A sempre turbulenta pasta da Saúde está, por estes dias, novamente mergulhada em polémica, na sequência da morte de uma grávida e do seu bebé.
O caso da guineense de 36 anos que morreu grávida de 38 semanas no hospital Amadora-Sintra voltou a deixar expostas as falhas no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Umo Cami morreu na madrugada da passada sexta-feira, na sequência de uma paragem cardiorrespiratória. A filha, que nasceu de uma cesariana de emergência, também não resistiu e morreu no domingo de manhã.
A mulher tinha estado na unidade hospitalar durante a tarde de quarta-feira, 29 de outubro, por causa de um episódio de hipertensão, mas terá sido mandada para casa.
Na madrugada de 31 de outubro deu entrada na urgência do Amadora-Sintra, mas já em paragem cardiorrespiratória. Foi feita uma cesariana de urgência, mas o desfecho foi trágico.
O hospital avançou de imediato com um inquérito interno ao caso, mas veio garantir em comunicado que foram cumpridos todos os protocolos.
Incialmente, o direitor do Serviço de Ginecologia e Obstétrica do Amadora-Sintra veio a público justificar que Umo Cami tinha chegado há pouco tempo a Portugal e que "o seguimento da gravidez não foi ideal".
No Parlamento, a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, confrontada com mais este caso, insistiu que a mulher não foi devidamente acompanhada durante a gravidez, assumindo que o mesmo acontece com muitos dos casos de desfechos menos bons na área da obstetrícia.
"Maioritariamente são grávidas que nunca foram seguidas durante a gravidez, que não têm médico de família, recém-chegadas a Portugal, com gravidezes adiantadas e algumas nem falam português ou foram preparadas para acionar o socorro. Por vezes, nem telemóvel têm", descreveu Ana Paula Martins sobre o aumento do número de partos fora do hospital.
Hospital e ministra desmentidos
Os comentários acabaram por gerar ainda mais controvérsia e veio a verificar-se que Umo Cami era, afinal, - e ao contrário da informação que tinha sido divulgada inicialmente pelo hospital e pela ministra - acompanhada no SNS desde julho.
Familiares e amigos da mulher vieram a público garantir que a gravidez estava a ser acompanhada naquela unidade de saúde e que Umo Cami vivia em Portugal há um ano, legalmente, facultando registos das confirmações das consultas nas redes sociais.
A administração do Hospital de Amadora-Sintra acabou por reconhecer o erro 48 horas após o óbito. Segundo o comunicado da administração hospitalar, a mulher fez duas consultas de vigilância de gravidez, em 14 de julho e 14 de agosto, no centro de saúde de Agualva-Cacém, tendo realizado consultas de obstetrícia no Hospital Fernando Fonseca, na Amadora, nos dias 17 de setembro e 29 de outubro, esta última dois dias antes de morrer.
A administração da unidade hospitalar realçou que a informação do acompanhamento desde julho só foi transmitida à ministra da Saúde no domingo e que as declarações feitas pela governante, na Assembleia da República, onde disse que a mulher não tinha tido acompanhamento prévio, tiveram por base informação e o comunicado emitido pelo Hospital Fernando Fonseca.
Em causa, poderá estar uma falha de articulação entre os serviços de saúde e a partilha de dados sobre os pacientes. Isto porque o Amadora-Sintra é uma das quatro unidades do SNS sem sistema informático de partilha de dados. Em todas as outras, os dados dos utentes foram já transferidos para o Registo de Saúde Eletrónico desde 2012.
Num comunicado oficial, a Unidade Local de Saúde de Amadora-Sintra (ULSASI) admitiu a falta de um sistema integrado de informação clínica, que permita a troca automática de dados entre os diferentes serviços e unidades.
Perante a gravidade do caso, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) e a Entidade Reguladora da Saúde anunciaram a abertura de inquéritos independentes para apurar as circunstâncias da morte da grávida e da recém-nascida, bem como eventuais falhas no acompanhamento clínico. Também o Ministério Público (MP) abriu um inquérito ao caso.
