 que desde essa altura ganhou um estatuto especial com o seu registo humorístico, absurdo e por vezes assumidamente obsceno.
Além dos Ena Pá 2000, Vieira, que também responde pelos pseudónimos de Lello Marmello e Lello Minsk, lidera projetos musicais paralelos (ou paraLellos, se prefeirem) como os Corações de Atum ou os Irmãos Catita.
De Coluche a Zelenskyy
Esta não é a primeira vez que um comediante se apresenta a umas eleições presidenciais com o único objetivo de dar um abanão. Em 1980, o conhecido e popular humorista francês Coluche anuncia a sua intenção de se candidatar às eleições do ano seguinte, que teriam como resultado a eleição de François Mitterrand para um primeiro mandato. Na apresentação da candidatura, diz: "se nos tomam por imbecis, vamos então votar num imbecil".
Se, inicialmente, a candidatura de Coluche foi vista como uma simples "brincadeira", as coisas ganharam um tom mais sério quando a primeira sondagem oficial, realizada em dezembro de 1980, dá a Coluche 10% a 12% das intenções de voto.
O comediante terá então, segundo vários relatos, começado a sofrer todo o tipo de pressões para desistir, além de ameaças de morte e de um alegado boicote por parte dos principais meios de comunicação social.
Acabaria mesmo por desistir, após uma greve de fome contra a falta de cobertura mediática da sua candidatura, em abril de 1981, apelando ao voto em Mitterrand, eleito em maio desse ano por uma margem mínima contra o então presidente recandidato Valéry Giscard d'Estaing.
Coluche morreu num acidente de viação em 1986, quando se especulava sobre uma possível candidatura às presidenciais de 1988.
Mais recentemente, outro comediante apresentou-se às presidenciais de um país, mas desta vez com intenções sérias e acabou mesmo eleito: de figura da cultura popular e "presidente" numa série de televisão, Volodymyr Zelenskyy acabou a liderar o país na altura mais delicada da sua história, enfrentando uma invasão russa e uma guerra em larga escala.
Antes, nos anos 1980, foi a vez de outro ex-ator, Ronald Reagan, se tornar presidente dos EUA no auge da guerra fria, marcando para sempre a história do século XX.