Europa ajuda Síria a tornar-se num gigante do tráfico de droga

Um funcionário da alfândega saudita abre romãs importadas usadas para tentar contrabandear mais de 5 milhões de comprimidos de Captagon, em 2021.
Um funcionário da alfândega saudita abre romãs importadas usadas para tentar contrabandear mais de 5 milhões de comprimidos de Captagon, em 2021. Direitos de autor AP/AP
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De  Joshua Askew
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Apesar de o captagon ser uma droga pouco conhecida, o seu negócio na Síria é três vezes superior ao comércio do conjunto dos cartéis mexicanos

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É provável que nunca tenha ouvido falar do captagon. Esta droga altamente viciante tem-se espalhado pelo Médio Oriente.

O governo britânico estima que 80% do captagon é produzido na Síria, gerando "aproximadamente três vezes o comércio combinado dos cartéis mexicanos" para o regime sírio.

A droga pode ser vendida em comprimidos ou em pó e é consumida por uma grande variedade de pessoas em todo o Médio Oriente.

Os estudantes consomem-na para aumentar a produtividade. Os taxistas, os camionistas e até os soldados usam o captagon para se manterem acordados e desempenharem as suas funções. Já as vítimas da insegurança alimentar procuram-no para atrasar as refeições, explica Caroline Rose, diretora do New Lines Institute.

A droga está ainda a alimentar as festas nas terras junto ao Golfo Pérsico, graças à sua capacidade indutora de euforia. Tudo isto sem o estigma de outras drogas como a heroína ou a cocaína.

O captagon foi desenvolvido na Alemanha, nos anos 60, como remédio farmacêutico para o transtorno do défice de atenção com hiperatividade, a narcolepsia e a depressão.

Um dos seus ingredientes ativos, a fenetilina, foi mais tarde colocado na lista negra da ONU, em 1986, o que levou a maioria dos países a descontinuá-lo.

AP/AP
Autoridades sírias exibem comprimidos de Captagon apreendidosAP/AP

No entanto, rapidamente surgiram novos centros de produção na Bulgária. Os comprimidos eram depois contrabandeados por turcos para o Médio Oriente, de acordo com um relatório de 2018 do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência.

Quando as autoridades locais começaram a reprimir o captagon no início dos anos 2000, a produção migrou para a Síria. Com o início da guerra civil síria em 2011, a produção disparou.

"O vácuo político e de segurança que surgiu com a guerra civil síria e o consequente colapso económico criaram um espaço amplo para o desenvolvimento de economias ilícitas como a do captagon", explicou Rose à Euronews.

O comércio desta droga é um "fluxo de receitas alternativo fundamental" para o regime sírio e os seus aliados, que procuram evitar as sanções ocidentais e "sustentar as estruturas de poder locais", especialmente no sul do país.

A Síria transformada numa quinta de droga

O alarme começou a soar nos últimos anos. Embora seja difícil calcular o efeito exato do captagon na sociedade do Médio Oriente, devido à escassez de dados, está-se a tornar uma preocupação fundamental na região.

"A droga é um dos flagelos da sociedade, porque a destrói, especialmente no Médio Oriente, onde os jovens sofrem com o desemprego, devido ao colapso das condições económicas provocado pela política dos governantes", destaca Taim Alhajj, jornalista investigativo sírio, à Euronews.

"Os membros seniores da família Assad [Bashar al-Assad é o presidente da Síria há 23 anos] estão a produzir drogas de forma organizada, com o objetivo de ganhar dinheiro e de mergulhar ainda mais os jovens na corrupção, a fim de os afastar da reivindicação dos direitos que lhes são usurpados".

"A droga é a chave de uma grande porta da criminalidade em qualquer sociedade, quanto mais num país como a Síria que vive num estado de caos securitário", acrescentou.

Apesar de o regime e os seus aliados ganharem milhares de milhões com este negócio, Rose diz que há "poucas provas de que as receitas do captagon estejam a ser injetadas nos setores públicos sírios".

Em vez disso, o dinheiro obscuro está a encher os bolsos dos "chefões" e a ajudar a manter o "ímpeto do aparelho de segurança da Síria" na sua batalha em curso contra os rebeldes, financiando o recrutamento e o abastecimento.

"O tráfico de droga e o contrabando tornaram-se numa carta de pressão política que Assad utiliza nas negociações" diplomáticas entre os países árabes que tentam normalizar as relações, afirma Alhajj.

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Ainda assim, a Síria não está sozinha neste comércio. No final de agosto de 2022, as autoridades sauditas realizaram a sua maior operação antidroga de sempre, tendo apreendido 46 milhões de comprimidos de anfetaminas escondidos num contentor com farinha.

Na Jordânia, uma tentativa de contrabando de 16 milhões de comprimidos de captagon em fevereiro desse ano - mais do que toda a quantidade apreendida em 2021 - fracassou.

Rose conta que, para piorar a situação, a maioria dos países do Médio Oriente não tem sistemas adequados de reabilitação e de redução dos danos, nem campanhas de sensibilização do público.

Em maio, a Síria concordou em cooperar com a Jordânia e o Iraque para identificar as fontes de produção e contrabando de droga. Uma semana depois, um importante traficante de droga sírio e a sua família terão sido mortos num alegado ataque aéreo jordano, no sul da Síria.

O papel da Europa na saga do captagon

Mas o regime sírio não é o único a beneficiar. A Europa está envolvida no comércio e na produção de captagon, sendo um "ponto de passagem fundamental" para os carregamentos da droga, segundo a diretora do New Lines Institute.

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Thanassis Stavrakis/Copyright 2017 The AP. All rights reserved.
Captagon apreendido entre outros produtos ilícitos na Grécia, em 2017.Thanassis Stavrakis/Copyright 2017 The AP. All rights reserved.

"Os contrabandistas que procuram reduzir as suspeitas sobre os carregamentos enviados a partir de territórios controlados pelo regime sírio enviam os comprimidos primeiro para portos marítimos europeus ou criam empresas de fachada mais para o interior, para depois reencaminharem os carregamentos para os mercados de destino", explica Rose.

"Ao fazer passar o captagon pela Europa, os contrabandistas estão a tentar melhorar a credibilidade dos seus carregamentos e reduzir as hipóteses de inspeção", acrescenta.

Inevitavelmente, algumas destas drogas ilícitas vão parar aos mercados europeus. "Não há dúvida de que os grupos organizados dos países europeus estão a trabalhar em coordenação com a família Assad para fazer chegar a droga à Europa", assegura Alhajj.

Em 2020, a polícia italiana apreendeu cerca de 14 toneladas de comprimidos captagon no valor de cerca de mil milhões de euros, descrevendo-a como a maior operação do género em todo o mundo.

O combate ao captagon, tal como à maioria das substâncias ilícitas, requer uma solução multifacetada, dizem os dois especialistas.

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Rose sugere que, a curto prazo, "a comunicação entre os países de trânsito e de destino do comércio" desta droga deve ser melhorada.

"É preciso haver uma maior partilha de informações e coordenação sobre a estratégia de combate ao captagon", destaca, alertando para a "colaboração direta com o regime sírio" que usa o seu controlo sobre o comércio para "fazer concessões".

O jornalista acredita que é necessário encontrar soluções sistemáticas para resolver o problema na Síria.

"O problema do captagon não é o pior problema da Síria. O país vive num estado de tirania, graças ao domínio da família de Bashar al-Assad, que governa a ferro e fogo, já matou centenas de milhares de pessoas e deslocou milhões".

"Primeiro, o regime de Assad deve acabar, porque [essa] família é a raiz da corrupção e da ruína nesse país", garante Alhajj.

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