"Vejo a cicatriz e quero morrer": UE debate esterilização forçada de mulheres com deficiência

Rosario e o companheiro Antonio nas ruínas romanas de Itálica, em Sevilha, onde Antonio trabalha como jardineiro. - Lucía Riera e Laura Llach
Rosario e o companheiro Antonio nas ruínas romanas de Itálica, em Sevilha, onde Antonio trabalha como jardineiro. - Lucía Riera e Laura Llach Direitos de autor Lucía Riera/Laura Llach
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De  Laura Llach e Lucía Riera
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A esterilização forçada de pessoas com deficiência continua a ser legal em grande parte da União Europeia. Só nove países a criminalizam, apesar de violar a Convenção de Istambul.

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“Se não consegue cuidar de si própria, como poderá cuidar de outra pessoa?”

Rosario Ruiz, 53 anos, ouvia com frequência esta frase quando estava a crescer. Diagnosticada com 67% de deficiência intelectual, os seus pais não conseguiam imaginá-la como uma mulher independente - muito menos como mãe.

"A deficiência pode passar para o filho através dos genes", repetiam os pais com frequência.

Quando fez 20 anos, apaixonou-se por Antonio, um dos colegas do centro ocupacional de Sevilha, no sul da Espanha. Um dia, ao falarem sobre o futuro, discutiram o desejo de ter filhos e acabaram por ir ter com os pais de Rosario para dar a notícia.

A ideia de Rosario ser mãe foi um choque para os pais, que, aconselhados pelo médico de família, decidiram esterilizar a filha.

A esterilização forçada de pessoas com deficiência era legal em Espanha até há apenas dois anos atrás. A lei, que permitia a esterilização sem consentimento "em casos excecionais", foi revogada no final de 2020.

No entanto, a prática continua a ser legal em grande parte da União Europeia. É contra a lei em apenas nove países, apesar de infringir a Convenção de Istambul e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

Portugal, Hungria e Chéquia são os únicos três Estados-Membros que permitem a esterilização de menores.

Forçada pelos pais, Rosario teve de passar por uma operação para ligar as trompas de Falópio aos 20 anos. Foi levada para Hospital Vírgen del Rocío, em Sevilha, sem saber que tipo de operação teria de fazer.

A mãe ameaçou impedi-la de ver Antonio novamente e colocá-la numa instituição se recusasse ir ao hospital, e ela acabou por concordar.

No dia seguinte, viu a cicatriz no corpo.

"Perguntei-me: 'o que é que fizeram com a minha vida? Sou inútil? Será que toda a gente pode ser mãe menos eu? Desde então, sinto-me vazia todos os dias da minha vida", disse Rosario à Euronews.

O "pouco carinho" que tinha pelos pais morreu depois de ser esterilizada.

"Não tenho uma conversa de pai e filha. Não confio mais em ninguém, nem quero", acrescenta.

Há três anos, Rosario conseguiu libertar-se da incapacidade que permitia aos seus pais decidir sobre absolutamente todos os aspetos da sua vida. No entanto, ainda não está completamente livre.

Nos dias de semana tem, agora, de cuidar do pai de 80 anos, a mesma pessoa que a achava incapaz de cuidar de qualquer pessoa.

Europa acena com a ilegalização

A ausência de legislação comum na Europa deixa a decisão de proibir a prática de forçar a esterilização de pessoas com deficiência nas mãos de cada Estado-Membro.

Só a Suécia, Irlanda, Bélgica, França, Alemanha, Itália, Eslovénia, Polónia e Espanha criminalizam a prática, sendo Espanha o último país europeu a fazê-lo.

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Mas, como a Euronews descobriu, mesmo nesses países, às vezes a esterilização forçada aconteceu.

Malta também proibirá a prática em breve, porque o governo acaba de anunciar um plano para alterar a lei atual que permite a esterilização forçada.

“É uma forma muito cruel de dominação, tanto da sexualidade como da reprodução”, disse María Eugenia Rodríguez Palop, eurodeputada espanhola do Grupo da Esquerda no Parlamento Europeu.

A chave para acabar com o problema está em Bruxelas. Em julho, o Parlamento Europeu vai debater se deve proibir a prática - uma decisão que seria vinculativa para todos os Estados-membros, mas que deve ser votada posteriormente pelo Conselho Europeu.

Todo o espetro político concorda com isso, mas é a base legal da nova diretiva europeia de combate à violência contra as mulheres que gera conflito.

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Rodríguez Palop ressalva que a base legal é muito estreita porque se baseia no crime europeu de exploração sexual.

“Estamos a tentar ampliar as infrações penais, o conceito de agressão e incorporar um vínculo entre exploração sexual e exploração reprodutiva.”

Há oposição de alguns Estados-Membros, como a Chéquia, a Eslováquia ou a Hungria, mas também de outros países que “não são os habituais suspeitos quando se trata de atentar contra os direitos humanos, como França, Bélgica e Portugal”, nas palavras da eurodeputada.

Rodríguez Palop vê a esterilização forçada como um "caso muito claro de eugenia" e aponta que "a eugenia ainda existe no século 21."

Implorando para ter filhos

Carmen - nome fictício - sempre sonhou em ser mãe.

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No entanto, a mãe antecipou-se com uma decisão: Carmen viria a laquear as trompas para evitar que tivesse "muitos filhos" aos 20 anos.

Carmen tem 67% de deficiência intelectual e a mãe levou-a ao hospital sem lhe alertar para onde ela estava a ir. Desconhecia o que ia acontecer até que o médico explicou, mas já era tarde, porque já estava na cirurgia.

"Eu chorava e pedia-lhes, por favor, para não me anestesiarem. Eu dizia: por favor, deixem-me ter um filho, só um. Tentei não adormecer, mas sentia a anestesia cada vez mais forte", conta Carmen, de 31 anos.

“Quando assinei os papéis, a minha visão estava turva porque já estava anestesiada. Assinei sem consentimento, porque quando pedi, só me mandaram assinar”, acrescenta.

A recusa pouco importava. Como estava sob tutela, a mãe, que era a tutora legal, tinha a última palavra. A partir daquele momento, o relacionamento entre ambas mudou por completo.

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“Sinto ressentimento em relação à minha mãe. Ela tirou uma parte de mim. É muito doloroso sentir que o que mais queria neste mundo foi tirado de mim, sem poder decidir”, lamenta Carmen.

Acrescenta que 10 anos depois, a sua mãe ainda justifica as decisões dizendo que ela fez isso para o bem da filha. "Mas sempre que vejo a cicatriz, tenho vontade de morrer."

Governos fecham os olhos

O número total de esterilizações forçadas realizadas na Europa continua a ser desconhecido, porque o assunto foi sempre um tabu. Não há números oficiais que possam clarificar tudo.

Portugal vai tornar-se no primeiro país a recolher dados oficiais sobre esterilizações forçadas, depois do Parlamento ter votado a realização de um estudo sobre a violência contra pessoas com deficiência, que incluirá estes números.

Apesar da falta de dados, está claro para as organizações que estes abusos são sofridos principalmente por mulheres.

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"Em 20 anos de carreira, só conheci um caso de esterilização de um homem com deficiência intelectual e não tenho certeza se isso já foi realizado", diz Rubén Parrillo, diretor do centro de dia ATUREM para pessoas com deficiência.

“No entanto, não tenho dedos suficientes na mão para contar o número de mulheres esterilizadas”, acrescenta.

Este artigo foi produzido com o apoio do Journalismfund Europe.

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