"Astérix na Lusitânia", em apenas quatro dias, bateu todos os recordes de vendas para um lançamento de um livro em Portugal. No dia da apresentação, os dois autores falaram à Euronews.
Foi em 1959 que Astérix e o resto da aldeia de irredutíveis gauleses, que resistem à ocupação romana graças à poção mágica, apareceram pela primeira vez na revista francesa Pilote. Desde então, Astérix, sempre acompanhado pelo fiel amigo Obélix e pelo cão Ideiafix, percorreram todas as partidas do Império Romano e mais além... todas? Até este ano, os fãs portugueses da série lamentavam que a Lusitânia, território correspondente ao que é hoje Portugal, não tinha ainda recebido a visita destes heróis que apaixonaram e divertiram várias gerações de leitores.
A falha foi, finalmente, colmatada com o lançamento de Astérix na Lusitânia, 41º álbum da série, sétimo desenhado por Didier Conrad (que recebeu o testemunho de Albert Uderzo, criador das personagens) e segundo com argumento de Fabrice Caro (Fabcaro), depois de O Lírio Branco.
Para já, o sucesso é estrondoso. A notícia foi avançada à Euronews pelo diretor-geral do grupo Leya, David Lopes, e mais tarde confirmada pelo editor da série em Portugal, Vítor Silva Mota, na sessão que esgotou por completo uma das maiores salas do complexo de cinemas do El Corte Inglés em Lisboa, com dezenas de pessoas desesperadas por não terem conseguido entrar: Astérix na Lusitânia é o livro mais vendido de sempre nos primeiros quatro dias na história da edição em Portugal.
Desde o lançamento no dia 23 de outubro, as vendas bateram todos os recordes. Astérix na Lusitânia já vendeu mais de 50 mil exemplares, de uma tiragem inicial de 80 mil. A nível global, foram impressas cinco milhões de cópias, editadas em 25 países e 19 línguas (incluindo dialetos pouco falados como o mirandês).
O segredo do sucesso? O humor mordaz de sempre, os trocadilhos, os anacronismos, o piscar de olhos para os temas atuais (entre duas risadas, fala-se de temas sérios como o discurso anti-imigração ou o domínio dos grandes grupos económicos) e, claro, o desfilar de clichês sobre os países visitados.
Na Lusitânia, não poderiam faltar o fado (cantado por uma lusitana chamada Amália), os pastéis de nata, o bacalhau (que Obélix detesta), a calçada portuguesa, os azulejos... e esse sentimento tão português, a saudade, ou aquele estado de alma que se resume nas palavras de Astérix para Obélix quando se mascaram de lusitanos: "Tenta pôr um ar triste e alegre ao mesmo tempo". "O engraçado é que começamos a ler o livro e dizemos 'nós não somos nada assim'! Quando acabamos, admitimos que sim, nós somos tudo aquilo", conta o humorista Hugo van der Ding, que fez a apresentação do livro.
Há ainda um antepassado do elétrico XXVIII em Olisipo (Lisboa), um revolucionário chamado MCMLXXIV e um jovem que joga futebol com o número VII na camisola, entre muitas piscadelas de olho para o Portugal contemporâneo.
Entrevista
Fabrice Caro (Fabcaro) e Didier Conrad receberam a Euronews numa livraria lisboeta na tarde da apresentação e falaram sobre todo o processo que levou à criação deste álbum.
Euronews: Por que razão os nossos amigos Astérix e Obélix levaram tanto tempo a vir visitar os seus primos lusitanos?
Fabcaro: Também me pergunto o mesmo. Quando tive de fazer um álbum de viagem, percebi que eles nunca tinham ido a Portugal, e não compreendi porquê. Pergunto-me por que razão demoraram tanto tempo, quando me parecia ser um destino bastante óbvio. Não fica muito longe da Gália, podem ir de barco. É um país conhecido, é um país vizinho com uma cultura forte. Por isso, não sei por que demoraram tanto tempo.
Didier Conrad: Quando retomámos a série, Portugal surgiu imediatamente como uma possibilidade, talvez também porque viemos a Portugal logo após Astérix entre os Pictos (2013) e houve uma certa insistência dos portugueses (em particular, de Vítor Silva Mota, NDR) para que fizéssemos um álbum no seu país. Sei que o argumentista anterior, Jean-Yves Ferri, de origem espanhola, não se sentia muito à vontade com o tema. Por outro lado, o Fabrice (Caro) quis vir imediatamente a Portugal. Ficámos muito contentes com a ideia.
