Médico responsabiliza Bolsonaro por tragédia histórica no Brasil

O médico Drauzio Varella, um dos mais respeitados comentadores e analistas de questões sanitárias no Brasil, afirmou, em entrevista ao jornal The Guardian, que "a história vai atribuir" a Jair Bolsonaro "uma culpa" que o também escritor "não queria de todo" ter nos ombros por causa da Covid-19.
O também escritor, de 77 anos, responsabiliza o Presidente do Brasil por uma "tragédia histórica", como definiu o jornal britânico o cenário previsto por Varella para o maior país da América do Sul, vítima de uma politização da pandemia que já custou o lugar a dois ministros da Saúde.
"Porque no Brasil já somos o terceiro país do mundo em termos de mortos, em breve vamos tornar-nos no segundo e chegar perto do nível de mortalidade dos Estados Unidos, que tem 330 milhões de habitantes, cerca de 60% mais que o Brasil", precisou Varella, considerando que "a situação não podia ser pior".
O médico diz ter a sensação de que "o Brasil está a viver numa tragédia". "E esta tragédia vai ser muito mais severa para os mais pobres", avisou Drauzio Varella, referindo-se aos milhões de brasileiros que vivem sem condições dignas de vida como é o caso das favelas.
De acordo com os dados compilados esta sexta-feira pelo portal G1 da Globo junto das Secretaria de Estado da Saúde, o Brasil soma atualmente 621.877 casos de infeção registados, só superado pelos 1,8 milhões dos EUA, e pelo menos 34.212 mortos no quadro da pandemia, apenas abaixo dos 108 mil dos EUA e dos 40 mil do Reino Unido.
O jornal Folha de São Paulo estima haver neste momento uma pessoa a morrer no Brasil a cada minuto.
Tragédia podia ter sido evitada
Drauzio Varella considera que uma tragédia desta gravidade poderia ter sido evitada se o Governo de Jair Bolsonaro tivesse reagido de forma diferente à pandemia que atingiu o Brasil depois de já ter atingido de forma dram1atica diversos outros países, na Ásia e na Europa.
"O nosso país teve tempo para se preparar para a epidemia e não o fez. Quando a a epidemia chegou, foram tomadas algumas medidas que podiam ter tido impacto em termos de isolamento, mas isto foi torpedado pelo governo federal", acusou o médico.
Para Varella, os líderes políticos do país, nomeadamente o governo central e os governos estaduais, enviaram "sinais conflituosos" para os cerca de 210 milhões de cidadãos brasileiros. Os responsáveis locais promoveram a necessidade de isolamento social e de cortar as cadeias de infeção. O governo federal a privilegiar a economia sobre a saúde.
"Este foi um ponto de vista ridículo", acusou Varella, acrescentando que a postura do governo de Bolsonaro "provocou um resultado muito complicado para o país".
"E estamos agora a colher os resultados desta política de antagonismo, de politização da epidemia, e que é a pior situação possível", disse o médico, responsabilizando diretamente o Presidente.
"Não é que estejamos a ter um debate ideológico. Não. O Presidente tem ido simplesmente para a rua todos os fins de semana, atraindo multidões sem usar máscara e desafiando a necessidade de isolamento. Esta tornou-se a política governamental", resumiu.
A instabilidade política do país também não ajuda na resposta à epidemia, contrastando com o sucedido em 2015 com a epidemia do vírus Zika ou com a sida (HIV) há mais de duas décadas.
"Perdemos dois ministros da Saúde durante esta crise e agora temos um ministro interino. Isto não aconteceu em mais nenhum sítio do mundo", apontou Varella, referindo-se a Eduardo Pazuello, o general que tem vindo a preencher o Ministério da Saúde com militares.
Bolsonaro tem vindo a bater-se pelo fim dos confinamentos nos diferentes estados do Brasil e a promover o regresso ao trabalho dos brasileiros para que, alega, não morram de fome.
Esta sexta-feira, o Presidente inaugurou um hospital de campanha em Goiás, um dos estados mais afetados pela Covid-19, e desejou que a unidade tenha pouca procura; o que seria bom sinal, mas não perdeu a oportunidade para atacar quem o critica.
"Agora estamos vendo um grupo de criminosos terroristas se movendo para quebrar o Brasil", afirmou o chefe de Estado brasileiro, considerando estar a ser ameaçado pelos protestos antifascistas e antirracistas convocados para várias cidades do país no próximo domingo.
Jair Bolsonaro também classificou os manifestantes que se opõem ao seu Governo como "preguiçosos" e "viciados em drogas". "São geralmente criminosos, terroristas, viciados em drogas, pessoas preguiçosas que não sabem o que é a economia, não sabem o que é trabalhar para ganhar o pão diário", afirmou.
Drauzio Varella considera esta postura do Presidente um erro e avisou que a reabertura da economia ameaça agravar "uma crise já muito profunda".
"A verdade é que estamos a relaxar (as medidas) num momento em que o número de infeções está em pleno crescimento e sem qualquer segurança", disse e deixando um aviso: "Vamos pagar o preço do que está a acontecer agora, com mais pessoas nas ruas, multidões".
"Em duas ou três semanas, o número de infetados vai aumentar. Não há magia. Não há solução nem nada que nos permita antever um Brasil diferente", alertou.
Donald Trump critica Brasil e Suécia
Também o Presidente dos Estados Unidos, em quem Bolsonaro parece querer inspirar-se, não poupou hoje a gestão da epidemia seguida pelo governo brasileiro.
Tentando explicar também o que muitos não conseguem perceber, Donald Trump diz ter conseguido salvar "possivelmente dois milhões ou 2,5 milhões de pessoas" ao não er feito como o Brasil ou a Suécia e ter decidido fechar os EUA, o que os especialistas de saúde norte-americanos alegam ter sido demasiado tarde.
"Se considerarmos que estamos com 105 mil mortos hoje em dia (n.: já são mais de 108 mil), o número de vítimas teria sido pelo menos 10 vezes maior. Se se olhar para o Brasil, vemos as dificuldades. Eles estão a seguir o exemplo da Suécia, que também está a atravessar um momento terrível. Se tivéssemos feito o mesmo, teríamos perdido mais um milhão, um milhão e meio ou talvez até dois milhões de vidas", afirmou Trump.
O deputado federal brasileiro Alessandro Molon não deixou passar em claro a crítica nas entrelinhas de Trump a Bolsonaro.
"Trump acaba de dar uma forte pancada em Bolsonaro! Disse que, se tivesse agido como o Brasil, os EUA chegariam a 2,5 milhões de mortos. Até o aliado de Bolsonaro reconhece a desgraça que é o governo! Bolsonaro envergonha o Brasil. Precisamos voltar a ser um bom exemplo pro mundo", escreveu no Twitter o deputado federal pelo Rio de Janeiro.