Porque é que o Tratado da Carta da Energia é tão controverso?

O acordo tem 53 signatários, incluindo a União Europeia
O acordo tem 53 signatários, incluindo a União Europeia Direitos de autor Andrew Milligan/AP
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De  Jorge LiboreiroIsabel Marques da Silva
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Assinado, em Lisboa, em dezembro de 1994, foi concebido para promover a cooperação transfronteiriça no setor da energia entre os dois lados da Cortina de Ferro.

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Um acordo internacional obscuro que remonta à era pós-Guerra Fria está a ser abertamente contestado por um número crescente de países europeus, quase 30 anos após a sua assinatura.

França, Espanha, Polónia e Holanda anunciaram planos para se retirarem do Tratado da Carta da Energia (TCE), argumentando que o acordo é contrário aos seus objectivos climáticos. A Bélgica e a Alemanha estão, alegadamente, a considerar uma medida semelhante.

"Decidimos retirar-nos do Tratado da Carta da Energia, primeiro porque está de acordo com as posições que tomámos, nomeadamente o Acordo de Paris e o que este implica", disse o presidente francês, Emmanuel Macron, na semana passada.

Assinado em Lisboa, em dezembro de 1994, o TCE foi concebido para promover a cooperação transfronteiriça no sector da energia entre os dois lados da Cortina de Ferro.

O tratado oferecia garantias adicionais aos investidores ocidentais que tinham operações nos antigos estados soviéticos, que estavam então a transitar para um modelo de capitalismo de mercado e tinham muitos recursos fósseis para exploração.

Ao abrigo doeste tratado, os investidores estavam protegidos contra o acesso discriminatório, expropriação, nacionalização, quebra de contrato e outras circunstâncias inesperadas que poderiam afetar as suas expetativas de lucro.

O acordo tem 53 signatários, incluindo a União Europeia. Os principais exportadores de energia, como os Estados Unidos, Arábia Saudita e Rússia, não estão vinculados ao acordo.

As disposições do tratado abrangem os principais aspetos do comércio de bens energéticos (tanto matérias-primas como produtos refinados), investimento, trânsito e eficiência.

Em particular, o TCE estabelece um sistema privado de arbitragem através do qual investidores e empresas podem processar países e reclamar compensação por alterações de políticas que ameacem os seus empreendimentos comerciais e receitas.

Enquanto acordo internacional, as decisões desta arbitragem são juridicamente vinculativas. Este mesmo sistema está no centro da crescente controvérsia.

Processos multimilionários em euros

Usando esta resolução de litígios, as empresas que operam campos de petróleo, gasodutos e centrais elétricas alimentadas a carvão podem lançar processos legais contra os Estados que aprovam legislação para combater as alterações climáticas e reduzir as emissões de CO2.

O valor das infra-estruturas de combustíveis fósseis na UE, Reino Unido e Suíça protegidas pelo tratado é estimado em 344,6 mil milhões de euros, de acordo com a revista Investigate Europe.

Em 2021, o governo dos Países Baixos foram alvo de dois processos judiciais por empresas energéticas alemãs que reclamavam uma compensação pela eliminação gradual do carvão no país.

Tais casos têm alimentado críticas contra o tratado, tanto por parte de governos como de ativistas climáticos, que se preocupam em atingir a neutralidade em emissões poluentes e que podem tornar-se alvo de processos judiciais multimilionários.

Há o risco de se "criar um efeito de arrefecimento catastrófico para os governos que querem tomar as medidas necessárias para conter o perigoso aquecimento global, mas temem represálias por parte da indústria", afirmou a organização ambientalista ClientEarth.

O Tribunal de Justiça Europeu decidiu que a arbitragem privada do tratado viola a legislação da UE e não deve ser utilizada para resolver disputas entre estados membros. A Investigate Europe estima que 74% dos caso envolvem um investidor da UE contra um país da UE.

"Partir em bloco seria uma declaração muito forte", disse, esta semana, o ministro da Energia neerlandês Rob Jetten.

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Comissão Europeia intervém

Numa tentativa de impedir uma retirada maciça do tratado, a Comissão Europeia negociou uma série de emendas ao texto, incluindo o fim imediato dos processos judiciais intra-UE.

As alterações têm de ser aprovadas por unanimidade por todos os 53 signatários, durante uma reunião em novembro.

O que torna as coisas mais complicadas é a cláusula de caducidade notoriamente longa do Tratado. Mesmo quando um país sai do tratado, permanece vulnerável a litígios durante 20 anos.

Em 2016, a Itália tornou-se o primeiro país da UE a desistir do acordo mas, seis anos mais tarde, foi ainda condenada a pagar 190 milhões de euros - mais juros - em compensação à Rockhopper Exploration, uma empresa de petróleo e gás sediada no Reino Unido.

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A ação judicial centrou-se na decisão da Itália de bloquear a perfuração de petróleo num raio de 12 milhas da costa do mar Adriático, uma proibição que impossibilitou os planos da Rockhopper de investir 33 milhões de euros num projeto de campo petrolífero.

A grande diferença entre o custo do projecto e a compensação deve reflectir a esperada perda de lucros da empresa.

A Comissão Europeia quer limitar a cláusula de caducidade a 10 anos para os contratos existentes e apenas nove meses para novos investimentos - mas este ajuste aplicar-se-á apenas àqueles que permanecerem no TCE.

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