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Falta de médicos, salários baixos e horas extraordinárias: hospitais europeus enfrentam dificuldades

Nos últimos meses, os trabalhadores do sector da saúde protestaram em França, na Alemanha, na Eslovénia e na Suécia.
Nos últimos meses, os trabalhadores do sector da saúde protestaram em França, na Alemanha, na Eslovénia e na Suécia. Direitos de autor Gero Breloer/AP2011
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De  Amandine Hess
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Artigo publicado originalmente em inglês

A Europa está a sofrer uma crise nos cuidados de saúde, que está a levar à declaração de greves na Alemanha, Eslovénia e Suécia. Entretanto, em França, uma reforma polémica do ensino da Medicina está a revoltar estudantes e médicos.

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Os hospitais de toda a Europa parecem estar a viver de forma precária. Quer seja em França, na Eslovénia ou na Suécia, os hospitais enfrentam escassez de pessoal, salários baixos e mais horas extraordinárias, o que leva a ações de protesto em todo o setor da saúde que, inevitavelmente, tem impacto nos cuidados prestados aos doentes.

Na Suécia, os trabalhadores do setor da saúde entraram em greve pela primeira vez em 16 anos, para protestar contra a elevada carga horária e os baixos salários, durante 78 dias consecutivos em 2024.

As greves são menos nos países nórdicos do que noutras partes da Europa, mas após quatro meses a tentar negociar acordos coletivos, a Associação Sueca de Profissionais de Saúde decidiu entrar em greve entre 11 de abril a 28 de junho.

"Chegámos a um beco sem saída nas negociações", diz Sineva Ribeiro, presidente da Associação Sueca de Profissionais de Saúde, um sindicato com 114 mil membros e que representa enfermeiros, parteiras, cientistas biomédicos e radiologistas. "Tivemos de entrar em greve. Tínhamos de entrar em conflito".

"Em 2023, eles (membros da associação) fizeram três milhões de horas extraordinárias", disse Ribeiro, explicando que também foi declarada uma greve às horas extraordinárias. "Por isso, sabíamos que havia falta de enfermeiros, parteiras, radiologistas e enfermeiros de raios X."

No fim, a Associação Sueca de Profissionais de Saúde conseguiu uma redução do horário de trabalho para 10% dos membros (os que fazem turnos noturnos), um aumento salarial de 3,05% e um acordo para que os empregadores paguem as especializações dos enfermeiros.

Por outro lado, o sindicato concordou em deixar de reivindicar a redução do horário de trabalho semanal do pessoal médico, de 40 para 37 horas.

De uma forma mais geral, a deterioração das condições de trabalho é considerada um dos principais fatores que levam os profissionais de saúde a abandonar a Suécia e a ir para os países vizinhos.

"Temos cerca de 20.000 enfermeiros a trabalhar na Noruega, porque pagam mais e têm menos horas de trabalho por semana", afirmou Ribeiro.

Além disso, 13.000 enfermeiros qualificados abandonaram a profissão, deixando um buraco negro de mais de 60 milhões de euros, financiado pelos contribuintes, de acordo com um relatório do Conselho Nacional de Competência em Saúde da Suécia, publicado em junho.

"A situação (na Suécia) é talvez melhor do que noutros países da UE", disse Ribeiro. "Mas continuamos a ter uma grande falta de enfermeiros para tratar da saúde da população. E nunca sabemos quando pode surgir a próxima pandemia."

"Uma bomba-relógio"

Mas a realidade é que existe um problema semelhante em toda a União Europeia.

Os hospitais públicos dos países do bloco são confrontados com desafios paralelos, incluindo o envelhecimento da população, que vai necessitar de mais cuidados de saúde, e a dificuldade em substituir os profissionais de saúde que se reformam porque a profissão já não é tão atrativa como antes.

"Há um aumento da procura, basicamente devido a quatro fatores principais: o envelhecimento da população, o aumento da multimorbilidade e das doenças crónicas, os atrasos acumulados durante a pandemia da Covid-19 em termos de lista de espera e também o aumento das expetativas dos pacientes", explicou Tomas Zapata, conselheiro regional para a força de trabalho de saúde e prestação de serviços na Europa da Organização Mundial da Saúde (OMS).

O setor da saúde dos países europeus estão a enfrentar uma crise de mão-de-obra, evidenciada pelas greves de diferentes profissionais de saúde.

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"Temos mais médicos e enfermeiros do que nunca. Nos últimos 10 anos, houve um aumento de 20% do número de médicos em toda a região e um aumento de 10% do número de enfermeiros. No entanto, a procura está a crescer a um ritmo mais rápido. Isso significa que estamos a ter esta escassez, um fosso entre a procura e a disponibilidade de profissionais de saúde", afirmou Tomas Zapata.

