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Recrutados por gostos: como a Rússia angaria os seus agentes na Internet

Estão a ser recrutados "agentes de baixo nível" no Telegram?
Estão a ser recrutados "agentes de baixo nível" no Telegram? Direitos de autor  Grafik: Olga Lavrentyeva
Direitos de autor Grafik: Olga Lavrentyeva
De Johanna Urbancik
Publicado a
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Através do Telegram e de outras redes sociais, os serviços secretos russos recrutam na Alemanha os chamados "agentes descartáveis" para pequenos atos de sabotagem, observação ou provocação. Basta um clique ou um "gosto" para que os utilizadores sejam alvo dos serviços secretos russos.

Na Europa, reina uma "paz gélida" que "a qualquer momento pode transformar-se em confronto violento", afirmou o presidente do Serviço Federal de Inteligência (BND) da Alemanha, Martin Jäger, na audiência pública anual dos chefes dos serviços secretos no Bundestag. Alertou ainda que "temos de nos preparar para um agravamento da situação".

O deputado dos Verdes, Konstantin von Notz, concordou: "Os perigos colocados atualmente pela espionagem e sabotagem por parte de Estados autoritários são, desde há muito, um problema muito grave em termos de política de segurança". Von Notz apelou a que as avaliações dos serviços de informação fossem "finalmente levadas a sério" e que fossem trabalhadas medidas decisivas, dentro do Estado de direito, contra as ameaças crescentes.

A Rússia intensificou a sua guerra híbrida contra o Ocidente desde a invasão em grande escala da Ucrânia: corte de cabos no Mar Báltico, sobrevoos de drones, encomendas-bomba e outros atos de espionagem e sabotagem. Alguns destes ataques híbridos podem ser atribuídos aos chamados "agentes descartáveis", também conhecidos como "agentes de baixo nível".

Em causa estão pessoas que são contratadas através das redes sociais, normalmente por uma pequena quantia de dinheiro, para levar a cabo pequenos atos de sabotagem. Estes incluem, por exemplo, fotografar infraestruturas críticas ou militares, ataques incendiários ou grafítis provocatórios.

Difusão de narrativas pró-Rússia no Telegram

Além de outras redes sociais, a aplicação de mensagens Telegram, em particular, é frequentemente utilizada para contratar "agentes descartáveis". A aplicação permite aos utilizadores aderir a canais públicos e enviar mensagens privadas. É necessário um número de telefone para se registar, mas só é preciso fornecer publicamente um nome de utilizador.

No Telegram, é possível encontrar inúmeros canais pró-Rússia com milhares de subscritores, como o canal da blogger Alina Lipp, sancionada pela UE. O seu canal "Neues aus Russland" ("Notícias da Rússia", em português) tem mais de 175 mil subscritores que podem ler regularmente os seus conteúdos, que divulgam a narrativa russa.

Lipp traduz principalmente conteúdos de chats em russo para alemão, de onde eles são disseminados em grupos e canais de língua alemã. Esse papel de tradutora e multiplicadora rapidamente a tornou numa das vozes pró-Rússia mais influentes no Telegram na região de língua alemã após o início da guerra de agressão.

Uma investigação do Correctiv mostrou também que, em torno do seu canal, se formou uma rede de chats russos e alemães no Telegram, que transmitem conteúdos entre si. Esses grupos funcionam como caixas de ressonância para a propaganda pró-Rússia, onde outras perspetivas raramente aparecem.

Em geral, nos canais do Telegram são partilhados vídeos, notícias e outras informações, muitas vezes sobre a guerra de agressão russa ou outros temas, como a migração na Europa e o tratamento dos refugiados ucranianos. Em muitos canais, é possível comentar as publicações ou dar um "gosto".

Leia o primeiro artigo da série "O terror secreto de Putin na Alemanha"

Um clique para se tornar um agente?

Segundo o especialista ucraniano Kostyiantin Korsun, os utilizadores estão a ser alvo dos serviços secretos russos, que podem acompanhar as conversas nos canais do Telegram, identificar os participantes e os administradores através das suas identificações e rastrear os canais que seguem.

"Isso cria automaticamente perfis pormenorizados de milhões de pessoas", explica Korsun numa entrevista à Euronews. Um software especializado permitiria aos serviços russos monitorizar milhares de canais em simultâneo e determinar o grau de lealdade de cada utilizador em relação à Rússia ou a sua posição política.

"Com base nisso, é possível estimar quantas pessoas poderiam ser potencialmente interessantes para os serviços russos", acrescenta o cibernauta. O passo seguinte é o contacto inicial. Se, por exemplo, um canal do Telegram publica regularmente conteúdos positivos sobre a Rússia ou a guerra na Ucrânia, os serviços secretos podem identificar e marcar os utilizadores. Estes são depois contactados - de forma pública ou privada - e, por vezes, até recrutados.

"Nesta fase, trata-se inicialmente de uma avaliação psicológica: a pessoa conseguiria obter informações, tirar fotos ou até mesmo prestar apoio operacional? Se alguém for considerado adequado, a comunicação geralmente muda do Telegram para aplicações de mensagens mais seguras, como o Signal ou o Wire. O primeiro contacto geralmente ocorre através do Telegram, porque a plataforma é aberta – as etapas posteriores são então realizadas através de canais encriptados", explica Korsun.

"Não é possível a ninguém, exceto aos operadores de um canal, identificar os seus assinantes. Também é impossível ver uma lista dos canais que um utilizador segue", afirmou o Telegram numa declaração à Euronews.

