O chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, falou com a Euronews sobre o papel internacional da União Europeia e dos desafios que o bloco comunitário enfrenta para se afirmar como potência mundial.
Há exatamente dez anos, o Serviço Europeu para a Ação Externa foi criado com um objetivo: a Europa ter mais peso no mundo e falar a uma só voz. Essa voz é atualmente representada por Josep Borrell, o chefe da diplomacia europeia.
Hoje, no campo da política externa, sâo muitas as frentes abertas da União Europeia (UE), desde a reconstrução das relações com os Estados Unidos, ao estabelecimento das regras do jogo com a China, até aos desafios que estão a ser colocados pela Turquia
No momento em que celebra o primeiro aniversário à frente do cargo, o alto representante da UE para os Negócios Estrangeiros falou, em Bruxelas, com a Euronews sobre o papel da Europa no mundo e os desafios que enfrenta para se afirmar como potência mundial.
Ana Lázaro Bosch, Euronews : Imagino que falar a uma só voz não tenha sido fácil, para começar, porque existem 27 Estados-Membros com opiniões muitas vezes divergentes, e sobretudo porque um país pode vetar uma decisão. Acredita que a União Europeia será capaz de evitar esta cacofonia dos 27?
Josep Borrell: Falar a uma só voz parece-me demasiado ambicioso. Ficaria satisfeito se fôssemos um coro bem afinado, porque o importante não é tanto que haja apenas uma voz, mas que todas as vozes sigam a mesma partitura, ainda que cada uma com a sua tonalidade própria.
A.L.B.: E quando fala deste pequeno coro, quer dizer que seria a favor da passagem à maioria qualificada? Em que áreas? Em todas?
J.B.: Para mim, em todas elas, não só na política externa, mas também na política fiscal. A harmonização fiscal nos orçamentos que agora também têm de ser aprovados por unanimidade. Pode imaginar os empurrões e o equilíbrio que são precisos para fazer todos felizes.
A.L.B.: Mas e a política externa?
J.B.: Em termos de política externa, estou ciente de que ninguém vai declarar guerra se não concordar em fazê-la. Felizmente, porém, não estamos a declarar guerra, mas essencialmente a decidir missões para ajudar a trazer a paz ou para impor sanções àqueles que violam o direito internacional. Por conseguinte, não deve ser tão difícil fazê-lo, não necessariamente por unanimidade. Dessa forma, evitaríamos meses de discussões que por vezes não chegam a lado nenhum.
A.L.B.: Exerce esta função há exatamente um ano e tem falado frequentemente sobre autonomia estratégica. Diz que é importante para a Europa. Em que deve consistir essa autonomia estratégica?
J.B.: Numa capacidade de agir sozinho quando necessário. Qual é o oposto de autonomia? Dependência, certo? Ou se é autónomo ou dependente. Alguém quer ser dependente? Não me parece. Uma entidade política como a Europa não deve pretender ser dependente, mas sim autónoma.
A.L.B.: Falemos de algo específico, porque esta autonomia estratégica tem muitos aspetos possíveis na defesa, mas para nos aproximarmos dos cidadãos, será a autonomia tecnológica, por exemplo, o desenvolvimento das redes 5G, algo em que a Europa pode recuperar o atraso, ou vamos continuar a depender de outras potências?
J.B.: Vai depender do que fizermos. Ser trabalhador por conta própria tem o seu custo. O jovem que sai de casa para se tornar autónomo tem de enfrentar o pagamento da renda, porque já não vive com a mãe e o pai. A autonomia tem um custo. Chegar à idade adulta requer assumir responsabilidades e o mesmo se aplica à Europa. A autonomia não é livre. Se quisermos viver sob a proteção dos Estados Unidos de um ponto de vista militar, é certamente mais barato, mas também é certo que estamos dependentes. Se quisermos ser autónomos, vamos ter de pagar as próprias despesas. E, em termos de desenvolvimento tecnológico, provavelmente não fazemos o suficiente para manter a nossa própria capacidade de ação. É isso que significa autonomia. A China tem a experiência histórica de ter perdido a revolução industrial e de ter sofrido um século de humilhação. E sabe perfeitamente que a supremacia tecnológica é fundamental no mundo. Sempre o foi, mas agora mais do que nunca. E está a fazer tudo o que pode para tê-la. E nós, que a tivemos até agora, corremos o risco de a perder se não investirmos o suficiente na inovação, no desenvolvimento; ou se confiarmos nas tecnologias que outros nos fornecem.
