Amesterdão pode estar prestes a entrar num confronto total com Bruxelas sobre o tema mais explosivo da agenda política: a migração.
Os Países Baixos têm um novo governo e, com ele, novas ideias.
Dick Schoof, um independente de 67 anos, assumiu o cargo deprimeiro-ministro, apoiado por uma coligação de quatro partidos: o PVV, nacionalista e de extrema-direita; o VVD, liberal e conservador; o BBB, populista e pró-agricultores e o NSC, um novo partido de centro-direita.
Dado o peso dominante do PVV nesta aliança inesperada, o programa conjunto de Governo dá um forte ênfase à migração, uma questão polémica que causou o colapso do anterior Governo e dominou o ciclo eleitoral do ano passado.
O acordo apresenta uma série exaustiva de propostas para reduzir os fluxos migratórios que, segundo os partidos, "exercem pressão" sobre a habitação, os cuidados de saúde, a educação, os recursos financeiros e a coesão social. As iniciativas incluem procedimentos de admissão mais rigorosos, a inversão do ónus da prova para diminuir o número de decisões positivas, a expulsão "mesmo à força" de pessoas sem autorização de válida de residência e o regresso imediato de migrantes irregulares detidos nas fronteiras belga e alemã.
Depois, num ponto crucial do programa pode ler-se: "Será apresentada à Comissão Europeia, o mais rapidamente possível, uma cláusula de auto-exclusão da política europeia de asilo e migração".
O ambicioso pedido, que ainda não foi formalmente apresentado, chamou rapidamente a atenção de Bruxelas, pois surgiu na mesma semana em que os Estados-membros derama aprovação final ao Novo Pacto sobre Migração e Asilo, uma revisão abrangente que prevê regras colectivas e previsíveis para gerir a chegada de requerentes de asilo.
A reforma demorou quase quatro anos a ser negociada e concluiu um trabalho político que consumiu muita energia que remonta à crise migratória de 2015-2016. A notícia de que os Países Baixos, um membro fundador da União Europeia e uma economia próspera, pretendiam retirar-se de leis do passado e do futuro foi recebida com consternação - e profundo ceticismo.
Afinal, as cláusulas de auto-exclusão na UE são uma raridade que se pode contar pelos dedos de uma mão.
A Dinamarca tem duas destas cláusulas: da zona euro e do Espaço Europeu de Liberdade, Segurança e Justiça (ELSJ). A Irlanda também tem duas: do ELSJ e do Espaço Schengen, devido à fronteira comum com o Reino Unido. Por seu lado, a Polónia tem uma cláusula: da Carta dos Direitos Fundamentais, no que diz respeito à sua aplicação prática.
Amesterdão está agora a disputar a sexta.
Dentro e fora
Na sua essência, a UE é um sistema de regras comuns que devem ser aplicadas uniformemente para serem eficazes e, em caso de conflito, prevalecer sobre as normas nacionais. Caso contrário, o mercado único iria desmoronar-se e transformar-se num labirinto impossível com normas arbitrárias.
É por isso que as cláusulas de auto-exclusão são extraordinárias: a sua existência desafia a lógica subjacente ao bloco e cria uma lacuna permanente no corpo comum de leis. São intrinsecamente políticas, porque respondem a um interesse altamente sensível - ou a uma queixa intensa - levantada por um país, que, se não for resolvida, impediria um objetivo político mais vasto.
A Dinamarca solicitou pela primeira vez a exclusão da zona euro, dos assuntos internos e da Política Comum de Segurança e Defesa depois de o Tratado de Maastricht de 1992 ter sido rejeitado pelos eleitores dinamarqueses. (A cláusula de defesa foi abolida depois de a Rússia ter lançado a guerra na Ucrânia).
A cláusula de auto-exclusão foi alargada quando o Tratado de Amesterdão de 1997 propôs dar poderes às instituições da UE para legislarem nos domínios abrangidos pelo ELSJ, como a migração, a justiça, a segurança e os direitos fundamentais. Até então, o Espaço de Liberdade, de Segurança e de Justiça (ASFJ) tinha estado firmemente nas mãos dos governos, sem o envolvimento da Comissão Europeia.
