A UE "não se pode dar ao luxo de ser complacente e deve garantir que está preparada para enfrentar novas crises sanitárias", disse à Euronews a comissária responsável pela Preparação para Crises, no quinto aniversário do inicio da pandemia de Covid-19.
O início da pandemia de Covid-19 ficou marcado pelos esforços dos países de todo o mundo, incluindo os Estados-membros da UE, para garantir o necessário para enfrentar a emergência sanitária global e proteger os seus sistemas de saúde do colapso.
Cinco anos depois, a UE está mais bem preparada para enfrentar uma crise deste tipo, mas é preciso fazer mais, nomeadamente no que diz respeito à forma como abordamos a constituição de reservas, explicou Hadja Lahbib à Euronews, numa entrevista por e-mail.
Euronews: Cinco anos após o início da pandemia, de que forma é que a UE está mais bem preparada para a eventualidade de um cenário deste tipo voltar a acontecer?
Lahbib: A pandemia de Covid-19 apanhou a UE e o mundo desprevenidos, com consequências sem precedentes. Conseguimos ultrapassá-la graças à resiliência dos profissionais de saúde, ao trabalho notável dos investigadores e da indústria farmacêutica, e através de uma ação coletiva ao nível da UE e com parceiros mundiais.
Em resposta à mesma, foi criada a União Europeia da Saúde para reforçar a preparação contra pandemias. A UE investiu em soluções a longo prazo, tendo a Comissão Europeia, a EMA [Agência Europeia do Medicamento] e o ECDC [Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças] reforçado a sua capacidade de detetar e responder rapidamente às ameaças para a saúde.
A Autoridade de Preparação e Resposta a Emergências Sanitárias (HERA) garante o acesso a medicamentos e equipamentos essenciais em contexto de crises e promove a colaboração com parceiros mundiais para desenvolver vacinas, medicamentos e diagnósticos.
A HERA também apoia a inovação e facilita a aquisição de contramedidas médicas ao nível da UE. Além disso, a rede de locais de produção da HERA reforça a capacidade da UE em situações de emergência.
Orientada pela nossa Estratégia Global para a Saúde, a UE dá prioridade à segurança sanitária mundial, reforçando a vigilância e a preparação e apoiando a produção regional de vacinas. A UE continua a liderar as respostas de emergência a nível mundial, ajudando nos esforços contra surtos como a Mpox, o Ébola e o Marburg.
No entanto, não nos podemos dar ao luxo de ser complacentes. A evolução do panorama da saúde exige uma vigilância contínua e, até ao verão, apresentaremos uma Estratégia da União para a Preparação e uma Estratégia de Contramedidas Médicas.
Euronews: Na sua opinião, quais são as principais lacunas que ainda precisam de ser preenchidas, e que trabalho ainda precisa de ser feito para garantir que os 27 estão melhor organizados para lidar com um choque destes?
Lahbib: Como referi, fizemos progressos significativos nos últimos anos e estamos muito mais bem preparados para enfrentar uma nova crise. No entanto, ainda há muito a fazer para estarmos preparados para enfrentar a próxima crise sanitária.
Ainda nos faltam vacinas, tratamentos e diagnósticos para muitos agentes patogénicos de alto risco. A UE está a trabalhar com parceiros mundiais para desenvolver soluções ou protótipos que possam ser rapidamente adaptados.
A gripe aviária continua a ser uma preocupação devido ao aumento das transmissões a seres humanos nos Estados Unidos. As alterações climáticas estão também a impulsionar o aumento de doenças transmitidas por vetores como a dengue e o vírus do Nilo Ocidental na Europa, o que exige uma ação rápida em matéria de tratamentos. A resistência antimicrobiana está a agravar-se, causando 35 mil mortes por ano na UE. A HERA está a investir em novos agentes antimicrobianos e a garantir o acesso aos tratamentos.
