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"Não podemos achar que um estrangulamento no meio de uma discussão é normal"

Número de mulheres assassinadas em Portugal não abranda
Número de mulheres assassinadas em Portugal não abranda Direitos de autor  Silvia Izquierdo/Copyright 2024 The AP. All rights reserved
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De Ana Filipa Palma
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Relatório do Observatório de Mulheres Assassinadas (OMA) revela que pelo menos 24 mulheres foram assassinadas em Portugal este ano, das quais 21 como resultado de violência de género.

Ana, Conceição, Lurdes, Maria ou Susana são nomes de mulheres assassinadas em Portugal este ano. Ao todo, foram 24, indica o relatório anual do Observatório de Mulheres Assassinadas (OMA) da associação UMAR — União de Mulheres Alternativa e Resposta — apresentado na segunda-feira. O número não tem baixado e a tendência não é para abrandar.

“Os dados de 2025 denotam que os femicídios e as tentativas de femicídio continuam sem abrandar em Portugal”, lamentou Cátia Pontedeira, criminóloga e coordenadora do OMA, na apresentação do relatório.

Esta terça-feira assinala-se o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres. O número de mortes, bem como o número de denúncias de violência de género e doméstica, mostram a gravidade da realidade portuguesa.

O Observatório de Mulheres Assassinadas, no seu relatório, relembra que a prevenção das mortes “não pode depender da coragem da vítima ou do acaso”.

Segundo os dados apresentados, que dizem apenas respeito a casos divulgados pela comunicação social, das 24 mulheres assassinadas, de 2 de janeiro a 15 de novembro, 21 foram consideradas vítimas de femicídio, ou seja, “todas as mortes intencionais de mulheres relacionadas com questões de género”. Os outros três casos foram classificados como assassinatos.

Dos 21 femicídios, 16 ocorreram em relações de intimidade (namoro ou casamento) e cinco em contexto familiar; em particular, este ano, registaram-se casos de filhos que atacaram as mães.

Em todos os casos, os agressores foram homens. “Analisámos 74 casos: 50 são tentativas de assassinato e 24 mortes efetivas, e em todas elas o ofensor é um homem e a vítima uma mulher; logo, isto é marcadamente violência de género”, explica a criminóloga em entrevista à Euronews.

Na metodologia utilizada, o grupo de trabalho procurou perceber o contexto dos atentados através da descrição dos crimes e, na maioria dos assassinatos ou tentativas, a relação de “posse e controlo do outro” foi o motivo predominante.

O estudo também permitiu verificar que, em mais de metade dos casos (57%), existia violência doméstica e que, em grande parte das situações, havia conhecimento prévio por parte de terceiros, como vizinhos, familiares ou conhecidos. “Temos de quebrar o mito de ‘entre marido e mulher não se mete a colher’ e perceber que é um problema sistémico; mais do que a Maria e o José, é um problema de todos nós”, insiste Cátia.

Na maioria dos casos, os crimes ocorreram na residência conjunta e, em 57% (cerca de 12), a vítima foi morta com recurso a arma branca e, em 19%, com arma de fogo. Também a asfixia, o estrangulamento, o espancamento e o overkill — mais do que uma forma de matar alguém — foram causas identificadas de morte.

Em cinco dos casos noticiados, “os perpetradores tentaram ocultar o crime, escondendo o corpo das vítimas ou mentindo sobre as circunstâncias do crime”, lê-se no relatório.

Em metade dos casos identificados, a vítima e o agressor tinham filhos em comum, sendo que, em quatro desses casos, as crianças eram menores.

"Não podemos achar que um estrangulamento no meio de uma discussão é normal"

Através dos dados disponíveis nas notícias, verificou-se que, em 33% dos casos em que existia violência doméstica, já havia denúncia às autoridades. “As vítimas terem sido sinalizadas e, mesmo assim, serem mortas é uma falha de todos”, afirma, acrescentando: “Nas situações de denúncia falhamos na avaliação de risco; tem de haver formação sobre a complexidade destas situações. Não podemos achar que um estrangulamento no meio de uma discussão é normal — não é. É um caso grave de violência doméstica”, conclui.

A criminóloga refere que o sistema está a falhar na avaliação dos casos de violência doméstica e que, tanto na atuação policial como na judicial, muitas vezes existe uma tendência para “suavizar”.