As agências de inteligência alemãs estão bem cientes de que as redes sociais estão a ser utilizadas como plataformas de recrutamento.

Regra geral, o Serviço Federal de Informações (BND) ou o Gabinete para a Proteção da Constituição conseguem observar canais, analisar e documentar publicações sem necessidade de intervenção. No entanto, a partir do momento em que a comunicação passa para os chats privados, as coisas tornam-se mais difíceis: se os serviços de informações tentarem aceder ao conteúdo de chats privados ou encriptados de ponta a ponta, existem obstáculos legais e técnicos - especialmente no Telegram.

"Os apelos à violência ou à destruição de propriedade são expressamente proibidos no Telegram e são removidos imediatamente assim que são identificados. Moderadores equipados com ferramentas especiais de IA monitorizam proativamente as áreas públicas da plataforma e recebem denúncias para remover diariamente milhões de conteúdos prejudiciais, incluindo apelos à violência", afirmou o Telegram numa declaração à Euronews.

Nesta foto de arquivo tirada a 20 de março de 2018, o site da aplicação de mensagens Telegram é visto num ecrã de computador em Moscovo, Rússia
Nesta foto de arquivo tirada a 20 de março de 2018, o site da aplicação de mensagens Telegram é visto num ecrã de computador em Moscovo, Rússia Alexander Zemlianichenko/AP

O Telegram colabora com os serviços secretos russos?

A empresa decide, em última instância, se os dados são divulgados, explica Korsun. O Telegram foi desenvolvido na Rússia em 2013 pelo atual diretor-executivo Pavel Durov e pelo seu irmão. Desde então, tornou-se uma das aplicações de mensagens mais populares do mundo, registando mil milhões de utilizadores em março deste ano. Há muito que se suspeita que Durov transmite dados aos serviços secretos russos ou até colabora com eles. No entanto, até agora não havia provas concretas disso.

Numa publicação no Telegram, Durov escreveu que, nos seus "12 anos de história, o Telegram nunca revelou um único byte de mensagens privadas". De acordo com a lei da UE sobre serviços digitais, o Telegram só revelaria endereços IP e números de telefone de suspeitos mediante a apresentação de uma ordem judicial válida – e não mensagens, afirmou o CEO do Telegram.

No entanto, de acordo com ainvestigação do Organised Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP), por trás da infraestrutura técnica do Telegram está um técnico de rede até então desconhecido, chamado Vladimir Vedenyev. A sua empresa administra o equipamento de rede e os endereços IP do Telegram e tem acesso exclusivo a partes dos servidores, bem como poderes para celebrar contratos em nome do Telegram.

Embora também não haja provas de que a sua empresa coopere com o governo russo, duas empresas intimamente ligadas a Wedenjejew trabalharam com clientes governamentais sensíveis, incluindo o serviço secreto russo FSB, um centro de investigação para a desanonimização de utilizadores da Internet e um laboratório estatal de investigação nuclear.

Numa declaração à Euronews, o Telegram escreve que "a empresa de Vedeneev, a Global Network Management Inc. (GNM), é um dos muitos fornecedores de serviços de telecomunicações limitados, como co-localização e instalação de hardware, sempre sob a supervisão do Telegram e sem acesso aos dados, códigos de encriptação ou sistemas internos do Telegram. O encaminhamento de IP e a operação de rede do Telegram são realizados exclusivamente pela sua própria equipa de engenheiros".

O "vegetariano" entre os serviços secretpos

Embora os serviços secretos estejam limitados no seu trabalho no Telegram, segundo o especialista em desinformação e inteligência e diretor do Cyber Intelligence Institute, Christopher Nehring, existem outras formas de dificultar o recrutamento no Telegram para os serviços secretos russos – por exemplo, com contraespionagem técnica.

Para isso, seria necessário monitorizar os canais relevantes do Telegram. "O agente típico de baixo nível geralmente fala russo, é muitas vezes um jovem com pouca educação formal que é recrutado por dinheiro fácil, sem muito treino ou convicção ideológica", afirma Nehring. "Ao entrar nesses canais, semelhantes aos fóruns jihadistas, é possível tanto recolher informações como plantar os chamados honeypots, ou iscos, para os serviços russos."

Segundo o especialista, isso é possível com a ajuda de perfis falsos gerados por IA, pois assim é possível mobilizar recursos. "Posso introduzir centenas desses honeypots, que mantêm os operadores ocupados – durante esse tempo, eles não podem fazer mais nada", afirma Nehring em entrevista à Euronews.

Embora isso não seja uma solução definitiva, pelo menos dificulta o acesso de agentes estrangeiros. No entanto, Nehring observou que tais métodos são legalmente controversos na Alemanha, uma vez que ainda não está claro se seriam mesmo admissíveis ao abrigo da legislação nacional.

Em contrapartida, as agências de inteligência estrangeiras podem tomar medidas muito mais agressivas no ciberespaço, incluindo a desativação de servidores no estrangeiro.

Em comparação, as agências alemãs não dispõem de poderes tão amplos. Foi em parte por esta razão que o antigo presidente do BND (Serviço Federal de Inteligência da Alemanha), August Hanning, descreveu uma vez os serviços secretos alemães como "os vegetarianos entre as agências de espionagem mundiais".

A Rússia pretende semear a divisão, mas qual é realmente a ideologia que o Kremlin está a promover? Descubra na quarta-feira, na terceira parte da nossa série "O terror secreto de Putin na Alemanha".

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