Joe Biden e o regresso ao multilateralismo
A.L.B.: Falemos das relações entre a União Europeia e os Estados Unidos. Bruxelas deposita grande esperança na eleição de Joe Biden, após quatro anos de turbulência com Donald Trump. Tem estado a trabalhar precisamente no documento que pretende apresentar aos Estados Unidos para trabalhar de forma coordenada. Qual é o ponto-chave desse documento?
J.B.: A ideia principal é que queremos fazer novamente do multilateralismo o instrumento orientador da política internacional.
A.L.B.: Imagino que com os Estados Unidos haverá algumas questões mais fáceis de chegar a acordo, como o clima, mas há outras que são mais difíceis, como o comércio, depois da guerra tarifária que temos vivido. Pensa que o protecionismo veio para ficar?
J.B.: Ele ainda não chegou. Neste momento o que temos não é protecionismo. O protecionismo pode dar muito.
A.L.B.: Mas nos Estados Unidos vimos sinais importantes...
J.B.: Mas sem muito sucesso, porque toda a guerra comercial que Trump começou com a China não o ajudou a diminuir o seu défice comercial com a China, que aumentou. Se o objetivo era reduzir o défice comercial, não teve sucesso. O que significa que as coisas não são tão simples como se possa pensar e dizer: “tenho um défice comercial, então aumento as tarifas”. Não funciona, porque isso causa reações e essas reações podem ter um efeito contrário.
A.L.B.: Mas a América mudou, de qualquer forma...
J.B.: Sim, seria um erro pensar que não ocorreram mudanças profundas e estruturais na sociedade americana, das quais Trump pode ter sido o expoente, o acelerador, o catalisador, ou a consequência, não necessariamente a causa. Mas voltando à autonomia estratégica. Não temos de ser autónomos por causa de Trump. Já falávamos nisso antes de Trump e vamos ter de continuar a falar depois.
Relações com a China: uma balança em desequiíbrio
A.L.B.: E em relação à China, Donald Trump queria levar a Europa ao confronto. Acha que as coisas podem agora ser construídas de outra forma com Joe Biden?
J.B.: Estou certo de que sim. Tenho a certeza de que a forma será diferente. Mas também é verdade que a atitude da América em relação à China está para lá das questões partidárias, entre os republicanos e democratas. Os democratas também têm uma tendência protecionista.
A.L.B.: Era aí que eu queria chegar...
J.B.: Eles também são. Não creio que o sentimento essencial de que as relações económicas e comerciais com a China precisam de ser equilibradas seja exclusivo dos republicanos, ou do Trump, ou dos americanos. Penso que existe um sentimento no mundo ocidental de que é necessário restabelecer um certo nível de igualdade nas nossas relações com um país que ainda se apresenta como um país em desenvolvimento.
A.L.B.: E que é agora um rival sistémico da União Europeia.
J.B.: Sim, o que não significa que tenhamos de estar sistematicamente em competição. São duas coisas diferentes. Um rival sistémico é um sistema rival e uma rivalidade sistémica significa estar sempre em desacordo em todas as questões. E isso não acontece.
A.L.B.: O que pode a União Europeia fazer para permitir que as empresas europeias invistam de forma eficaz em igualdade de condições na China?
J.B.: Conseguir um acordo que o permita. É isso que estamos a negociar, um acordo de investimento. É verdade que, para investir na China, estamos sujeitos a muitas condições e a China está sujeita a nenhuma ou a quase nenhuma na Europa. Isto não nos pareceu mal até agora, mas agora já parece, porque vemos as consequências e estamos a negociar acordos que, como eu disse, irão restabelecer – aliás, estabelecer - um certo equilíbrio, que nunca houve. Isso vai depender, contudo, do interesse da China em manter esta relação connosco, que também a beneficia. É claramente do interesse da China que as nossas empresas invistam lá.
A.L.B.: E, por causa destes acordos comerciais, o problema dos direitos humanos pode ser ignorado? Vimos a situação em Hong Kong, a situação da minoria Uighur...
J.B.: Não as esquecemos. Recordamo-las sistemática e permanentemente sempre que falamos com a China, a todos os níveis, seja ao meu nível com o meu colega, ao nível do ministro, do presidente do Conselho, ou da presidente da Comissão. Essas questões estão na ordem do dia.
**A.L.B.: Mas são levadas à mesa de negociações? **
J.B.: Elas são colocadas na mesa das considerações. Ou seja, há coisas que um não negoceia se o outro não quiser, mas queremos que as questões dos direitos humanos e das liberdades sejam uma parte importante da nossa agenda, são sempre.
