Análise: em apenas uma semana, a União Europeia mudou para sempre

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De  Jorge Liboreiro
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Os eventos dos últimos sete dias empurraram o bloco comunitário para um novo capítulo que até recentemente seria impensável

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"A Europa será forjada nas crises e será a soma das soluções adotadas para essas crises", escreveu o diplomata francês Jean Monnet nas suas memórias, publicadas em 1976.

Em várias ocasiões, as palavras de Monnet revelaram-se extraordinariamente acertadas: desde o colapso da União Soviética à Grande Recessão, do "Brexit" à pandemia de Covid-19, a União Europeia (UE) parece ter desenvolvido uma capacidade única de se fortalecer exclusivamente em condições adversas e imprevistas.

Mas na última semana de fevereiro de 2022, a profecia de Monnet viria a ganhar um novo significado, que teria sido impensável, para alguns pelo menos, há um mês.

A invasão da Ucrânia pela Rússia injetou na UE a determinação necessária para enfrentar realmente a geopolítica adversa ao seu redor, deixando de lado quaisquer tabus e preconceitos.

Pela primeira vez na história, o bloco comunitário financiará a compra de armas letais para países que estão sob ataque, um salto quântico para uma união que foi criada originalmente para defender a paz. A Alemanha também contribuirá: o país reverteu, aliás, a política histórica e agora enviará armas para zonas de conflito.

"A invasão russa da Ucrânia marca um ponto de viragem na história", disse o chanceler alemão Olaf Scholz. "Ameaça toda a nossa ordem pós-guerra."

Os refugiados ucranianos que fogem da guerra estão agora a ser recebidos de braços abertos pelos mesmos Estados-membros que passaram os últimos sete anos a discutir uma política migratória comum baseada na solidariedade partilhada.

As ferramentas de propaganda estão a ser silenciadas, ativos financeiros no valor de biliões estão a ser congelados e os aviões russos estão proibidos de sobrevoar o território da UE, impedindo, efetivamente, a Rússia de entrar fisicamente no Ocidente.

Por estes dias, até mesmo uma tentativa ucraniana de adesão à União Europeia parece ser uma meta realista ao alcance do país.

Em tempo de guerra, já não se aplica a máxima "negócios como de costume".

"Um momento crítico"

Tudo começou na segunda-feira, 21 de fevereiro, quando o ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Dmytro Kuleba, rumou a Bruxelas numa tentativa desesperada de pedir aos parceiros europeus que aplicassem sanções preventivas à Rússia antes que o presidente Vladimir Putin desse a ordem de invadir o país vizinho com mais de 150 mil soldados.

O pedido de Kuleba caiu no vazio. "Continuaremos apoiar a Ucrânia no momento mais crítico - se isso acontecer", disse, na altura, Josep Borrell, chefe da diplomacia europeia.

Nessa mesma noite, aquele "momento crítico" aconteceu: quando os ministros da UE concluíram uma reunião e reafirmaram a abordagem de esperar para ver, Putin reconheceu a independência de duas regiões controladas por separatistas pró-Rússia no leste da Ucrânia - Donetsk e Luhansk - colocando um fim imediato ao acordo de Minsk.

Não tardou a chegar a condenação internacional e os receios de uma invasão aumentaram dramaticamente.

No dia seguinte, Josep Borrell adotou outra postura: o diplomata apresentou um conjunto de sanções contra 27 indivíduos e entidades do círculo próximo de Vladimir Putin, incluindo o ministro da Defesa e o chefe de gabinete do Presidente, juntamente com os mais de 300 membros da Duma que votaram a favor do reconhecimento das autoproclamadas repúblicas populares. Também foram apresentadas sanções financeiras e comerciais.

"As graves violações que a Rússia está a cometer não ficarão sem resposta", disse Borrell aos jornalistas.

Nesse mesmo dia, o chanceler alemão Olaf Scholz deu o passo decisivo para suspender indefinidamente a certificação do Nord Stream 2, o polémico gasoduto que liga a Rússia à Alemanha e que se tornou um grande ponto de fricção entre Berlim e os seus aliados.

Olaf Scholz, tal como Angela Merkel, defendia há anos o gasoduto como um "projeto comercial", desvinculado da geopolítica.

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À medida que as tropas russas entraram na região do Donbass, os países ocidentais ameaçaram com novas medidas de retaliação, que foram alternativamente descritas como "massivas", "sem precedentes" e "nunca antes vistas", deixando no ar muitas questões sobre o que é que se poderia seguir.

