Um ano após as inundações que devastaram parte de Valência, os peritos reconhecem melhorias nos sistemas de alerta, na educação e na coordenação institucional. Mas alertam para o facto de as obras de proteção e o ordenamento do território estarem ainda, na sua maioria, pendentes.
Um ano após a pior catástrofe natural do século, Espanha ainda tenta sarar as feridas e compreender o que correu mal no dia 29 de outubro de 2024, quando cheias repentinas atingiram as ruas de aldeias da Comunidade Valenciana, inundando casas, garagens e lojas, e deixando um rasto de destruição que custou a vida a 229 pessoas .
A DANA (Depressão Isolada a Níveis Altos) descarregou chuvas torrenciais que originaram recordes históricos: mais de 770 litros por metro quadrado em 24 horas em Turís e caudais transbordantes na Rambla del Poyo. Ruas transformadas em rios, casas inundadas e infraestruturas a transbordar recordaram-nos como ainda somos vulneráveis à força da natureza.
Um ano depois, a pergunta continua a ser a mesma: poderá voltar a acontecer? Dois especialistas da Universidade Politécnica de Valência, Félix Francés e Víctor Yepes Piqueras, falaram com a Euronews sobre a tragédia: como aconteceu, o que foi feito desde então e se a Comunidade Valenciana está realmente preparada para enfrentar outro episódio extremo.
Uma tempestade que ultrapassou todas as previsões
Para o professor Víctor Yepes Piqueras, doutorado em Engenharia Civil, o que aconteceu a 29 de outubro foi o resultado de uma combinação de fatores naturais e humanos. "Do ponto de vista técnico e de engenharia, o evento de 29 de outubro em Valência foi um evento extremo de inundação causado por uma DANA com um padrão de precipitação extraordinário", explica. "Foram registados valores extremos, como 771,8 l/m² em 24 horas em Turís, e caudais na Rambla del Poyo de até 2.283 m³/s antes dos sensores serem arrastados, excedendo largamente quaisquer expetativas de conceção e demonstrando que o risco zero não existe", acrescenta.
Yepes assinala que a falta de infraestruturas hidráulicas suficientes na Rambla del Poyo foi um fator determinante: "Os projetos de proteção contra as inundações, planeados durante anos e com estudos prévios, não foram executados a tempo". Por outro lado, reconhece que o Nuevo Cauce do Turia e as barragens de Forata e Buseo funcionaram eficazmente, protegendo a cidade de Valência e outras localidades.
Por seu lado, Félix Francés, professor de Engenharia Hidráulica na Universidade Politécnica de Valência, recorda que a região dispunha de sistemas avançados de previsão e planeamento, embora as engrenagens tenham falhado em momentos críticos. "Em princípio, tínhamos ferramentas preparadas para inundações, ações ordinárias ou mesmo extraordinárias. Era o que eu pensava. Mas isso foi, em parte, uma surpresa", explica. O responsável detalha que existia legislação específica sobre urbanismo e inundações, um sistema automático de informação hidrológica da Confederação Hidrográfica do Júcar e protocolos de Proteção Civil a diferentes níveis. "Pensei que funcionava bastante bem, mas, devido às circunstâncias, não funcionou na perfeição", admite.
Segundo Francés, a previsão meteorológica foi razoável, embora, na sua opinião, "falte, pelo menos na Aemet [agência estatal de meteorologia], a inclusão da incerteza da previsão e previsões a muito curto prazo, como o 'nowcasting', que outras agências têm". O responsável salienta ainda que o Sistema Automático de Informação Hidrológica (SAIH) "não dispunha de um sistema adicional de previsão hidrológico-hidráulica, pelo que só se vê o que os sensores nos dizem e, fora isso, ficamos cegos".
A gestão de emergências foi o maior fracasso
O especialista sublinha que a gestão de emergência foi uma das maiores falhas: "Enviar um alerta depois do evento, uma hora e meia depois, como se não fosse assim tão grave, é uma piada. Só falta que existam pessoas a receber o alerta em cima de uma árvore com água por baixo. É evidente que há margem para melhorias."
Na sua opinião, a falta de coordenação entre as autarquias locais e a falta de formação da população agravaram a catástrofe. "Não havia qualquer tipo de formação ou educação da população ou das crianças. Estávamos a começar do zero", lamenta.