O Irão e o futuro do acordo nuclear
A.L.B.: Avancemos para outra parte do mundo, ao Irão. Acha que é possível trazer os Estados Unidos de Joe Biden de volta ao acordo nuclear em que a União Europeia trabalhou tão arduamente?
J.B.: Creio que me recordo de, durante a campanha eleitoral, o então candidato e agora presidente eleito ter expressado a intenção de o retomar, de voltar ao acordo nuclear com o Irão.
A.L.B.: Mas está preocupado com o assassinato a que assistimos há poucos dias, no Irão, de um cientista sénior que trabalhava neste programa nuclear? Acha que pode fazer descarrilar o diálogo?
J.B.: Quem quer que o tenha feito não o fez certamente para facilitar o diálogo. Há com certeza pessoas interessadas em que esse acordo não sobreviva, muitas pessoas interessadas em que o acordo não sobreviva. A Europa tem estado muito interessada na sua sobrevivência. Coube a mim mantê-lo vivo, um pouco hibernado, mas não morreu. E agora temos também de ver o que pensam os iranianos, porque os iranianos podem, com razão, sentir-se desapontados. E talvez não queiram as mesmas condições. Vamos ter de aguardar.
A.L.B.: O Irão tem como alvo o seu suspeito do costume: Israel. Vai na mesma direção?
J.B.: Não tenho mais informações do que as que posso comentar em público.
A influência europeia no Médio Oriente e em África
A.L.B.: Globalmente, parece que a União Europeia perdeu influência no Médio Oriente. Temos visto os Estados Unidos promoverem um acordo entre Israel e os Emirados Árabes, com o Bahrein. A União Europeia congratulou-se com este facto. Mas onde estão os palestinianos em tudo isto?
J.B.: Acreditamos que a normalização das relações de Israel com os países árabes faz parte da normalização das relações entre todo o mundo complexo do Médio Oriente. Por conseguinte, saudamo-los. Isso não significa que pensemos que essa seja a solução. Mas pensamos que ajuda. Isso não significa que nos esqueçamos da situação dos palestinianos. Pelo contrário, talvez sejamos nós, a União Europeia, quem, no mundo atual, mais está a ajudar a Autoridade Palestiniana.
A.L.B.: A União Europeia ainda tem cartas a dar?
J.B.: Financeiramente, sem nós, a Autoridade Palestiniana teria deixado de existir. Mas não só do ponto de vista do fornecimento de fundos, que é muito importante, - são 600 milhões por ano - mas também em termos de apoio político. Mas isso só se pode conseguir se regressarmos à mesa de negociações. Isso não foi possível com a administração Trump, porque as suas abordagens eram - e nós dissemo-lo - demasiado desequilibradas de um lado. Não foram, e certamente nunca teriam sido, úteis para uma negociação digna desse nome. E nós na Europa temos apenas um objetivo, que é o de reabrir negociações com base no respeito pelo direito internacional e pelas resoluções das Nações Unidas.
A.L.B.: Falando da influência da União Europeia no mundo, existem também - atrevo-me a dizer - lacunas em relação a África. Tomemos um exemplo: o conflito na Líbia. A Rússia está muito presente. A Turquia está muito presente. Onde fica a Europa?
J.B.: A Rússia e a Turquia estão presentes com tropas no território. Não com as suas tropas regulares, mas com uma intervenção militar que é reconhecida através de procuradores. Não têm soldados fardados, isso já não está na moda, mas é evidente que existe uma intervenção que vai além da arena diplomática. Esse não é o nosso caso. Não temos, nem queremos, uma presença militar no terreno. Estamos simplesmente, e muito, a fazer o nosso melhor para conduzir um processo político que, por acaso, está a dar frutos. Não quero estar a puxar de galardões, mas contribuímos com algo para o diálogo político entre as partes em conflito na Líbia. As Nações Unidas também já o fizeram. A única solução na Líbia é os líbios chegarem a acordos entre si, porque um lado não vai vencer o outro, e [o país] tornou-se num campo de batalha para as outras potências. Cada um tem os seus peões no território.
A Rússia e a Turquia têm hoje uma influência no Mediterrâneo central que não existia há cinco anos. Um pouco como o que aconteceu na Síria e o que está a acontecer no Cáucaso, uma “astanização”, como em Astana, a cidade onde a Rússia e a Turquia chegaram a um acordo sobre a forma de partilhar a sua influência.
