Análise: O acordo da UE com o Egipto tem um preço e riscos elevados

Ursula von der Leyen deslocou-se ao Egipto para assinar uma parceria de 7,4 mil milhões de euros com o Presidente Abdel Fattah el-Sisi.
Ursula von der Leyen deslocou-se ao Egipto para assinar uma parceria de 7,4 mil milhões de euros com o Presidente Abdel Fattah el-Sisi. Direitos de autor Dati Bendo/ EU/Dati Bendo
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De  Jorge LiboreiroVincenzo Genovese
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Artigo publicado originalmente em inglês

Depois da Tunísia e da Mauritânia, a União Europeia (UE) encontrou um novo parceiro "estratégico" para travar a migração irregular: o Egito. Mas o acordo tem um preço (7,4 mil milhões de euros) e riscos elevados.

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A UE assinou, no domingo, uma "parceria global" com o Egito no valor de 7,4 mil milhões de euros, um valor muito superior ao dos acordos com a Tunísia, de 700 milhões de euros, e com a Mauritânia, de 210 milhões de euros**.**A lógica subjacente aos três acordos é, no entanto, a mesma: injetar dinheiro para ajudar a estabilizar uma economia vacilante e travar os fluxos de migração irregular.

"Dado o peso político e económico do Egito, bem como a sua localização estratégica numa vizinhança muito conturbada, a importância das nossas relações só irá aumentar com o tempo", afirmou a presidente da Comissão Europeia, Ursuval von der Leyen, no Cairo.

No caso do Egito, a necessidade é particularmente premente: o país encontra-se numa séria crise económica devido à inflação elevada, altos níveis de dívida externa e défice comercial, taxas de juro crescentes e escassez de divisas. 

Os problemas foram consideravelmente agravados pela guerra da Rússia contra a Ucrânia, que perturbou os mercados mundiais de trigo e fez subir os preços dos alimentos para níveis recorde, e pelos ataques dos rebeldes Houthi (do Iémen) no Canal do Suez (controlado pelo Egito), que privaram o governo do Cairo de 10 mil milhões de dólares de receitas anuais.

A turbulência levou o Egipto a solicitar o seu quarto empréstimo ao Fundo Monetário Internacional (FMI) desde 2016, no valor de 8 mil milhões de dólares (7,3 mil milhões de euros). Em troca, o país concordou em desvalorizar a moeda nacional, introduzir uma taxa de câmbio flutuante, abrandar as despesas em infra-estruturas e preservar a sustentabilidade da dívida.

Verbas da UE para reformas

O acordo de 7,4 mil milhões de euros com a UE tem, também, uma forte dimensão económica: cino mil milhões de euros em empréstimos deverão apoiar as reformas macroeconómicas do Egito, 1,8 mil milhões de euros são entregues em investimentos adicionais no âmbito da política de vizinhança do bloco para impulsionar as energias renováveis e a conetividade digital. 

No que respeita à gestão da migração, o acordo afeta 200 milhões de euros à luta contra o contrabando e o tráfico de seres humanos, no âmbito de um pacote mais vasto de 600 milhões de euros de subvenções não reembolsáveis.

À primeira vista, a verba de 200 milhões de euros parece pequena, especialmente tendo em conta que a redução da migração irregular é uma prioridade partilhada pelos 27 Estados-membros, independentemente da sua inclinação política, e que o Egipto acolhe atualmente mais de 500 mil refugiados de países vizinhos, sobretudo do Sudão e da Síria.

Mas Bruxelas vê as coisas de uma forma holística: colocar dinheiro num sítio pode repercutir-se noutros. Segundo este raciocínio, o reforço da economia interna do Egito pode contribuir tanto - ou talvez até mais - para controlar a migração irregular do que o reforço dos controlos fronteiriços.

Nos últimos anos, a UE tem visto um aumento dramático nos pedidos de asilo de cidadãos egípcios: de 6,616, em 2021 para 26,512, em 2023, de acordo com a agência de asilo do bloco (EUAA). A maioria destes pedidos foi registada em Itália (69%), seguida da Grécia, num distante segundo lugar (9%). Este facto ajuda a explicar a razão pela qual os primeiros-ministros Giorgia Meloni, de Itália, e Kyriakos Mitsotakis, da Grécia, se juntaram à viagem de Ursula von der Leyen.

É de notar que o aumento acentuado dos pedidos de proteção internacional não correspondeu a um aumento proporcional das taxas de reconhecimento. A AEA estima que entre 6 e 7% dos pedidos foram aceites.

"Os egípcios que emigram para o estrangeiro são influenciados principalmente por factores económicos e pela procura de emprego", afirma a agência num estudo publicado em 2022, para explicar por que razão a maioria destes pedidos de proteção internacional foi rejeitada.

As conclusões indicam que os egípcios que procuram chegar à Europa não partem das costas egípcias, uma vez que as fronteiras marítimas são cuidadosamente vigiadas. Em vez disso, a maioria viaja para a Líbia e depois tenta atravessar o Mar Mediterrâneo. Uma minoria opta por voar para a Turquia e tenta entrar no bloco através da Bulgária ou da Grécia.

