Riscos da extraterritorialide das sanções da UE contra a Rússia

A China, que tem fortes laços com a Rússia, fez aviso duro à UE contra sanções extraterritoriais
A China, que tem fortes laços com a Rússia, fez aviso duro à UE contra sanções extraterritoriais Direitos de autor Mark Schiefelbein/Copyright 2018 The AP. All rights reserved.
De  Jorge LiboreiroIsabel Marques da Silva
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Pessoas suspeitas de ajudarem a Rússia a fugir às sanções internacionais poderão vir a ser alvo de medidas punitivas.

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Com a maior parte das trocas comerciais entre a União Europeia (UE) e a Rússia fortemente restringidas ou mesmo proibidas, a Comissão Europeia quer visar pessoas, empresas e até governos suspeitos de ajudarem o regime de Moscovo a fugir às sanções, agindo como destinos de trânsito de produtos fabricados na UE.

"Recentemente, assistimos a um aumento de fluxos comerciais muito invulgares entre a UE e certos países terceiros - estes bens acabam por ir parar à Rússia", disse a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

Embora os pormenores da proposta não tenham sido tornados públicos, a nova missão de perseguir os facilitadores da Rússia levantou o problema da extraterritorialidade.

Os limites da jurisdição

Como instrumento de política externa, as sanções são aplicadas à discrição dos países soberanos para punir o que consideram ser um comportamento ilegal ou, pelo menos, censurável, conduzido por outra pessoa, entidade ou Estado. 

Embora na maioria dos casos o comportamento repreensível continue a desafiar a censura internacional, como a guerra da Rússia claramente prova, as sanções podem servir objetivos adicionais, como a pressão económica, a dissuasão, o isolamento e a crítica.

O congelamento de ativos, a proibição de viajar e as restrições comerciais contam-se entre as medidas restritivas mais comuns. Mas há um denominador comum: as sanções são introduzidas no âmbito da jurisdição do país sancionador.

De facto, mesmo que falemos de sanções contra a Rússia, na realidade, as sanções não são impostas dentro da Rússia, país sob o qual a UE não tem jurisdição. O que o bloco faz, em vez disso, é impor obrigações aos seus 27 Estados-membros e empresas sobre as suas interações com a Rússia. Por exemplo, as empresas europeias estão proibidas de importar carvão russo.

Esta forma de trabalhar dá aos países uma margem de manobra bastante ampla, desde restrições específicas a determinados produtos-chave até proibições alargadas que abrangem sectores inteiros.

No entanto, nos últimos anos, surgiu uma nova estratégia, sobretudo por parte dos Estados Unidos, que promoveram o recurso à extraterritorialidade, também conhecida como sanções secundárias, relativamente a entidades que se encontram estritamente fora da sua jurisdição.

Um desses casos foi quando a administração do antigo Presidente dos EUA, Donald Trump, se retirou do acordo nuclear com o Irão, reintroduziu sanções que tinham sido anteriormente levantadas e ameaçou punir as empresas que ainda mantinham negócios com Teerão, independentemente da sua localização geográfica ou propriedade.

Bruxelas reagiu com indignação: Porque é que as empresas europeias haviam de respeitar a lei norte-americana? Porque é que os investidores europeus haviam de pagar o preço de uma decisão, tomada unilateralmente, pelo governo de Washington?

Mas a simples ideia de perder o acesso ao dólar causou arrepios aos europeus, que se viram obrigados a escolher entre o poderoso mercado financeiro americano e a economia problemática do Irão.

"Estamos a falar da extensão do alcance da lei nacional para o estrangeiro. Trata-se de sanções extraterritoriais que, na sua maioria, desencorajam empresas e indivíduos de terceiros a fazer negócios com os países visados", disse Viktor Szép, professor assistente de Direito na Universidade de Groningen, à euronews.

"Os EUA estão a alargar a sua jurisdição a pessoas não americanas numa escala bastante ampla. E dado que muitas grandes empresas têm ligações com os EUA, as leis americanas têm um alcance considerável, especialmente no domínio da banca internacional", acrescentou.

UE costuma estar contra

Tradicionalmente, a UE tem-se oposto a qualquer tipo de sanções extraterritoriais, argumentando que afetam a sua soberania e independência e a posição foi consagrada numa lei, em 1996, conhecida como Estatuto de Bloqueio. Foi uma resposta direta às sanções impostas pelos EUA ao Irão, a Cuba e à Líbia.

O estatuto proíbe os operadores da UE de respeitarem as sanções extraterritoriais, anula as decisões proferidas por tribunais estrangeiros e permite o pedido de indemnização por danos. Foi posteriormente atualizado para contrariar as retaliações americanas no caso do Irão, embora o êxodo das empresas europeias de Teerão já fosse incontrolável.

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"A União Europeia sempre considerou as sanções extraterritoriais como algo que vai contra o direito internacional", afirmou Szép. "As sanções da UE nunca foram extraterritoriais, o que significa que não se aplicam a empresas ou indivíduos que não pertencem à UE e que têm negócios inteiramente fora da União."