Um relatório regional publicado pela OMS, em setembro de 2022, alertou para uma "bomba-relógio" que ameaça os sistemas de saúde da Europa e da Ásia Central.

O relatório diz que um dos principais desafios é o envelhecimento da mão-de-obra no setor, referindo que 40% dos médicos em 13 dos 44 países analisados já têm 55 anos ou mais.

O relatório também salienta a situação saúde mental dos profissionais, afetada por longos horários de trabalho, apoio profissional inadequado e grave escassez de pessoal.

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Em alguns países, mais de 80% dos enfermeiros relataram episódios de sofrimento psicológico causado pela pandemia da Covid-19. De acordo com o relatório, nove em cada 10 enfermeiros estavam a pensar em abandonar o emprego.

Todas estas questões levam os médicos e outros profissionais de saúde de toda a Europa a entrar em greve, numa tentativa de obter melhores condições de trabalho.

Diplomados em medicina dentária por 100 000 habitantes nos países europeus em 2022 (Eurostat).
Diplomados em medicina dentária por 100 000 habitantes nos países europeus em 2022 (Eurostat).Eurostat

Alemanha exige cuidados de saúde de primeira qualidade

Em janeiro, milhares de médicos de hospitais universitários estatais na Alemanha fizeram greve depois de as negociações coletivas com os gestores dos hospitais terem falhado.

Cerca de 5.000 médicos aderiram a uma "greve de aviso", organizada pelo Marburger Bund na cidade de Hanover, no norte do país, segundo o sindicato.

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O sindicato exigiu um aumento salarial de 12,5% e prémios mais elevados para os 20.000 médicos dos hospitais universitários que trabalham à noite, aos fins-de-semana e nos feriados.

Os médicos voltaram a sair à rua em março, depois do fracasso da quarta ronda de negociações com os 16 Estados federados (Länder) que gerem os hospitais públicos. Segundo o Marburger Bund, cerca de 7000 médicos de 23 instituições de toda a Alemanha participaram, desta vez, em diversas manifestações.

"Não podemos aceitar que a medicina universitária continue a ser a última roda da carroça em termos de salários dos médicos", declarou Andreas Botzlar, segundo presidente do Marburger Bund, em comunicado.

"A recente ronda de negociações deixou-nos com a impressão de que os Länder ainda não perceberam o que está em causa: estamos a exigir condições justas para uma medicina de topo. Não mais - mas também não menos", acrescentou.

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Eslovénia assiste à mais longa greve de sempre dos médicos

Os médicos e dentistas que trabalham no serviço público de saúde esloveno entraram em greve em janeiro, naquela que se tornou a greve de médicos mais longa de sempre no país.

Retiraram o seu consentimento para o trabalho extraordinário, numa tentativa de pressionar o governo a honrar os compromissos relativamente a uma reforma da saúde anteriormente apresentada e a voltar à mesa das negociações.

Em 2023, a Fides, o sindicato dos médicos e dentistas, assinou um acordo com o Governo para criar um pilar salarial separado na tabela salarial do sector público para os profissionais de saúde, mas tal nunca se concretizou.

"Os funcionários estão a abandonar as instituições públicas e os bons pediatras estão a ser penalizados pela sua vontade de ajudar o sector público", declarou Damjan Polh, presidente da Fides, em comunicado. "As promessas de reformas continuam por cumprir e as leis no domínio da saúde são escritas por quem não percebe nada do assunto."

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O governo adoptou uma proposta de alteração da Lei dos Serviços Médicos, que estabeleceria um tempo mínimo de trabalho durante uma greve "para garantir o funcionamento estável do sistema de saúde".

A Fides recorreu ao Tribunal Constitucional da Eslovénia para questionar a constitucionalidade e a legalidade de tal medida. De acordo com o sindicato, esta medida "restringiria ainda mais o direito à greve dos médicos".

Recentemente, em agosto, o sindicato informou o governo esloveno de novas exigências de greve para proteger a profissão médica.

Médicos protestam durante uma greve nacional, em Paris, a 5 de janeiro de 2023.
Médicos protestam durante uma greve nacional, em Paris, a 5 de janeiro de 2023.Francois Mori/Copyright 2023 The AP. All rights reserved

Reforma polémica em França

Em França, uma medida de natureza diferente provocou a indignação dos estudantes de medicina: este outono, haverá menos 1.510 vagas para médicos em formação.

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Este ano, serão abertas apenas 7.974 vagas, contra 9.484 em 2023, segundo dados oficiais do Governo de julho.

Em França, os médicos em formação, ou "internes en médecine", são estudantes de medicina que concluíram o sexto ano de estudos de um total de 12. Trabalham a tempo inteiro num hospital ou noutra instituição médica sob a supervisão de um sénior, enquanto prosseguem os seus estudos.