Além disso, a agência destaca a posição do Egito como país de trânsito para os migrantes provenientes do Corno de África, que muitas vezes recorrem aos mesmos contrabandistas que os egípcios.

"Desvinculados e não designados"

A agência, no entanto, aponta dois "fatores de pressão" adicionais que estão a impulsionar o êxodo de cidadãos egípcios: a repressão dos direitos humanos e a "situação de segurança", uma referência à campanha antiterrorista na península do Sinai.

Desde o golpe de Estado de 2013, Abdel Fattah al-Sisi, um antigo general, reforçou o seu controlo do poder, alargou as suas prerrogativas presidenciais e aprofundou o papel dos militares na vida civil, suscitando acusações de clientelismo, compadrio e corrupção.

Consequentemente, organizações como a Freedom House, a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional descrevem o Egito como um país autoritário, onde a liberdade de expressão e de reunião é legalmente reconhecida, mas severamente restringida na prática. 

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Os tribunais, os meios de comunicação social e o setor privado são subservientes ao Estado e a discriminação contra as minorias, como as pessoas LGBTQ+, os cristãos coptas, os xiitas e as pessoas de cor, é generalizada. O recurso à tortura e ao desaparecimento forçado contra críticos políticos e dissidentes também causou alarme internacional.

Durante a conferência de imprensa que deu com al-Sisi, von der Leyen prometeu "promover a democracia e os direitos humanos", mas não entrou em mais pormenores.

Um porta-voz da Comissão Europeia afirmou que os direitos humanos fazem parte das relações entre a UE e o Egito desde a entrada em vigor do Acordo de Associação, em 2004, e que continuarão a fazer parte da parceria reforçada.

"Há muitas questões que têm de ser tratadas e que exigem que trabalhemos com o Egipto. Não podemos fingir que este país não existe nem podemos simplesmente ignorá-lo", afirmou o porta-voz, salientando o trabalho efetuado para levar ajuda à Faixa de Gaza.

Os cinco mil milhões de euros de empréstimos concessionais serão desembolsados ao abrigo de "reformas políticas", explicou o executivo, mas a utilização final deste dinheiro, que será transferido diretamente para o Tesouro egípcio, será "desvinculada e não designada", o que significa que o Governo terá uma margem de manobra confortável para gastar.

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From right to left: Karl Nehammer, Kyriákos Mitsotákis, Ursula von der Leyen, Abdel Fattah al-Sissi, Níkos Christodoulídis, Alexander De Croo an Giorgia Meloni.
From right to left: Karl Nehammer, Kyriákos Mitsotákis, Ursula von der Leyen, Abdel Fattah al-Sissi, Níkos Christodoulídis, Alexander De Croo an Giorgia Meloni.European Union, 2024.

Esta grande aposta tem falhas, diz Claudio Francavilla, diretor adjunto da Human Rights Watch, porque está demasiado centrada na luta contra o tráfico de seres humanos e não aborda o declínio do Estado de direito, que contribuiu para a turbulência económica e afastou os investidores do país. Tanto a declaração do FMI como a da UE referem a necessidade de restabelecer a "confiança" para que o investimento estrangeiro possa regressar.

"A crise económica no Egipto está profundamente ligada à crise dos direitos humanos", disse Francavilla à Euronews.

"O Egipto tem uma liderança militar autoritária que estrangula todos os aspetos da vida no país, incluindo a economia, e que, através da repressão, se livrou de tudo o que se assemelha a controlos e equilíbrios no poder. A próxima crise está mesmo ao virar da esquina", acrescentou.

Sara Prestianni, diretora de advocacia da EuroMed Rights, uma rede de direitos humanos, apelou ao bloco para fazer uma ligação "clara" entre os pagamentos e o Estado de direito. Caso contrário, a parceria "corre o risco de ser apenas uma legitimação da deriva autoritária que caracteriza o regime de al-Sissi. Portanto, todos estes tipos de reformas, toda esta cooperação, devem estar estritamente ligados a condições de respeito pelos direitos fundamentais do Estado de direito".

Mesmo que a economia egípcia encontre uma base estável e que os cidadãos egípcios tenham menos razões para abandonar o seu país, como Bruxelas espera com o plano multibilionário, a questão do destino dos sudaneses e de outras nacionalidades que procuraram refúgio no país ou que transitam pelo seu território continua por resolver.

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A pressão europeia no sentido de diminuir as partidas irregulares pode encorajar as autoridades egípcias a redobrarem os seus "instrumentos repressivos", adverte Andrew Geddes, diretor do Centro de Política de Migração do Instituto Universitário Europeu (EUI), levando a um maior sofrimento para aqueles que se sentem em nações devastadas pela guerra.

"Os requerentes de asilo no Egipto dependem muito da assistência humanitária, vivem em condições muito más e têm elevados níveis de desemprego. É improvável que os recursos disponibilizados pela UE sejam direcionados pelas autoridades egípcias para melhorar esta situação", disse Geddes à Euronews, chamando à parceria um "acordo transacional".

"A situação dos requerentes de asilo e dos refugiados no Egipto pode deteriorar-se e, para aqueles que tentam deslocar-se, as viagens podem tornar-se ainda mais perigosas e mortais"m concluiu.

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