Em declarações à Euronews, Cátia Pontedeira reforça que é preciso "aplicar mais vezes a prisão preventiva e perceber que, na violência doméstica, há muita reincidência e que não só as mulheres, mas também familiares e pessoas à volta estão em risco".

A coordenadora do OMA acrescenta ainda que há inúmeros casos de mulheres agredidas com tesouras, pedras ou martelos que continuam sem ser “considerados de grande gravidade”.

“Se uma mulher agredida com um destes objetos, ou com óleo a ferver, e deixada à beira da estrada não são razões para colocar uma pessoa em prisão preventiva, então quais são?”, questiona.

50 tentativas de assassinato

O relatório apresentado na segunda-feira mostra também que, além das mortes concretizadas, houve 50 tentativas, das quais 40 foram consideradas femicídios.

Mais uma vez, a maioria — 38 dos casos — ocorreu em contexto de relações de intimidade: 30 em relações atuais, 6 em relações passadas e 1 decorrente de uma relação de intimidade pretendida, em que o ofensor não aceitou a rejeição por parte da vítima.

“Destas 40 tentativas, apenas 24 resultaram em prisão preventiva. E os outros? Alguém que tenta matar e que, por sorte ou acaso, não consegue, ainda assim permanece em liberdade”, critica Cátia. “Ficam com uma medida de coação de afastamento da vítima, mas não ficam imediatamente em prisão; isto diz muito sobre como estamos a encarar esta situação.”

A criminóloga aponta falhas no entendimento da gravidade destas situações. “Não podemos continuar a assistir a casos em que agressões graves e tentativas de homicídio resultam em medidas de coação insuficientes e penas suspensas.”

Na conclusão do relatório, o conceito-chave é a “prevenção”, que, para Cátia Pontedeira, deve começar nas escolas e na educação.

“Só trabalhando com as pessoas o que são relações saudáveis e abusivas, só treinando isto na sociedade, é que vamos conseguir terminar este flagelo social”, explica à Euronews.

A violência doméstica é transversal a todas as idades e estatutos socioeconómicos e, para a criminóloga, é necessário “romper esta lógica de poder e controlo numa das partes da relação”.

Em fevereiro de 2025, a UMAR apresentou um Estudo Nacional de Violência no Namoro que revela um aumento da legitimação de comportamentos violentos entre os jovens.

“Mais de 70% dos jovens de 15 anos não identificaram certas circunstâncias no namoro como abusivas, como o controlo — com quem se sai, querer ver as redes sociais, por exemplo — e isto ajuda-nos a perceber que estes jovens vão iniciar relações sem noção destas questões e, portanto, vão normalizar situações que não devem ser normalizadas”, explica.

Para a coordenadora do Observatório, há uma clara manifestação de diferentes formas de violência de geração em geração, sempre com a desigualdade de género profundamente marcada. “A sociedade patriarcal, do controlo do homem, vai-se reproduzindo de geração em geração. Hoje em dia, talvez poucos tenham dúvidas de que a violência física é abusiva, mas há outras manifestações que continuam a ser normalizadas, como certos comportamentos de controlo, ciúme, humilhação e violência psicológica”, afirma.

Cátia Pontedeira acredita que existem ainda muitas reticências relativamente ao investimento e ao esforço na prevenção destas situações porque os resultados não são imediatos; contudo, acredita que, a longo prazo, fariam toda a diferença.

O relatório apela a respostas articuladas entre as várias autoridades, bem como à especialização de profissionais — polícias, magistrados, equipas médicas, sociais e educativas — para que tenham capacidade de compreender sinais de risco e padrões de violência, a fim de salvar vidas.

Há ainda muito caminho a percorrer na luta pela eliminação da violência contra as mulheres e, por isso, hoje, em várias cidades como Lisboa, Porto, Leiria, Funchal, Seixal ou Figueira da Foz, vão realizar-se marchas e debates sobre o tema.

Em Lisboa, a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género organiza um evento no MAAT Central , antigo Museu da Eletricidade, pelas 14:30 com o objetivo o propósito de alertar para a violência física, psicológica, sexual e social que atinge as mulheres.

Também haverá uma marcha, a "Marcha pelo Fim da Violência Contra as Mulheres", organizada por 18 associações feministas.

No Porto, a UMAR, organiza a sua 14.ª Marcha contra a Violência Doméstica e de Género marcada para as 19:00 que terá o ponto de encontro na Praça da Batalha e pretende ir até ao Mercado do Bolhão.

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