Esta oposição de longa data foi levada ao limite no ano passado, quando o G7 (grupos dos países mais industrailizados) introduziu o seu limite de preços para o crude russo. No papel, o limite era uma sanção primária. Mas, na prática, repercutiu-se em todo o mundo, uma vez que muitos outros países se viram obrigados a seguir o limite para poderem obter petróleo russo barato, cujo comércio depende das companhias de seguros e de navegação ocidentais.

O fraco poder do euro face ao dólar

Mergulhar de cabeça na extraterritorialidade representaria, sem dúvida, um grande salto para a política externa da UE e viria juntar-se a um historial de grandes tabus quebrados desde que o Kremlin lançou a invasão.

No oitavo pacote de sanções, o bloco concordou com uma disposição para colocar na lista negra indivíduos de qualquer nacionalidade que facilitem a evasão das sanções. A 11ª ronda iria muito mais longe, visando empresas, ou mesmo países, acusados de venderem à Rússia bens sujeitos a sanções.

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Mas para obrigar as entidades não comunitárias a respeitarem a legislação da UE, o bloco precisará de uma influência suficientemente forte para fazer com que os outros pensem duas vezes. É improvável que o euro, por si só, consiga reproduzir o efeito dissuasor do dólar, o que significa que a UE terá de apresentar elementos económicos adicionais para usar como moeda de troca.

"A União Europeia é, até certo ponto, um recém-chegado à arena das sanções secundárias", disse Tom Ruys, professor de direito internacional na Universidade de Gand, numa entrevista.

"A Europa não tem o mesmo peso que os Estados Unidos, com o seu acesso ao sistema financeiro norte-americano, com o armamento do dólar, que continua a ser vital para um vasto leque de instituições financeiras em todo o mundo. Diria que isto é algo exclusivo dos Estados Unidos", acrescentou.

De acordo com Ruys, a UE tem três vias possíveis para reprimir a evasão: restringir o acesso ao seu rico mercado interno, abrir processos penais nos tribunais nacionais contra os suspeitos de evasão às sanções e acrescentar mais empresas à lista negra do bloco.

A lista negra é vista como a opção mais segura, graças ao seu historial de confiança e ao seu âmbito de aplicação algo limitado: na prática, traduz-se em congelamento de bens e proibição de viajar. Segundo os especialistas, ao limitar-se a incluir na lista as empresas não russas, a UE poderia evitar por pouco o recurso a medidas extraterritoriais e a retaliação total que daí decorre.

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Chian contra e já fez aviso

Mas outros podem ver as coisas de forma diferente. A China, um país que está sob escrutínio devido aos seus estreitos laços militares e económicos com a Rússia, emitiu um aviso inequívoco a Bruxelas.

"Somos contra a introdução de sanções extraterritoriais ou unilaterais contra a China ou qualquer outro país, de acordo com a sua própria legislação nacional. Se isso acontecesse, reagiríamos com rigor e firmeza", afirmou Qin Gang, ministro dos Negócios Estrangeiros da China, durante uma visita a Berlim.

A possibilidade de contra-sanções chinesas, como as que a UE sofreu no passado, poderá levar os Estados-membros a adoptar uma abordagem muito mais direcionada, possivelmente centrada na restrição de exportações específicas, em vez de punir empresas ou países, disse Maria Shagina, investigadora principal do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS).

"Berlim e Paris são alérgicos a qualquer utilização de sanções extraterritoriais, pelo que as novas designações terão de ter um nexo com a UE, o que significa que um país terceiro pode ser acrescentado à lista de sanções da UE se as sanções da UE forem violadas. No entanto, esta é a prova de uma UE mais assertiva e geopolítica, disposta a ir mais longe", disse Shagina à Euronews.

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"A grande questão é saber quais os países que vão acabar por fazer parte da lista. O Cazaquistão e a Arménia são mais prováveis do que a China ou a Turquia", acrescentou.

Von der Leyen afirmou que o mecanismo será utilizado "com cautela", como "último recurso", após uma "análise de risco muito diligente". 

Isto reflecte a posição difícil em que a UE se encontra actualmente, entre a sua aversão à extraterritorialidade e o seu desejo de fazer com que as sanções funcionem.

Independentemente do resultado final das negociações, a próxima ronda de sanções terá de lidar com a mesma fraqueza inerente que prejudicou a eficácia das dez rondas anteriores: embora as sanções da UE sejam concebidas coletivamente, a sua aplicação tem lugar a nível nacional, o que as torna propensas a resultados assimétricos.

Em contrapartida, os Estados Unidos aplicam as suas sanções com todo o poder do seu governo federal.

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"Sempre que são inventadas novas sanções, os alvos ajustam-se, procurando criativamente formas de contornar essas medidas, especialmente agora que os riscos são tão elevados porque o alvo é uma das maiores economias do mundo. O incentivo para explorar buracos no tecido é também muito mais prevalecente", disse Tom Ruys.

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