Por seu lado, Víctor Yepes considera que os danos foram amplificados pela forma como a cidade foi construída durante décadas. "A DANA expôs um grave problema de planeamento urbano", afirma. "As zonas mais vulneráveis concentravam-se no cone aluvial de L'Horta Sud, que foi maioritariamente urbanizado entre as inundações de 1957 e a década de 70, sem um planeamento adequado ou infraestruturas de drenagem suficientes. A falta de critérios uniformes no planeamento territorial e a prevalência dos interesses de desenvolvimento sobre as diretrizes que restringem os usos nas zonas sujeitas a inundações aumentaram a vulnerabilidade do território".
O que é que foi feito desde então?
Nos últimos 12 meses, de acordo com Francés, foram dados alguns passos, embora a administração esteja a avançar lentamente. "Estão a ser feitos progressos em todas as frentes. Não tão rapidamente como as pessoas gostariam, mas a administração espanhola é lenta", explica.
Detalha ainda que os planos de gestão e as infraestruturas previstas desde 2006 estão a ser atualizados e serão renovados com sistemas de previsão hidrológica e hidráulica mais modernos. Destaca também a melhoria do sistema de alerta da Proteção Civil e a criação de programas educativos: "Fiquei satisfeito com o facto de o Ministério da Educação estar a promover o lançamento de um plano educativo nas escolas secundárias.”
Yepes, por seu lado, reconhece que as ações imediatas se centraram na reparação dos danos e no reforço das infraestruturas críticas, mas que as grandes obras continuam pendentes: as medidas adotadas centraram-se na reconstrução com critérios de resiliência e atenção às emergências, embora as grandes soluções estruturais, que exigem prazos de execução mais longos, estejam ainda em grande parte pendentes".
Entre os avanços, cita a reparação das barragens de Forata e Buseo e a recuperação do canal Júcar-Turia, bem como a melhoria da drenagem em municípios como Paiporta, uma das zonas mais afetadas pelas inundações. Recorda ainda que foi aprovado o Decreto-Lei 20/2024 sobre medidas urgentes de planeamento urbano. No entanto, alerta que "a legislação urbanística de base continua estruturalmente inalterada" e que "as barragens de controlo das cheias ainda não se concretizaram".
Como é que se pode evitar uma nova catástrofe?
Félix Francés considera prioritário melhorar a cadeia de alerta e de educação pública, para além de completar as infraestruturas previstas. "Do ponto de vista das vítimas, a educação, a informação e a melhoria de toda a cadeia de alerta meteorológico, a previsão hidrológica e a gestão da informação e dos planos municipais são fundamentais", salienta.
Yepes concorda que a prevenção passa por atuar tanto no território como nas obras de engenharia: "A ação prioritária é acelerar e implementar obras de controlo de inundações [...] e remover obstáculos urbanos, reconstruir infraestruturas lineares com critérios de resiliência e devolver o espaço à água, remover estrategicamente infraestruturas de áreas de fluxo preferencial para reduzir a exposição ao risco mais elevado e iniciar um plano, a longo prazo, para relocalizar infraestruturas críticas e habitações vulneráveis".
Ambos os peritos admitem que os fenómenos extremos continuarão a fazer parte do clima mediterrânico. Francés recorda que "desde 1951 ocorreram quatro eventos de magnitude ainda maior", o que demonstra que "estes fenómenos podem repetir-seem qualquer ponto do arco mediterrânico".
"Não estamos preparados"
O diagnóstico final de Víctor Yepes é contundente: "Atualmente, a vulnerabilidade subjacente persiste e não estamos preparados para enfrentar uma nova DANA com a magnitude da que ocorreu em 2024. A situação é semelhante à de uma família que circula na autoestrada a 120 km/h sem cintos de segurança: bastaria um obstáculo inesperado, como uma DANA, para provocar um acidente fatal. Aceitar a reposição do que se perdeu sem adicionar novas medidas de proteção estrutural implicaria aceitar que os efeitos do desastre se repetirão, o que é inaceitável", afirma.
Um ano depois, a Comunidade Valenciana fez progressos em matéria de alerta, educação e reconstrução, mas os especialistas insistem que , sem investimentos estruturais e planeamento territorial, o risco permanecerá latente. Porque, como ambos concordam no seu diagnóstico técnico, a natureza não esquece... e o risco zero não existe.