"Estamos todos muito assustados (...) O trabalho nos hospitais é muito difícil, é muito exigente mental e fisicamente para os médicos em formação", disse Marie, que está a terminar o seu sexto ano de estudos médicos. "E agora vamos ser menos no outono e a carga de trabalho não vai diminuir".

De acordo com o governo, o número de vagas foi reduzido porque o número de candidatos que participaram nos exames de admissão competitivos para ganhar as vagas também diminuiu.

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No entanto, os números suscitaram dúvidas entre os sindicatos.

"Todos os anos, há uma adaptação das vagas em função do número de médicos em formação que se candidatam", afirmou Agnès Ricard Hibon, porta-voz do sindicato SAMU Urgences de France. "Exceto que, neste caso, houve muito mais pessoas a refazer o ano".

As especializações médicas serão afetadas em diferentes graus: os postos de trabalho em medicina geral e oftalmologia deverão sofrer uma redução de 18%, ao passo que haverá menos 15% de vagas em medicina de urgência.

"Há algumas disciplinas, como a cirurgia plástica, que são mais afetadas. Outras estão preservadas, como a pediatria ou a cirurgia pediátrica, porque há uma necessidade enorme", disse Hibon.

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No entanto, alguns alunos afirmam que muitos dos seus colegas optaram por repetir o ano e reprovaram nos exames de propósito, já que foram a primeira coorte a fazer os exames de admissão de colocação que foram introduzidos por uma reforma contestada dos estudos médicos em 2020. Alegaram que não queriam ser um grupo de "teste de colisão".

No entanto, Hibon afirma que a diminuição do número de médicos em formação não deverá ter um grande impacto nos hospitais: "Eles são sistematicamente supervisionados por médicos seniores. Não são eles que dirigem os serviços.

Por outro lado, alguns estudantes lançaram uma petição online pedindo a reabertura de vagas para médicos em formação, que recebeu mais de 57.000 assinaturas até setembro.

A petição afirma que as múltiplas reformas académicas e as mudanças na forma como são avaliados e classificados afetaram negativamente os seus resultados e a sua saúde mental.

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Como resultado, cerca de 1000 estudantes optaram por repetir o quarto e o quinto ano e 400 outros estudantes reprovaram no concurso, afirma a petição, acrescentando que certos cargos também se tornaram mais competitivos.

"Um estudante que queira efetuar um estágio em Cirurgia Digestiva em Paris tem de estar classificado entre os 23% melhores da sua turma, contra 35% no ano passado", refere a petição.

Acrescenta que, consequentemente, muitos estudantes serão obrigados a escolher uma disciplina mais fácil de entrar, mas na qual não estão necessariamente investidos.

Marie, estudante de medicina, adverte que alguns estudantes preferem terminar os seus estudos no estrangeiro a desistir das suas ambições.

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Diplomados em medicina por 100 000 habitantes em 2022 nos países europeus.
Diplomados em medicina por 100 000 habitantes em 2022 nos países europeus.Eurostat

Para compensar, a França poderá ter de importar médicos estrangeiros na direção oposta. "É possível que haja mais vagas para médicos estrangeiros que queiram vir fazer a sua formação em França", diz Hibon.

No entanto, os estudantes de medicina franceses consideram esta solução injusta, tanto para eles como para os médicos estrangeiros que possam vir para cá. "Os médicos estrangeiros também estão a ser enganados, porque são menos bem pagos do que nós e, por isso, também estão a ser explorados", afirma Marie.

De um modo mais geral, o debate tem lugar numa altura em que todo o sector médico em França sofre de uma deterioração da saúde mental e das condições de trabalho - exaustão, horas extraordinárias, falta de supervisão, concorrência, responsabilidades importantes e baixos salários - exacerbada pela pandemia de covid-19.

Todos estes desafios têm vindo a surgir há anos em toda a Europa, mas pode haver esperança no horizonte para os hospitais do continente através da Declaração de Bucareste sobre a força de trabalho no sector da saúde e dos cuidados, que os representantes da OMS Europa adoptaram em 2023.

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A declaração apela à ação política para melhorar o recrutamento e a retenção de profissionais de saúde e de prestação de cuidados, melhorar os mecanismos de oferta de mão de obra no sector da saúde, otimizar o desempenho da mão-de-obra e aumentar o investimento público na educação.

No entanto, ainda não se sabe como é que os países irão implementar a declaração na prática e, independentemente disso, os riscos são elevados: um médico que se debate com a deterioração das condições de trabalho terá certamente um impacto negativo na qualidade dos cuidados.

"Quando um prestador de cuidados é maltratado, sabemos que 10 doentes são maltratados a seguir", afirmou Marie.

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