Nos últimos meses, a ministra Ana Paula Martins alegou em várias ocasiões de que os partos com complicações, nomeadamente muitos que têm ocorrido fora dos hospitais, estão acima de tudo relacionados com gravidezes que não foram seguidas no Serviço Nacional de Saúde.
O contexto de fortes limitações inerentes ao encerramento e concentração de serviços de urgência de obstetrícia, devido à falta de profissionais tem feito disparar o número de partos pré-hospitalares em Portugal e obrigado várias mulheres em trabalho de parto a deslocarem-se quilómetros para receberem assistência médica.
Considerando todos os contextos pré-hospitalares — ambulâncias, via pública e em casa —, o INEM contabilizou 154 partos entre 1 de janeiro e 14 de setembro deste ano.
Ministra da Saúde sob fogo após morte de grávida
Face aos constrangimentos nos serviços de Ginecologia, Obstetrícia e Bloco de Partos dos hospitais, sobretudo em Lisboa e Setúbal, a oposição tem denunciado que não está a ser assegurado o acompanhamento adequado das grávidas, pedindo mesmo a cabeça da ministra.
Ainda antes deste caso da grávida que morreu no Amadora-Sintra, a oposição já pedia a demissão da ministra pela gestão do SNS e a acumulação de casos que a colocavam em cheque. As críticas vão desde o desinvestimento no setor, à falta de médicos de família, aos atrasos nas consultas e cirurgias, ao fecho de urgências e às condições laborais dos profissionais de saúde.
Horas antes da notícia do caso de Umo Cami rebentar, foi o próprio presidente da República a segurar Ana Paula Martins durante uma intervenção no encerramento de uma conferência sobre os 50 anos do Serviço Médico na Periferia (SMP).
"Se acaba um Governo, entra outro com outra política de saúde. Depois entra outro, que tem outra política de saúde. Não há política de saúde que aguente. Ou melhor, não há saúde que aguente. Talvez valha a pena pensar que não é boa ideia de cada vez que muda de Governo mudar-se de política também no domínio da saúde", afirmou Marcelo Rebelo de Sousa.
O chefe de Estado pediu mesmo um "acordo amplo de regime", para que haja um quadro de médio prazo. Segundo Marcelo, o Governo deve decidir primeiro se quer ou não fazer acordo, mas, "mesmo sem acordo, tem de um dia tomar uma decisão sobre isto: o que é que deve ser SNS, o que é que deve ser setor social, o que é que deve ser setor privado lucrativo".
Depois da palavras do presidente da República, a ministra ainda foi ao Parlamento garantir que não se demitia, mas afinal, a intenção de Ana Paula Martins é mesmo abandonar o cargo.
Com sinais de desgaste e a pressão a aumentar sobre a governante, segundo o semanário Expresso, o pedido para sair já estará feito, tendo primeiro-ministro e dirigentes do setor conhecimento da sua vontade que já durará há algum tempo.
Luís Montenegro não quer deixar cair a ministra até que alguns dos diplomas indispensáveis estejam assegurados, o que deverá acontecer no final do ano. O Governo está a preparar a prometida Lei de Bases e dezembro será a data decisiva para reavaliar as condições políticas da ministra da Saúde.
No meio desta tempestade perfeita, paira ainda no ar a possibilidade de uma paralisação das urgências. Em causa estão as alterações ao regime dos médicos prestadores de serviços, no sentido de esbater as diferenças entre os clínicos que têm contrato com o SNS e os chamados tarefeiros.
Inconformados com as mudanças que o Governo quer implementar, um grupo de mais de mil médicos prestadores de serviço, reunidos num grupo de WhatsApp, ameaçam paralisar os serviços de urgência dos hospitais públicos pelo menos durante três dias.