Os piores receios de uma tomada de poder pela extrema-direita podem não se ter concretizado, mas a política francesa pode agora encontrar-se num caos sem precedentes.
Sem maioria, e sem uma coligação evidente, a Assembleia Nacional francesa está prestes a navegar por águas desconhecidas.
Ainda há espaço para o centrista Emmanuel Macron salvar um programa viável para os três anos restantes da sua presidência, copiando a coligação montada na UE.
Eis quatro conclusões de uma noite que transformou a política francesa.
1. A coligação contra a extrema-direita funcionou
Apesar de o Rassemblement National (RN) de Marine Le Pen ter ficado em primeiro lugar na primeira volta, as alianças táticas entre candidatos e eleitores empurraram a coligação de extrema-direita para o terceiro lugar na segunda volta.
Mais de 200 candidatos renunciaram ao longo da semana, permitindo que os eleitores que se opõem à extrema-direita se unissem em torno de candidatos comuns na segunda volta.
Os números sugerem que foi a aliança da Nova Frente Popular (NFP) - um agrupamento de socialistas, verdes, comunistas e a esquerda dura LA France Insoumise (LFI) - que ficou em primeiro lugar, com cerca de 185 lugares.
O próprio Macron levou uma tareia, mas não está morto. Com pouco menos de uma centena, dos 577 deputados no hemiciclo, o Renaissance é o segundo maior partido a seguir ao RN e pode facilmente reunir mais 50 aliados centristas.
2. O dia de amanhã não é claro
Em princípio, uma coligação centrista e de esquerda, com cerca de 340 votos, poderia obter a maioria necessária na legislatura, mas a perspetiva de os macronistas se aliarem ao LFI - que muitos deles pintaram como sendo tão extremista como o Rassemblement National - não parece provável.
O LFI pode ser o maior dos partido de esquerda e até mesmo alguns socialistas consideram o seu líder Jean-Luc Mélenchon tóxico.
A aliança tática da esquerda, formada à pressa depois de Macron ter convocado eleições antecipadas em junho, pode não durar uma semana.
Isto deixa a França num território estranho. Ter um presidente e um primeiro-ministro de partidos diferentes é raro, mas não é único. O atual impasse não tem precedentes.
O primeiro-ministro macronista Gabriel Attal, cujo mandato só começou em janeiro, disse que se vai demitir segunda-feira. Poderá continuar como interino, mas não é claro quem o irá substituir.
3. Uma coligação de von der Leyen?
Uma das opções possíveis é uma coligação que reúna os centristas de Macron, os socialistas, os ecologistas e os deputados do Partido Republicano que não apoiaram Le Pen.
Seria o reflexo da aliança que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, reuniu no Parlamento Europeu - centro-esquerda, centro-direita, liberais e, talvez, verdes.
Embora não seja formal, a coligação pró-europeia de von der Leyen apoiou largamente a sua candidatura em 2019, e voltará a apoiá-la este ano - espera ela - enquanto concorda com leis individuais caso a caso.
Em França, a matemática eleitoral para esse tipo de acordo faz sentido; os quatro agrupamentos podem orgulhar-se de ter um pouco mais de 310 votos na Assembleia, acima do limiar dos 289, mas ainda há escolhas complicadas pela frente.
Nomear outro primeiro-ministro macronista, depois de o eleitorado lhe ter dado uma tal derrota, parece-me uma atitude surda. Do mesmo modo, é pouco provável que os republicanos aceitem uma nomeação dos socialistas.
O mais provável seria um candidato de compromisso de um partido mais pequeno, ou um governo de tecnocratas.
Esse acordo teria de durar pelo menos um ano, o mais cedo possível nas próximas eleições - ou talvez até Macron abandonar o cargo em 2027.
De qualquer forma, o futuro parece incerto e instável. A França, já com um défice orçamental superior a 5% do PIB, tem poucas perspetivas de uma liderança forte.
4. Le Pen pode gostar do caos
Há um argumento segundo o qual o RN, tradicionalmente um partido de protesto, não teria gostado da responsabilidade de governar se isso envolvesse uma coligação complexa e compromissos confusos.
O RN queixou-se certamente daquilo que considera serem os truques sujos que o afastaram do poder.
Jordan Bardella, a escolha da extrema-direita para primeiro-ministro, chamou ao pacto eleitoral "desonroso" e "contra a natureza"; Eric Ciotti, o líder dos republicanos que apoia o RN, chamou-lhe "vergonhoso".
Não há dúvida de que o RN se saiu bem: 9,3 milhões de franceses votaram nele na primeira volta e o seu número de lugares, cerca de 125, é um aumento acentuado em relação aos 89 que obteve em 2022, ou aos dois que teve em 2012.
Agora, vão ficar a ver Macron resolver a confusão e esperar que alguns anos de caos levem o eleitorado de volta a um partido de direita radical que prometeu uma mão firme.
Isso pode servir a aspiração de Le Pen de ganhar a presidência na próxima oportunidade, em 2027.