Euronews: Os clichés sempre existem nos álbuns de Astérix e esta história não é exceção. Há o bacalhau, que o Obélix detesta. Depois, há os pastéis de nata, o fado, tudo isso... Além dos clichés, quais aspetos de Portugal e dos portugueses identificaram nas vossas viagens preparatórias e decidiram incluir no álbum?
Fabcaro: A hospitalidade. A hospitalidade não fazia necessariamente parte do argumento inicial.
Tinha percebido os clichés gastronómicos, o bacalhau, as características, a saudade, e esse foi o nosso ponto de partida. Não estava muito focado na hospitalidade, no lado caloroso e acolhedor dos portugueses. Quando viemos com o editor, percebi que tinha de acrescentar esse aspeto. Reescrevi e acrescentei ao guião a parte sobre o lado acolhedor e solidário do povo português.
Didier Conrad: Só cá tinha vindo uma vez. O que me surpreendeu mais foi o clima, que é muito diferente do de Espanha. É um clima húmido e quente. Na verdade, não é muito diferente do Texas, onde vivo.
Também reparei que há azulejos em todo o lado, até debaixo dos lavatórios. É incrível a necessidade de decorar tudo. É realmente típico daqui, penso. Por outro lado, há muito peixe, muitos pratos à base de peixe.
Euronews: O legado de Uderzo e Goscinny é difícil de carregar?
Fabcaro: Eram dois génios. Um génio do desenho e um génio da escrita. Por isso, é muito difícil seguir os seus passos, mas é uma missão.
Ao mesmo tempo, isso serve como restrição. Dizemos a nós mesmos que devemos manter esse espírito. Quando fazemos um álbum de viagem, devemos manter o espírito de humor benevolente, de rir juntos, de partilhar. Queremos conservar esse espírito tão querido pelos criadores.
Didier Conrad: É um pouco como estar numa grande família. Eu cresci com Astérix. É algo que faz parte do meu quotidiano afetivo e emocional. Portanto, é mais uma tradição na qual fomos criados. Não é assim tão pesado.
Euronews: No seu caso específico, é o desenhador, tem o seu próprio estilo, mas teve de se adaptar um pouco ao estilo de Uderzo...
Didier Conrad: Comecei a trabalhar nos Astérix quando tinha pouco mais de 50 anos e já tinha desenvolvido um pouco tudo o que queria desenvolver pessoalmente. Já tinha feito vários álbuns pessoais e evoluir a partir de uma certa idade é mais difícil, porque criamos hábitos.
Disse a Uderzo que, ao fazer isto, estava a reaprender o meu ofício, porque fui obrigado a rever tudo o que eu sabia de acordo com a maneira dele trabalhar. Para mim, foi bom.
Euronews: Vejo que, neste álbum, à semelhança dos anteriores, misturam temas atuais com temas clássicos. Falam, por exemplo, sobre o discurso anti-imigração ou sobre o turismo. Leram um pouco sobre a situação em Portugal?
Fabcaro: Não li especificamente sobre Portugal, mas conheço a situação em França e a impressão que tenho é que um clima europeu. No geral, penso que estamos um pouco na mesma situação.
Em cada álbum há um olhar sobre a sociedade. Há a história principal e depois há sempre um tema transversal. É sempre uma fotografia da sociedade em que se insere e da época em que o álbum é lançado.
Euronews: No seguimento desta questão, o redesenho da personagem de Baba (o negro dos piratas) tem a ver com esse novo clima? Porque antes era uma personagem que refletia muito o estereótipo que o branco tem em relação ao negro...
Didier Conrad: É preciso entender que a personagem de Baba surgiu como paródia a outra série que existia na Pilote na mesma época, uma série chamada Barbe Rouge, que continua até hoje, onde havia um negro grande chamado Baba que falava sem pronunciar o R. Era apenas uma referência à série de um amigo, na verdade. Ao fim de algum tempo, a paródia ficou mais conhecida do que a série original.
Às tantas, começou a encaixar-se como um estereótipo que significa outra coisa. Além disso, estamos num período tenso em relação à representação das diferentes etnias ou culturas, e isso causa problemas, especialmente para pessoas que não conhecem o universo de Astérix, que veem isso de fora e percebem que, com todo o impacto que Astérix tem, não é bom fazer isso, e isso complica as coisas. Foi, sobretudo aos editores norte-americanos que a personagem colocou um problema.
Euronews: Próximo álbum? Próximas ideias?
Fabcaro: Para o Didier, com certeza. Eu estou como interino porque o argumentista principal nomeado é Jean-Yves Ferry, que quis fazer uma pausa, pelo menos, durante estes dois álbuns. Por isso, estou à espera para ver o regresso do Jean-Yves. Eu, pelo menos, continuo com vontade, continuo a divertir-me imenso.