Na manhã de quinta-feira, a Europa acordou para o maior ataque militar desde a Segunda Guerra Mundial. A história mudou irreversivelmente – e a UE também.

"Falar é fácil"

Conscientes da situação sem precedentes que se desenrolava bem próximo das fronteiras externas da União Europeia, os líderes evitaram as habituais declarações, manifestando-se "seriamente preocupados", e começaram a adotar uma retórica mais assertiva, quase beligerante.

"Não permitiremos que o presidente Vladimir Putin substitua o Estado de direito pelo governo da força e crueldade", disse a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

"Esta [guerra] não é apenas contra a Ucrânia. É uma guerra contra a Europa, contra a democracia", declarou o presidente lituano Gitanas Nausėda.

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"Falar é fácil. Basta de falar por falar", disse o primeiro-ministro polaco Mateusz Morawiecki.

Nessa mesma noite, os líderes voaram para Bruxelas para se reunir numa cimeira de emergência, onde concordaram impor outro conjunto de sanções, o segundo em apenas 48 horas.

As penalidades ampliadas atingiram diretamente os setores financeiro, de energia e de transporte da Rússia, aumentaram os controlos de exportações e limitaram a emissão de vistos. Em conjunto, as medidas foram desenhadas para paralisar 70% do sistema bancário da Rússia e para cortar os fundos necessários para financiar a invasão da Ucrânia.

A manobra drástica foi, no entanto, rapidamente eclipsada pelos graves desenvolvimentos no terreno. As tropas russas começaram a cercar Kiev, colocando o governo democraticamente eleito do presidente Volodymyr Zelenskyy em risco de ser derrubado da noite para o dia.

Na sexta-feira, poucas horas depois de os líderes evitarem punir Putin pessoalmente ou expulsar os bancos russos do sistema de pagamentos SWIFT, os ministros fizeram exatamente isso. Os ativos de Putin foram congelados e a opção do SWIFT voltou à mesa, já que países como Itália, Hungria e Alemanha, que antes se opunham a uma medida tão extrema, expressaram uma súbita mudança de opinião.

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"Um de nós"

O impulso consolidou-se na noite de sábado, quando a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, se dirigiu à imprensa às 23:00 para anunciar um terceiro conjunto de sanções, em coordenação com os EUA, o Reino Unido e o Canadá.

As medidas contemplam a remoção de alguns bancos russos do sistema de pagamentos SWIFT, impedem o Banco Central da Rússia de usar a maior parte dos seus 630 mil milhões de dólares em reservas estrangeiras e colocam termo à venda de passaportes dourados, um privilégio controverso que os oligarcas russos desfrutaram livremente para fazer negócios em todo o bloco.

"Vamos tornar o mais difícil possível para o Kremlin continuar com as suas políticas agressivas", garantiu a presidente da Comissão Europeia.

No domingo, uma nova série de medidas, a quarta em menos de uma semana: a UE anunciou o envio de armas letais para a Ucrânia, a interdição de aviões russos no espaço aéreo europeu e a eliminação dos meios de comunicação social estatais russos RT e Sputnik do bloco. A Bielorrússia, um país visto como um facilitador da agressão de guerra de Putin, também será penalizado.

Mais tarde, Von der Leyen aumentou a apostas quando disse à Euronews que a Ucrânia "é um de nós", aparentemente apoiando o pedido de adesão à UE pelo qual o presidente Zelenskyy fez campanha publicamente.

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O apoio da presidente da Comissão Europeia encerrou uma semana de decisões importantes: até recentemente, as possibilidades reais de a Ucrânia ingressar no bloco eram menores do que as da Sérvia e da Turquia, dois países que, apesar de suas relações tensas com Bruxelas, ainda são considerados "candidatos" oficiais.

Independentemente da direção da guerra, a sucessão de mudanças e decisões tão abrangentes em sete dias deve deixar um impacto duradouro na UE como um todo e, particularmente, na sua política externa.

A indulgência e a complacência que caracterizaram os tempos prósperos e varriam os problemas para debaixo do tapete parecem ter terminado. A Rússia será simultaneamente um Estado pária sob sanções incapacitantes e o maior exportador de energia do bloco, pelo menos no futuro próximo.

A União Europeia que lida com esta realidade precária será mais intransigente, cínica e segura de si, atenta aos limites da diplomacia e ao fascínio do hard power. Uma união construída sobre ideais destinados a viver em um mundo cruel.

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