A.L.B.: A União Europeia está ausente de todas estas questões que menciona, em todos estes lugares. O que se passa?
J.B.: Estive ao telefone com ambos os países, ambos os ministros, durante todo o conflito e vamos continuar ao telefone. Mas a Europa não é uma só, não é uma união militar. A Europa não é uma NATO europeia. A Europa não tem vocação para intervir militarmente em conflitos que não sejam os seus. Quer sim ajudar a evitar que os conflitos se espalhem, sejam contidos e sejam resolvidos pacificamente.
A.L.B.: Ser uma facilitadora do acordos.
J.B.: O que não é pouca coisa. Facilitadora de acordos, guardiã da paz... Temos cinco mil homens e mulheres destacados em todo o mundo a manter a paz, ou a fazer o seu melhor para a manter a paz do Mali à Somália, da Jugoslávia à República Centro-Africana. Temos 17 missões militares e civis que estão lá para ajudar a manter a paz. É evidente que não vamos enviar estas pessoas para o meio de uma guerra aberta como a do Cáucaso, porque elas não têm nada que fazer lá.
Turquia: as sanções e o pacto migratório
A.L.B.: Voltemos à Turquia, que é um dos países de que estávamos a falar. Não só está presente em muitas partes do mundo, como também tem colocado sérios desafios à União Europeia no Mediterrâneo oriental. A União Europeia estabeleceu o prazo de 10 de dezembro para decidir se adota ou não sanções...
J.B.: Digamos que para rever a sua relação com a Turquia
A.L.B.: De acordo. Mas há países que estão a exercer pressão para que sejam aplicadas sanções. Vai haver sanções?
J.B.: E outros que são mais reticentes. Tudo vai depender da avaliação feita sobre o que aconteceu desde a [avaliação] anterior.
A.L.B.: Mas do seu ponto de vista, como vai a evolução? Está a melhorar ou não?
J.B.: Não tem havido grandes melhorias, mas isso cabe aos chefes de Estado e de governo decidir. Limitar-me-ei a expressar a minha avaliação dos acontecimentos.
A.L.B.: Em qualquer caso, suponho que a União Europeia é também uma prisioneira do pacto migratório que tem com a Turquia. Está a dificultar o diálogo?
J.B.: Prisioneira, não. Vejamos, este acordo, que deu origem a muitas interpretações, permitiu parar as mortes que foram produzidas por um fluxo descontrolado de migrantes. E todos vimos imagens dramáticas das consequências de um fluxo descontrolado de pessoas a tentar atravessar um mar de uma forma perigosa. Mas há três milhões, ou três milhões e meio de refugiados sírios na Turquia. Nós, na União Europeia, ajudamos com educação, saúde e alimentação para esses refugiados. Quase todo o dinheiro vai diretamente para eles.
A.L.B.: Conheço a situação, mas...
J.B.: Digo isto, porque as pessoas pensam que estamos a dar dinheiro ao governo turco. O dinheiro vai praticamente todo para os bolsos dos pobres.
A.L.B.: Mas também é verdade que é para que estes refugiados, para que estas pessoas não entrem na União Europeia. É como um serviço, não é?
J.B.: Bem, a Turquia mantém-nos no seu território. Isso tem um custo enorme. Imagine se nós em Espanha tivéssemos de acolher e cuidar de três milhões de pessoas. Não acha que isso seria um problema para a sociedade?
A.L.B.: Espanha tem acordos semelhantes, talvez não tão abertos, com Marrocos,
J.B.: Mas não temos três milhões de refugiados em casa.
A.L.B.: Mas temo-los em Marrocos, de alguma forma.
J.B.: Mas não temos três milhões, longe disso. E não é o mesmo tê-los na casa do vizinho, ou tê-los em casa, garanto-vos. Se fosse o mesmo, isso não aconteceria. Estamos a ajudar ao garantir que essas pessoas dispõem dos serviços básicos necessários. Porque é que deveria ser só a Turquia a suportar os custos de manutenção destes refugiados que lá chegaram porque era o país vizinho? Temos de os ajudar. Estamos a fazer isto para que eles não voltem para casa? A questão é muito clara: a sociedade europeia quer acolher três milhões e meio de exilados sírios no seu território? Será que quer mesmo?
A.L.B.: Então há um preço a pagar? Económico e também político.
J.B.: Tenho a sensação de que [os europeus] não querem. Portanto, teremos de encontrar uma solução alternativa.