Os problemas da cadeia de abastecimento e a fragmentação dos esforços continuam a limitar a disponibilidade de material médico. Os riscos decorrentes de conflitos armados ou de incidentes QBRN [Químicos, Biológicos, Radiológicos e Nucleares] mostram a necessidade de uma maior cooperação entre os setores civil e militar, bem como de reforçar os nossos sistemas de saúde.
A nível mundial, a OMS [Organização Mundial da Saúde] e muitas organizações terão menos recursos e capacidade para monitorizar e responder a emergências de saúde, o que aumentará os riscos e criará mais incerteza.
Euronews: Pode dar-nos uma visão geral do Acordo de Aquisição Conjunta? Já foram feitas algumas compras conjuntas? Se sim, quais foram os primeiros resultados?
Lahbib: As aquisições conjuntas da UE revelaram-se cruciais durante a pandemia de Covid-19, garantindo que as vacinas fossem distribuídas de forma equitativa em toda a UE. Desde então, o Acordo de Aquisição Conjunta tornou-se um modelo para outros setores, como a defesa e a energia.
O acordo permite a aquisição conjunta de contramedidas médicas por 37 países participantes. Garante um acesso equitativo, em especial para os mercados mais pequenos, e reforça a preparação.
Para além das vacinas e tratamentos contra a Covid-19, o Acordo de Aquisição Conjunta foi utilizado para as vacinas contra a Mpox, a antitoxina da difteria e as vacinas contra a gripe pandémica. A Comissão está também a explorar a aquisição conjunta de outros produtos críticos.
O Acordo de Aquisição Conjunta também promove a solidariedade a nível mundial. Os contratos a nível da UE para as vacinas contra a Mpox permitiram à Comissão garantir rapidamente doses para os parceiros africanos quando o surto de Mpox foi declarado uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional em 2024.
Euronews: Antes do verão, a Comissão deverá também apresentar a Estratégia* de Constituição de Reservas e a Estratégia de Contramedidas Médicas. Como é que estas estratégias complementam a Lei dos Medicamentos Críticos?*
A preparação e a resiliência irão melhorar os esforços europeus para antecipar de forma mais eficaz, prevenir e responder a crises. No primeiro semestre deste ano, a Comissão adotará iniciativas fundamentais para uma União mais forte e mais resiliente.
A Estratégia da União para a Preparação, que será adotada em março, irá estabelecer uma abordagem global da preparação para as crises. A Estratégia de Contramedidas Médicas, prevista para junho, irá reforçar o desenvolvimento de vacinas e terapêuticas, reforçando simultaneamente a segurança e a competitividade da UE em setores estratégicos como a biotecnologia.
Além disso, a Estratégia da UE de Constituição de Reservas irá assegurar a disponibilidade imediata de fornecimentos essenciais, melhorando a coordenação entre as reservas nacionais e comunitárias. A futura Lei dos Medicamentos Críticos irá abordar as vulnerabilidades da cadeia de abastecimento expostas pela Covid-19, dando prioridade a uma produção diversificada e baseada na UE, para reforçar a resiliência.
Euronews: No início da pandemia, um dos maiores problemas foi o fornecimento de EPI (equipamentos de proteção individual): não tínhamos o suficiente e não conseguíamos produzir o suficiente. Isto faz parte da Estratégia* de Constituição de Reservas ou da Estratégia de Contramedidas Médicas?*
Lahbib: Os EPI, como máscaras, luvas e ventiladores, são essenciais nas crises sanitárias. No início da pandemia de Covid-19, a escassez de EPI levou à concorrência entre os Estados-membros, deixando os profissionais de saúde desprotegidos.
Os EPI fazem parte dos esforços de constituição de reservas estratégicas da UE no âmbito do rescEU, um mecanismo que fornece reservas de emergência. A HERA investiu 1,2 mil milhões de euros na constituição de reservas de contramedidas médicas, incluindo a proteção QBRN.
Em 2022, a HERA lançou um sistema de aquisição dinâmico para EPI, permitindo que os fornecedores pré-aprovados acelerem a aquisição durante uma crise.