A Irlanda exigiu o mesmo tratamento e ambas as nações assinaram um protocolo que as isentava de quaisquer decisões adotadas no âmbito do ASFJ. Os protocolos foram acrescentados ao Tratado de Amesterdão e permanecem em vigor até hoje. No entanto, a cláusula irlandesa é flexível e permite que Dublin opte por entrar ou sair das regras de migração numa base casuística.
Mais tarde, a Polónia seguiu o exemplo. No período que antecedeu o Tratado de Lisboa, de 2007, que conferiu à Carta dos Direitos Fundamentais plenos efeitos jurídicos, o país solicitou uma derrogação da sua aplicação judicial, receando que o caráter liberal da carta entrasse em conflito com os valores familiares conservadores. Foi então redigido um protocolo para limitar a sua aplicação na Polónia. (O âmbito efetivo dessa cláusula tem sido contestado desde então).
Poderá a Holanda conseguir um acordo semelhante em matéria de migração e asilo?
Para Elise Muir, diretora do Instituto de Direito Europeu da Universidade Católica de Lovaina (KU Leuven), "a resposta é simples: um Estado-membro não pode optar por não aplicar a legislação da UE depois de esta ter sido adotada. O objetivo de ser membro da UE é comprometer-se a respeitar as suas leis".
As atuais cláusulas de não participação, salientou Muir, foram criadas na altura da adesão de novos países ou quando os tratados estavam a ser revistos, "mas é pouco provável que isso aconteça neste momento e requer a aprovação unânime de todos os Estados".
Em alternativa, acrescentou, poderá ser sugerido uma possibilidade de exclusão enquanto o projeto de lei estiver a ser negociado. No entanto, o Novo Pacto está estabelecido e não há vontade de reabrir a tão esperada revisão.
Mark Klassen, professor de direito da migração na Universidade de Leiden, também não está convencido com a proposta holandesa e sublinha que os Países Baixos estão "totalmente vinculados ao acervo em matéria de asilo, tanto na sua forma atual como após as reformas do pacto de migração".
O Pacto, com disposições que visam alargar o exame dos novos requerentes, acelerar os procedimentos de análise, redistribuir os requerentes de asilo e criar um fundo financeiro comum, foi introduzido para garantir uma verdadeira solidariedade em todo o bloco, algo que os países do Sul se queixavam de estar a faltar. Por outras palavras, garantir que todos suportam o fardo do desafio transfronteiriço.
"Não seria congruente com a reforma se os Países Baixos pudessem negociar uma auto-exclusão, o que é também uma das principais razões pelas quais é impensável que essa auto-exclusão seja concretizada", disse Klassen.
O professor acredita que o executivo neerlandês está bem ciente das poucas hipóteses de obter um apoio unânime para uma auto-exclusão que, a ser concedida, iria provavelmente afastar os requerentes de asilo dos Países Baixos para os países vizinhos.
"Acredito firmemente que o nosso novo governo sabe e compreende que não existe nenhum procedimento para conseguir uma auto-exclusão através de um pedido à Comissão", disse Klassen. "Isto vai continuar a ser uma promessa vazia para os eleitores do partido de extrema-direita da coligação."
Em declarações à Euronews, a Comissão Europeia recusou-se a comentar os programas políticos e sublinhou o facto de, na votação final do Pacto, a 14 de maio, os Países Baixos terem votado a favor de todos os textos legislativos apresentados.
"Os Tratados não incluem regras (sob a forma de um protocolo) que regulem uma cláusula de auto-exclusão para os Países Baixos neste domínio (área dos assuntos internos)", afirmou um porta-voz da Comissão.
"Uma vez adoptada, a legislação da UE é vinculativa para todos os Estados-Membros em causa e, após a entrada em vigor, aplicável de acordo com as disposições específicas contidas em cada ato jurídico. Os instrumentos do pacto serão vinculativos para os Países Baixos".