Para além da constituição de reservas, a UE está a investir em EPI inovadores e sustentáveis e a avaliar a capacidade de produção para reforçar as cadeias de abastecimento. A Estratégia de Contramedidas Médicas irá consolidar estes esforços para garantir a disponibilidade de EPI em futuras crises.
Euronews: A HERA queixou-se que, no que diz respeito à constituição de reservas, os Estados-membros são demasiado discretos e que, por essa razão, não tem uma visão geral do que é armazenado na UE. Poderá a estratégia remediar esta situação? Como tenciona contornar a confidencialidade dos Estados-membros neste domínio? Se já foram feitas consultas com os Estados-membros, que reações tiveram sobre o assunto?
Lahbib: Os níveis de reservas são frequentemente confidenciais devido a preocupações de segurança nacional. É compreensível que muitos Estados-membros hesitem em divulgar essas informações.
Para resolver este problema e facilitar a coordenação, a HERA estabeleceu quadros de referência para a partilha segura de informações, que contribuem para a confiança entre os Estados-membros. Em 2024, organizou reuniões confidenciais com os Estados-membros sobre a constituição de reservas QBRN no âmbito deste quadro.
Em vez de perguntar o que cada país tem, a HERA faz a estimativa da quantidade que será necessária numa crise. Este facto permite debater a forma como o apoio da UE pode complementar as reservas nacionais.
Ao longo do tempo, a UE e os Estados-membros desenvolveram uma cultura comum de preparação, que permite a resolução coletiva de problemas, nomeadamente em matéria de constituição de reservas. Neste espírito, estamos a lançar uma ação conjunta sobre reservas estratégicas, financiada por 10 milhões de euros. A ação será liderada pela Finlândia, com a participação de 21 Estados-membros. Isto prova a vontade dos Estados-membros de trabalhar com a Comissão em questões de reservas estratégicas, apesar da sensibilidade do tema.
Euronews: Por último, uma pergunta de caráter mais geral. O vosso papel na preparação para crises é vasto, porque o âmbito das crises também é vasto: o que é que estão a preparar para a segunda metade do ano?
Lahbib: As crises estão a tornar-se mais frequentes, desde as alterações climáticas às emergências humanitárias, aos conflitos e aos surtos de doenças infeciosas. Este verão, a Europa deve preparar-se não só para incêndios florestais, inundações e secas, mas também para surtos de doenças transmitidas por vetores. Temos também de estar preparados para ataques híbridos. Temos de melhorar constantemente o nosso grau de preparação. A preparação é um esforço contínuo e não um ato isolado. As estratégias que adotaremos no primeiro semestre do ano lançarão as bases para uma abordagem nova e abrangente da gestão de crises, fazendo a transição para um modelo que envolva toda a sociedade e toda a administração pública.
No segundo semestre de 2025, a atenção passará a centrar-se na aplicação destas estratégias. Um momento crucial será a proposta para o próximo Quadro Financeiro Plurianual, que irá definir o financiamento para a preparação e resposta da UE, para além de 2027. Garantir recursos suficientes não é apenas um imperativo moral, mas uma necessidade estratégica para proteger os cidadãos e manter a liderança mundial da Europa na gestão de crises.
Ao mesmo tempo, é essencial sensibilizar os cidadãos, especialmente os jovens. A preparação consiste em partilhar conhecimentos e aprender uns com os outros. Foi por isso que organizámos recentemente um diálogo sobre política de juventude, no qual os jovens exploraram a forma de se prepararem para crises e os elementos essenciais a incluir na sua bolsa de emergência. Com base nisto, facilitaremos a partilha de conhecimentos a nível europeu, assegurando o intercâmbio transfronteiriço de boas práticas e de conhecimentos. Estes intercâmbios são inestimáveis e continuarão a moldar a forma como reforçamos a preparação prática a todos os níveis da sociedade.
A força da nossa União reside na sua preparação, e isso começa com a assunção de responsabilidades por parte de cada um de nós.